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O aumento de gastos e o envelhecimento rápido da população vão forçar uma nova reforma da Previdência, segundo especialistas. O governo resiste à ideia.
O aumento de gastos e o envelhecimento rápido da população vão forçar uma nova reforma da Previdência, segundo especialistas. O governo resiste à ideia.| Foto: André Rodrigues/Arquivo/Gazeta do Povo

A piora das projeções de longo prazo para o rombo da Previdência, provocada pelo rápido avanço dos gastos e pelo envelhecimento acelerado da população brasileira, indicam que o país terá de fazer uma nova reforma nessa área.

O rombo previdenciário deve chegar este ano a 2,5% do PIB, ou R$ 326,2 bilhões, segundo o Balanço Geral da União (BGU) de 2023, divulgado pelo Tesouro Nacional. Uma piora significativa em relação à projeção feita no ano passado, que era de déficit de 2,2% do PIB. As projeções do BGU consideram que o PIB crescerá acima de 2%, em média, até 2030, premissa considerada otimista pelos especialistas.

Pelos cálculos, a necessidade de financiamento das contas – a diferença entre as receitas e despesas do sistema – deverá chegar a 10,3% do PIB até 2100. O percentual corresponde a um déficit de R$ 25,5 trilhões que deverá ser coberto pela União para o pagamento de aposentadorias e pensões do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

A cúpúla do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) resiste à ideia de reforma, e se ancora em previsões de curto prazo que indicam uma trajetória mais suave para as contas previdenciárias. O ministro da Previdência, Carlos Lupi, pensa até em elevar gastos. No ano passado, disse que pretendia revisar parte das regras da reforma feita em 2019 – medida que, segundo especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, poderia aumentar os desembolsos em 9%.

Porém, a preocupação com o rápido avanço das despesas dessa área é evidente na equipe econômica, como comprovam propostas divulgadas pela ministra do Planejamento, Simone Tebet, e recados indiretos do ministro da Fazenda, Fernando Haddad – ainda que, publicamente, ele desconverse sobre a contenção de gastos.

No fim de abril, Haddad afirmou que a continuidade da desoneração da folha de pagamentos criava o risco de que o país precisasse fazer uma reforma da Previdência daqui a três anos – a última foi realizada em 2019. Quem acompanha as contas do setor acha esse prazo tardio.

"A reforma deveria estar sendo pensada agora, ela já é necessária. E como envolve muitos interesses, tem que ser feita por partes", avalia Simão Silber, economista da Fundação Instituto de Pesquisa Econômicas (Fipe).

Governo aposta em projeções otimistas e economia residual

Um dos argumentos do Executivo para a tranquilidade em relação à reforma são as estimativas apresentadas no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2025, que mostram uma queda nos gastos previdenciários como proporção do PIB até 2028.

Mas o próprio PLDO admite a piora, a médio prazo, para a trajetória de despesas, que salta de 7,92% do PIB neste ano para 8,45% do PIB em 2040. O patamar é mais elevado do que o indicado na LDO de 2023, de 8,20% do PIB. Ou seja, de um ano para outro já houve alteração significativa na projeção.

Além disso, o Executivo incorporou às estimativas oficiais a economia de R$ 28,6 bilhões nos próximos quatro anos em despesas com a revisão de benefícios e digitalização de processos. Também há iniciativas para fazer um pente-fino e descobrir fraudes e benefícios indevidos.

Para agilizar o sistema, um dos instrumentos será o programa Atestmed, que substitui a perícia médica presencial para a concessão dos benefícios. A ideia é evitar o desembolso de valores retroativos, acrescidos de juros e correção monetária.

Especialistas veem com ceticismo a economia projetada pelo governo com a iniciativa. E afirmam que ela pode ter efeito contrário e impulsionar ainda maia a despesa previdenciária. As filas para dar entrada nos benefícios aumentam em todo país, e as concessões também. No primeiro bimestre de 2024, foram incorporados ao sistema 906,2 mil novos beneficiários de aposentadorias, pensões, salário-maternidade e auxílio-doença, um salto de 43,2% em relação ao mesmo período do ano passado.

Além disso, os resultados práticos para a redução do déficit são considerados "residuais". "Os ajustes podem ser feitos, mas o problema da Previdência não diz respeito ao micro. É estrutural", destaca Silber.

População brasileira envelhece rápido e aumenta pressão sobre Previdência

Os dados do BGU mostram o descasamento entre receitas e despesas previdenciárias. As projeções são de uma receita estável em torno dos 5% do PIB ao longo das próximas décadas. Já as despesas partem de 7,98% do PIB e alcançariam 15,85% até 2100.

Entre os fatores que tem impactado o aumento dos gastos está o envelhecimento da população e o aumento da expectativa de vida. Ou seja, estão sendo incluídas na seguridade mais pessoas, que vão receber o benefício por mais tempo.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população com 65 anos ou mais aumentou 57% de 2010 a 2022, passando de 14,1 milhões para 22,2 milhões. Cerca de 10,9% dos brasileiros estão nessa faixa etária. Conforme projeções da ONU, o Brasil terá um dos processos de envelhecimento mais intensos e rápidos do mundo, e em 2030 já será possível considerar o país como idoso.

"Temos mais de 200 milhões de habitantes e o país está envelhecendo rápido. Parte substancial dessa população tem um padrão de vida que dá condições para uma longevidade grande, próxima dos 80 anos. Elas vão ficar, no mínimo, 20 anos dependendo da aposentadoria ou pensão", avalia Silber.

Reajuste real do mínimo agrava o rombo da Previdência

Outro agravante do quadro é a política permanente de valorização do salário mínimo, implementada pelo governo petista, com aumento real baseado no crescimento do PIB dos dois últimos dois anos. Mais de 60% dos benefícios previdenciários correspondem ao salário mínimo. Assim, sempre que ele tem aumento real, tais pagamentos sobem na mesma proporção. Segundo a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2024, cada real adicionado ao mínimo custa R$ 389 milhões extras ao Orçamento federal.

Responsável pelos benefícios do INSS e pela previdência de pequenos municípios, o Regime Geral da Previdência Social (RGPS) é o maior gasto do orçamento primário do governo. Consumiu R$ 899 bilhões em 2023, o equivalente a 42,3% das despesas primárias da União. O BPC (pago a pessoas pobres idosas ou com deficiência), abono salarial e seguro-desemprego responderam no ano passado por 7,8% dos gastos primários, ou R$ 166 bilhões.

Impulsionado pela política do mínimo, que deve chegar a R$ 1.502 no próximo ano e a R$ 1.772 em 2028, o crescimento do gasto da Previdência se dará em ritmo mais veloz do que o limite do arcabouço fiscal desenhado pelo ministro Haddad, que busca limitar o aumento real das despesas totais da União a algo ente 0,6% e 2,5% ao ano. O aumento real do piso salarial neste ano, por exemplo, foi de 3%.

"O salário mínimo tem sido sistematicamente reajustado acima da inflação desde o governo Fernando Henrique Cardoso [PSDB], embora com períodos de interrupção. Hoje já acumula uma alta de 140% acima do índice de preços. O impacto nas despesas da sustentabilidade do sistema é direto", ressalta o economista.

Especialistas defendem desvincular salário mínimo do piso da aposentadoria

Especialistas em contas públicas defendem há anos a desvinculação do salário mínimo das despesas da Previdência como forma de interromper a escalada de gastos do governo. Era um dos planos do ex-ministro da Economia do governo Jair Bolsonaro (PL), Paulo Guedes, que não conseguiu fazê-lo prosperar. A saída encontrada por Guedes foi abandonar a política de aumento real do salário mínimo herdada das gestões anteriores, corrigindo o piso salarial – e, consequentemente, todos os benefícios vinculados – apenas pela inflação.

Setores da área econômica do governo dão sinais de que começam a perceber o problema. Na semana passada, a ministra do Planejamento, Simone Tebet, defendeu na imprensa a desvinculação de aposentadorias e benefícios da política de salário mínimo. "Vamos ter que fazer isso pela convicção ou pela dor", disse Tebet em entrevista ao jornal "Valor Econômico".

Responsável por um programa incipiente de revisão de gastos, a ministra afirmou que é preciso "colocar o dedo na ferida" das despesas governamentais. Tebet explicou, mais tarde, que as correções vão considerar a inflação do período e possivelmente um porcentual adicional, porém menor do que o aumento real destinado ao salário mínimo.

Após alguns dias de silêncio, o ministro Haddad disse na quinta-feira que não vê "muito espaço" para a proposta, uma vez que projeto nessa linha estudado pela Fazenda foi barrado no ano passado.

O próprio Haddad, porém, havia compartilhado na semana anterior artigo de um economista que, entre outras coisas, recomendava justamente a desvinculação de salário mínimo e benefícios. "Recomendo este artigo de Bráulio Borges, economista da FGV, sobre a dinâmica recente das contas públicas", escreveu Haddad no X, sem mais comentários.

O recado agradou o mercado – o pessoal da Faria Lima, na linguagem do governo – mas a perspectiva da ideia de ir adiante é mesmo remota.

O plano de Tebet acendeu de imediato o "fogo amigo" do governo. A presidente nacional do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), conhecida por antecipar e vocalizar as opiniões de Lula, foi às redes para dizer que as ideias "são muito ruins" e "contrariam o programa de governo eleito em 2022".

Na terça-feira (7), Lula, defensor histórico do aumento de gastos sociais, disse ficar "irritado" com a discussão das contas públicas. “A dívida pública dos Estados Unidos é 112% do PIB, a do Japão é de 235%, a da Itália é de quase 200%. Ou seja, esse não é o problema. Você tem que saber se está gastando ou está investindo”, afirmou em entrevista ao programa Bom Dia, Presidente, da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

Sistema de repartição na Previdência está em xeque

O cenário das contas da seguridade não anula os efeitos da reforma da Previdência de 2019, que conseguiu reduzir a velocidade do crescimento do déficit em porcentagem do PIB. Sem ela, o rombo hoje já estaria em 3% do PIB e acima de 4% do PIB em 2030, segundo projeções da LDO de 2019. Os gastos previdenciários, pela projeção, ultrapassariam os 12% do PIB em 2020.

Os dados confirmam, porém, a inviabilidade do sistema de repartição vigente, onde quem está trabalhando paga a aposentadoria de quem já está aposentado. O sistema não prescinde de, no mínimo, três pessoas na ativa para pagar um benefício. Atualmente, todos os estados têm uma razão menor que isso entre ativos e inativos.

Conforme estudo publicado em abril pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o país tem hoje menos de dois contribuintes para cada beneficiário da Previdência Social. A projeção é que, a partir de 2051, haja mais segurados do que pessoas contribuindo ao sistema.

“Com essas tendências demográficas, o esperado é que nas próximas décadas o incremento do total de beneficiários não apenas siga em ritmo superior ao do total de contribuintes como também pode-se chegar a uma situação de estagnação ou até mesmo retração desse último grupo tendo em vista a esperada diminuição da população em idade de trabalhar”, escrevem os autores do estudo, Rogério Nagamine e Graziela Ansiliero.

Informalidade e inatividade pioram cenário

A piora do indicador retrata ainda o aumento do número trabalhadores informais, desempregados ou inativos. Segundo o estudo do Ipea, mais da metade da população (55,5%) em idade de trabalhar não estava contribuindo para a Previdência Social em 2022. De um total de 129,5 milhões de homens de 20 a 64 anos e mulheres de 20 a 61 anos, apenas 58,9 milhões contribuíam para o INSS.

Levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) com base em dados do IBGE, revelam aumento de 26,7% no número de trabalhadores sem carteira assinada de 2016 a 2023, que atingiu 13,5 milhões no ano passado. São impactos da tendência de “uberização” no mercado de trabalho, com aumento dos trabalhadores temporários com contratos fixos ou de plataformas on-line, também chamado de “gig worker”.

Ao mesmo tempo, verifica-se a desaceleração do emprego formal. Em 2023, o crescimento de trabalhadores com carteira assinada foi 3% em relação a 2022. No ano anterior, a alta havia sido de 6,9%.

O governo tem procurado iniciativas para aumentar a contribuição previdenciária dos trabalhadores por plataformas. Um projeto de lei sobre o tema tramita no Congresso Nacional, mas enfrenta resistência de parlamentares e trabalhadores.

Há também preocupações em relação à modalidade de Microempreendedor Individual (MEI), que já repesenta 10% dos contribuintes da Previdência no país. Todos terão, no futuro, direito a uma aposentadoria de um salário mínimo, embora suas contribuições correspondam a apenas 1% da arrecadação do regime geral.

Folha de pagamentos é fonte de receita

Por outro lado, o Congresso Nacional tem aprovado iniciativas que reduzem receitas da Previdência, como a desoneração dos municípios e de empresas de 17 setores que mais empregam no país. A Gazeta do Povo está entre as beneficiárias da desoneração.

A renúncia fiscal foi suspensa por liminar do ministro Cristiano Zanin, do Supremo Tribunal Federal (STF), mas Haddad buscou foi um acordo com o Congresso para reonerar a folha dos setores contemplados. O combinado na noite de quinta-feira (9), foi de manter a desoneração de 17 setores neste ano, com reoneração gradual de 2025 em diante.

A folha de pagamentos é a principal fonte de arrecadação da Previdência, a exemplo da maioria dos países. Segundo o estudo do Ipea, a cobrança média paga por patrões e empregados em 81 países fica em 24,09%. No Brasil, a alíquota é de ao menos 28,5% (21% do empregador e em torno de 7,5% do trabalhador, percentual que aumenta conforme a faixa salarial).

Independente da fonte de financiamento, na avaliação de Silber, o sistema previdenciário precisa ser redesenhado a partir de um modelo de capitalização. No novo formato, cada contribuinte teria uma “conta particular” na qual suas contribuições são acumuladas, que pode ser acompanhada ao longo do tempo. Ao se aposentar, o valor disponível na conta determina o benefício recebido.

A proposta havia sido incluída na Reforma de 2019 e contou com defesa veemente do ex-ministro da Economia Paulo Guedes. A ideia era mesclar os dois sistemas e estabelecer um período de transição entre o pagamento repartido e a total capitalizado. Mas não houve acordo e a proposta acabou sendo suprimida. A tendência é que o tema seja retomado quando a reforma for iminente. "Não há perspectiva de uma grande reforma neste governo. Mas a necessidade vai se impor", prevê o professor.

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