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15 anos de estabilidade

Plano mirou a inércia inflacionária

Economistas que criaram o real já haviam proposto solução semelhante nos anos 80, no plano Cruzado, para derrubar a correção automática de preços e contratos

Jacques Rigler abriu uma lanchonete em 1986, mas não resistiu ao ágio nos preços. | Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo
Jacques Rigler abriu uma lanchonete em 1986, mas não resistiu ao ágio nos preços. (Foto: Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo)

A lanchonete que o empresário Jacques Rigler abriu em agosto de 1986, na Rua XV de Novembro, no centro de Curitiba, sobreviveu por apenas três meses. Seguindo as determinações do Plano Cruzado, lançado em fevereiro, Rigler manteve congelados os preços dos lanches e refrigerantes que servia. Seus fornecedores, nem tanto. "O cara chegava e dizia: 'Ou você paga mais pelo queijo, por fora, ou eu não vendo para você'. Além do ágio, era muito comum faltar produto. Era prejuízo todo dia", conta o empresário, hoje franqueado da rede Bob's.

Poucas semanas depois que a lanchonete fechou as portas, o congelamento foi suspenso. Morria ali o Cruzado, a primeira grande tentativa de acabar com a inflação no Brasil. Curiosamente, o plano teve papel fundamental para o sucesso da experiência realizada oito anos depois, com o Plano Real.

O primeiro acerto do Real foi rechaçar extravagâncias como congelamentos (quatro planos insistiram neles, após o Cruzado) e confiscos. Mas o principal foi a adoção de um dos principais fundamentos do Cruzado: o combate à "inflação inercial", também chamada de "memória inflacionária" ou "realimentação inflacionária". Diferentes nomes para um mesmo círculo vicioso, mantido em altíssima rotação por um abrangente sistema de indexação.

Impostos, aluguéis, mensalidades, salários – tudo era corrigido pela inflação. As correções pressionavam os preços, dando mais força à inflação e às correções futuras. "Se a indexação evitava distúrbios contratuais de curto prazo causados pela inflação, também criava enormes dificuldades para os programas de combate à inflação", explica o cientista político Carlos Pio, professor da Universidade de Brasília (UnB), no artigo "A estabilização heterodoxa: ideias e redes políticas". Em um cenário assim, não havia aperto fiscal ou monetário – as sugestões de sempre do FMI – que desse jeito.

A solução? Desindexar a economia. Era o que propunha o Larida, apelido de um plano de estabilização apresentado em 1985 pelos economistas André Lara Resende e Persio Arida. A ideia foi aplicada em parte no Cruzado. O problema é que interesses conflitantes e pressões políticas sobre a equipe econômica transformaram o plano em uma colcha de retalhos. Ele desindexou a economia, mas, por outro lado, adotou juros reais negativos (menores que a inflação), concedeu abonos salariais e congelou os preços por mais tempo que o previsto. O consumo explodiu, e a insatisfação dos empresários fez surgir um mercado paralelo que detonou o congelamento e esvaziou as prateleiras. "A fila para comprar leite ia até a calçada. E alguns ficavam espiando, para ver quando chegava mercadoria", conta Oswaldo Lazzaris, sócio da panificadora Pote de Mel.

Moeda indexada

O que o Cruzado não fez – e o Real, sim – foi, em paralelo à desindexação de salários e contratos, adotar a "moeda indexada" proposta pelo Larida. No fim de 1993, o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, anunciou a criação da Unidade Real de Valor (URV), um índice estreitamente vinculado ao dólar e que, em vez de ser corroído pela inflação, era corrigido por ela, mantendo sempre o mesmo valor nominal. O preço de um carro poderia passar de 80 milhões para 120 milhões de cruzeiros reais (CR$, a moeda corrente) em 30 dias, mas valeria sempre 30 mil URVs, por exemplo.

Consumidores e empresas teriam liberdade para vincular seus contratos ao novo índice, ou manter os valores expressos em cruzeiros reais. Foi assim até 1º de julho de 1994, quando o real começou a circular, valendo exatamente 1 URV (e exatos CR$ 2.750). Talvez estimulada pelo componente "psicológico" – como se fosse mágica, os preços expressos em URVs não mudavam –, a adesão da população surpreendeu. Em 19 dias, 70% dos cruzeiros reais já haviam sido trocados por reais, segundo o livro "A real história do real", da jornalista Maria Clara R. M. do Prado.

Além da URV, o plano contou com um complexo arcabouço de medidas não só para segurar os preços, mas para evitar questionamentos na Justiça. Mas, para o cientista político Carlos Pio, da UnB, ainda mais importante foi a sintonia (ao menos no início) da equipe que formulou e executou o plano, na qual se destacavam André Lara Resende, Persio Arida, Edmar Bacha, Gustavo Franco e Pedro Malan. Todos tinham vínculos pessoais com FHC e autonomia para resistir a pressões que pudessem minar a coerência do plano – algo que fez muita falta no Cruzado.

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