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A ampliação do crédito consignado para trabalhadores formais, regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), deve dar novo impulso ao consumo e à atividade econômica. A medida foi anunciada 12 dias depois de outro estímulo à economia, a liberação de R$ 12 bilhões a parte dos cotistas do FGTS. Ambas as medidas tendem a deixar o Banco Central "enxugando gelo" no combate à inflação.
Na avaliação do governo Lula, o programa Crédito do Trabalhador facilita a contratação de empréstimos para 42 milhões de pessoas. Até então, o consignado para celetistas só era possível em caso de convênio entre banco e empregador.
Os celetistas terão acesso a taxas de juros menores que as do crédito pessoal convencional e poderão – por exemplo – trocar uma dívida cara por uma mais barata. As condições são vantajosas em comparação ao crédito pessoal porque o desconto no salário dá ao banco alguma garantia de que a dívida será paga.
Com isso, o governo pretende estimular o crescimento econômico via crédito, num momento em que a economia dá sinais de desaceleração. Também visa reduzir a desaprovação de Lula nas pesquisas junto ao eleitorado, que vem aumentando a cada rodada.
A questão é que, neste momento, ao facilitar o acesso ao crédito, a ampliação do consignado CLT vai na contramão dos esforços do Banco Central para conter a inflação. E pode, segundo economistas, ter efeito no endividamento das famílias.
“É uma política ambígua”, diz Mauro Rochlin, economista e coordenador de MBA da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Enquanto o Banco Central faz um movimento apontando na direção de controle da inflação – e para isso, de restrição do crédito, principalmente de encarecimento do crédito com a taxa Selic experimentando um aumento muito forte –, do outro lado a gente tem o governo fazendo uma política fiscal extremamente frouxa, jogando a favor de uma expansão maior do crédito e consequentemente do aumento do consumo, o que vai contra a ideia de controlar a inflação.”
Dias antes, Lula assinou outra medida para estimular o consumo: a liberação do saque do FGTS a cotistas que, tendo aderido ao saque-aniversário, não puderam resgatar o saldo do fundo ao serem demitidos. Cerca de R$ 12 bilhões serão liberados, pelos cálculos do governo, o que também pode pressionar a inflação e os juros básicos definidos pelo BC.
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Consignado para CLT deve pressionar inflação, que está acima da meta
Izak Carlos da Silva, economista-chefe do BDMG e consultor do Instituto Millenium, destaca que a atividade econômica ainda está aquecida e inflação em alta.
O IPCA subiu mais de 5% nos últimos 12 meses, e as projeções do mercado para o índice ao fim do ano se aproximam de 5,7% acima do centro da meta estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (CNM), que é de 3%. E acima do limite de tolerância, que é de 4,5%.
“Estamos vendo aí, nas gondolas do supermercado e no dia a dia, e também nos serviços, uma inflação que não para de crescer, não dá trégua”, afirma. “E o objetivo da medida é claramente tentar manter o nível de consumo e de atividade econômica, o que é contraditório com o processo de controle da inflação.”
Para o economista, se o governo continuar estimulando a economia, o Banco Central (BC) vai fazer um papel “de secar gelo”. “Vai continuar subindo a taxa de juros e ainda assim nós vamos ter muita dificuldade de controlar a inflação”, diz.
BC tenta conter frear cresicmento para combater inflação
É para conter o avanço dos preços que o BC tem elevado a taxa básica de juros (Selic) – que já chegou a 13,25% ao ano e tende a subir mais 1 ponto porcentual na próxima reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), na semana que vem.
O BC espera frear o sobreaquecimento da economia brasileira, que vem crescendo acima de sua capacidade. Parte da estratégia tem funcionado e já houve uma freada do Produto Interno Bruto (PIB) no fim de 2024 – o avanço do PIB no último trimestre do ano foi o menor em cinco trimestres.
A expectativa é de que a economia ainda cresça neste início de 2025, graças ao agronegócio, que espera colher safra recorde. Do segundo trimestre em diante, porém, espera-se uma desaceleração. Que, se ocorrer, será recebida com certo alívio.
Até o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse recentemente esperar uma "moderação" no avanço do PIB, para manter a inflação "minimamente controlada".
A projeção da Fazenda é que o crescimento deste ano será o menor desde o início da década, de 2,3%. A mediana das projeções do mercado financeiro é de avanço um pouco mais modesto, de 2%. No ano passado, o PIB cresceu 3,4% – foi o quarto ano seguido de expansão igual ou superior a 3%.
Neste contexto, Silva, do BDMG, diz que o “momento não é favorável para o consignado privado”. “O BC precisa da ajuda da política fiscal para que a gente consiga levar a inflação para o centro da meta e ter um país com estabilidade macroeconômica nos próximos anos”, afirma.
Consignado para CLT pode aumentar endividamento
Rochlin, da FGV, alerta para as consequências do consignado no endividamento da população de mais baixa renda. “Quem vai acessar o crédito consignado normalmente são pessoas de menor poder aquisitivo, de mais baixa renda, de menor educação financeira, e receio que possa haver um superendividamento dessa parcela da população”, afirma.
Embora a ideia seja “trocar uma dívida cara por uma mais barata”, ele não acredita que isso vá acontecer. “Na prática, nem todo mundo vai fazer isso”, diz. “Na verdade, elas vão se endividar mais no final das contas. A dívida total vai aumentar.”
Bruno Imaizumi, economista da LCA Consultores, reitera a preocupação. “O crédito mais fácil pode levar ao aumento de pessoas que já estão endividadas.” diz. “Isso deve gerar mais inadimplência no futuro.”
Para ele, as instituições financeiras deverão estabelecer taxas de juros diferenciadas ao perfil do tomador de crédito. “A gente tem que lembrar que 50% da população mais ou menos tem carteira assinada,” diz Imaizumi. “Há um nível de ‘estabilidade’, entre aspas, nestes empregos. Isso pode dar uma garantia [ao banco] de que elas conseguem pagar, honrar seus futuros compromissos.”
Diferente do consignado oferecido aos funcionários públicos, com taxas médias de 1,8% ao mês, as taxas para trabalhadores CLT serão maiores porque o risco do banco é maior, já que o trabalhador pode perder o emprego e com isso deixar de receber o salário de onde são descontadas as prestações da dívida.
A chance de demissão de um servidor público, enquanto isso, é praticamente inexistente. O mesmo em relação à interrupção do pagamento a um aposentado ou pensionista do INSS. Atualmente, o consignado para este segmento tem juro médio de 1,66% ao mês. Enquanto isso, o crédito pessoal não consignado, que não tem o salário como garantia, tem taxa média mensal de 6,1%.
FGTS é ponto polêmico da medida
Para o economista-chefe do BDMG, os juros para a modalidade do consignado CLT poderiam ser menores se as garantias fossem maiores. A possibilidade estipulada pelo governo é de utilização de 10% do FGTS, além das multas rescisórias em caso de demissão.
“Se o trabalhador pudesse usar todo o fundo como garantia para o empréstimo consignado, ele conseguiria acessar um montante muito maior de recursos a uma taxa muito menor”, diz. “Essa limitação acaba restringindo bastante o trabalhador, que vai pagar mais por não poder utilizar um patrimônio que já é dele. O fundo de garantia do trabalhador é do trabalhador, não é de mais ninguém.”
Este não é o único ponto polêmico envolvendo o FGTS. A medida do governo não impede que o trabalhador que optou pela modalidade do saque-aniversário – que permite retirar anualmente uma parte do saldo disponível no fundo no mês de seu aniversário – possa pegar empréstimo consignado.
A existência simultânea das duas modalidades contrariou o setor da construção civil, que vinha cobrando o fim do saque facilitado do FGTS, que é fonte de recursos para boa parte do financiamento habitacional, em especial do programa “Minha Casa Minha Vida”.
A Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias se manifestou sobre o assunto, reforçando “extrema preocupação” com a criação do consignado aos celetistas sem a extinção do saque-aniversário”. “Entendemos que agora é preciso descontinuá-lo, pois o trabalhador já terá acesso a uma nova modalidade de crédito com taxas competitivas”, diz a entidade em nota.
Segundo a entidade, o Brasil enfrenta um déficit habitacional de 7,8 milhões de moradias e a expansão dos saques do FGTS “prejudica milhões de brasileiros que dependem do crédito habitacional para conquistar sua casa própria”.
“O empréstimo do consignado saque-aniversário bloqueia os recursos antecipados pelos cotistas, o que compromete o acesso dos trabalhadores ao saldo de suas contas do FGTS na hora de comprar imóveis e em situações de emergência. O percentual de compradores do Minha Casa Minha Vida que usam o FGTS para dar entrada no imóvel caiu de 73% em 2020 para 30% em 2024.”
Para Izak Carlos da Silva, seria necessária uma discussão mais profunda sobre a destinação do FGTS, que sempre foi alvo de críticas pela retenção do patrimônio do trabalhador pelo governo.
“A gente sabe que os recursos do FGTS, que servem de funding para habitação popular, estão escassos”, diz. “Primeiro porque o mercado de construção está aquecido e segundo porque esse valor do FGTS foi reduzido ao longo do tempo justamente porque os rendimento são baixos. Os trabalhadores optam por sacar o dinheiro sempre que possível. Por isso o assunto precisa ser debatido.”
Ele acredita que a retenção é uma decisão muito mais política do que econômica, que atende aos interesses do governo. Economicamente, para ele, faria muito mais sentido permitir que o trabalhador utilize seu FGTS como garantia como desejar.
“Nada melhor que o trabalhador poder utilizar o seu recurso da forma que ele bem entender, comprar um imóvel, tomar um empréstimo consignado para comprar uma casa, não importa", afirma. "É algo que deveria caber ao indivíduo e não ao governo, tutelar essa decisão, como ele tem feito recorrentemente e como ele faz novamente limitando o acesso.”







