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Reforma tributária

Guerra do álcool: tamanho do novo imposto opõe fábricas de cerveja e cachaça

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Fábricas de cerveja e cachaça discordam sobre o novo "imposto do pecado" da reforma tributária. (Foto: Alexandre Mazzo/Arquivo/Gazeta do Povo)

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A discussão sobre a regulamentação da reforma tributária trouxe à tona uma "guerra" no setor de bebidas alcoólicas, mais especificamente entre as indústrias de cerveja e destilados. A peleja diz respeito ao formato do Imposto Seletivo (IS), apelidado de “imposto do pecado”, uma sobretaxa criada pela reforma tributária sobre produtos tidos como nocivos à saúde e ao meio ambiente.

Os produtores e importadores de destilados advogam pela adoção de um imposto único, com alíquota idêntica para todos os tipos de bebida. De outro lado, cervejarias defendem um sistema progressivo, em que as bebidas de maior teor alcoólico sejam mais oneradas.

Se adotada, a tributação progressiva implicaria impostos mais elevados para bebidas destiladas, como a cachaça, a vodca e o uísque, e mais baixos para o vinho e a cerveja. É essa modalidade que foi aprovada pela Câmara dos Deputados, que alterou o projeto enviado pelo governo. A regulamentação da reforma tributária agora será discutida pelo Senado.

Márcio Maciel, presidente-executivo do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv), afirma que regras semelhantes às aprovadas pela Câmara são aplicadas com sucesso em outros países, além de serem referendadas por organismos internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (OMS), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

“Na Rússia, país da vodca, por exemplo, esse destilado paga impostos mais altos que a cerveja justamente por ter um teor alcoólico mais elevado. O mesmo acontece com a tequila no México e com o bourbon nos EUA, deixando claro que, para efeitos de saúde, nem todo álcool é igual”, defende Maciel.

O setor de vinhos – bebida cujo teor alcoólico é maior que o da cerveja, mas menor do que o dos destilados – busca reduzir a tributação pelo Immposto Seletivo. Entre outras medidas, o setor advoga por uma classificação diferenciada para o álcool presente em suas bebidas.

A indústria de destilados, enquanto isso, alega que a realidade brasileira é distinta, pois aqui o consumo da cerveja predomina. Além disso, defendem que a moderação no consumo de bebidas é uma prática a ser adotada pelos consumidores e que, portanto, não há uma bebida da moderação. O setor, portanto, é contrário à taxação progressiva conforme o teor alcoólico.

Carlos Lima, presidente do Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac), afirma que a inclusão de uma diferenciação de produtos com base no teor alcoólico beneficiará a cerveja, que representa 90% do consumo de bebidas alcoólicas do Brasil, enquanto prejudicará diretamente a cadeia produtiva da cachaça, um produto genuinamente brasileiro.

“A falta de tratamento igualitário na tributação de bebidas alcoólicas no Brasil há anos impacta negativamente o setor produtivo da cachaça. Neste momento de discussão da reforma tributária, é crucial que o Brasil dê tratamento igualitário às bebidas alcoólicas e que o setor da cachaça não seja ainda mais prejudicado”, diz.

Eduardo Cidade, presidente da Associação Brasileira de Bebidas Destiladas (ABBD), também apoia uma taxação única para todo o setor, já que a função do imposto do pecado é desestimular o consumo nocivo de bebidas. Ele argumenta que o consumo excessivo não está ligado ao teor alcoólico de uma bebida, e sim à quantidade que o indivíduo consome.

"O desenho do Imposto Seletivo com a alteração aprovada na Câmara dos Deputados abre espaço para que ocorra o efeito de substituição, em que consumidores potencialmente passarão a consumir bebidas de menor teor alcoólico, em maiores quantidades", diz.

"Assim, o objetivo de reduzir o consumo de álcool tende a não ser alcançado na extensão necessária, enquanto se corre o risco de que a política produza estímulos para as indústrias do setor que produzem bebidas de menor teor alcoólico", prossegue.

Thúlio Carvalho, advogado tributarista e mestre em Direito pela PUC- SP, avalia que é difícil imaginar que as alíquotas do Imposto Seletivo sejam estabelecidas de modo que a carga tributária sobre as bebidas em geral seja “muito maior” do que a já existente no sistema atual, a ponto de gerar um verdadeiro desestímulo ao consumo dessas bebidas.

"O que pode acontecer, se adotada a progressividade conforme o teor alcoólico, é um impacto no tipo de produto consumido: os que bebem produtos mais alcoólicos [mais tributados] migrariam para produtos menos alcoólicos [menos tributados], e isso contribuiria para a criação de hábitos de consumo de álcool menos nocivos ao corpo e ao sistema de saúde", avalia.

Proposta do governo era de alíquota única para bebidas alcoólicas

A diferenciação de imposto para as bebidas em razão do teor de álcool não era uma proposta do governo quando enviou a regulamentação da reforma tributária ao Congresso. As mudanças foram promovidas na reta final da aprovação do Projeto de Lei (PL) 68/2024 na Câmara dos Deputados, em julho.

De acordo com Caio Malpighi, advogado tributarista do VBSO Advogados e conselheiro jurídico da Associação Brasileira das Empresas de Luxo, o Imposto Seletivo sobre bebidas alcoólicas combina dois tipos de alíquotas: uma ad valorem (baseada no preço) e outra ad rem (um valor fixo por volume).

O jurista afirma que a proposta de progressividade da alíquota ad rem, que aumentaria de acordo com o teor alcoólico da bebida, foi inspirada por organismos internacionais como a OMS e já foi adotada em países como o Reino Unido e a Austrália, com o objetivo de incentivar o consumo de bebidas menos fortes.

Atualmente, incidem sobre as bebidas alcoólicas o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), que varia de 3,9% (para cervejas) a 19,5% (caso de vodca, uísque e licores) e o ICMS, que varia conforme o estado. Com a reforma tributária, esses impostos serão substituídos pelos novos tributos sobre consumo (CBS e IBS, a Contribuição e o Imposto sobre Bens e Serviços), mais o adicional do Imposto Seletivo.

O PLP 68/2024 está em tramitação no Senado. A proposta não precisaria passar pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), mas o presidente do colegiado, senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO), criou um grupo de trabalho para debatê-la. O GT é coordenado pelo senador Izalci Lucas (PL-DF).

Nesta última terça-feira (8), João Hamilton Rech, auditor fiscal e assessor especial da Receita Federal, afirmou durante uma audiência na CAE que a Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária (Sert) do Ministério da Fazenda, encaminhará algumas sugestões para a regulamentação da reforma tributária.

Dentre elas, figura uma proposta para reduzir a alíquota do IS para a cerveja artesanal. "Não está definido nenhum montante [de produção], mas vai ser proposta uma emenda para o Senado para dar uma alíquota diferenciada para baixo, menor, para esses pequenos produtores, não só de cerveja e de chope, mas talvez de outras bebidas alcoólicas. Mas os critérios serão definidos em lei", afirmou.

Como observou o auditor, toda essa discussão ainda está longe de ser esgotada. Isso ocorre porque o PL 68/2024 apenas estabelece o novo modelo de tributação que será adotado, progressivo ou igualitário. Após sua aprovação, o governo federal ainda terá de propor um outro projeto de lei ao Congresso, no qual serão definidas as alíquotas que incidirão sobre cada tipo de bebida alcoólica.

Cervejarias dizem responder por 2% do PIB nacional

Favorável à taxação progressiva de bebidas em razão do teor alcoólico, o presidente do Sindcerv afirma que, atualmente, o IPI faz as vezes do Imposto Seletivo. Além disso, Márcio Maciel diz que o setor cervejeiro precisa lidar com 27 alíquotas de ICMS, entre outros custos da cadeia produtiva.

“Com a reforma, defendemos que essa cadeia não seja onerada com uma carga ainda mais pesada, que certamente prejudicará um setor que gera mais de 2,5 milhões de empregos diretos, indiretos e induzidos e representa 2% do PIB nacional”, afirma.

O presidente do Sindcerv cita um estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV), que estima que 90% do valor produzido por uma cervejaria fica na localidade em que ela está instalada, gerando emprego e renda.

"Esse quadro de participação importante na economia do país não se reflete nas bebidas importadas, uma vez que a maior fatia da cadeia produtiva dessas bebidas não se encontra no Brasil", avalia. Destilados como vodca e uísque são, em sua maioria, importados.

Thúlio Carvalho avalia que, caso seja aprovada a progressividade do IS em razão do teor alcoólico das bebidas, as cervejas possam ter certa vantagem tributária em relação aos produtos destilados.

No entanto, o tributarista avalia que é importante destacar que a cerveja já sofre relevante tributação na atualidade, e é provável que ela continue a ser tributada nos mesmos níveis: "Não é que a carga tributária sobre a cerveja irá cair. Ela apenas sofreria uma tributação proporcionalmente menor, em comparação com bebidas mais alcoólicas".

De acordo com o Sindcerv, considerando toda a cadeia da produção, 56% do valor da cerveja consumida no Brasil corresponde a impostos, a taxa mais alta na América Latina. "Com a reforma, defendemos que essa cadeia não seja onerada com uma carga ainda mais pesada", afirma Márcio Maciel.

O que dizem os produtores de cachaça

O presidente do Ibrac diz que, da forma como está, o PL 68/2024 piora o já distorcido sistema tributário brasileiro aplicado às bebidas alcoólicas. De acordo com o instituto, que reúne 80% dos produtores de cachaça no país, somente a produção da bebida gera mais de 600 mil empregos diretos e indiretos, em micro, pequenas, médias e grandes empresas.

“Se utilizarmos como referência as já distorcidas alíquotas nominais IPI, o setor da cachaça paga cerca de quatro vezes mais impostos que a cerveja. Esse desequilíbrio representa um desafio significativo para a sobrevivência da cachaça e, caso o Senado Federal não altere o texto aprovado pela Câmara dos Deputados, esse desequilíbrio continuará”, afirma.

Nesse mesmo sentido, a ABBD argumenta que os fabricantes de cerveja no Brasil desfrutam de tratamento mais favorável em relação a impostos e marketing. Segundo a entidade, entre 2014 e 2018, a alíquota de IPI sobre a cerveja diminuiu em 60%, sendo inferior a 4%, enquanto cachaça e destilados pagam entre 16,25% e 19,5%.

À questão das alíquotas, somam-se restrições de marketing, publicidade, locais de venda e patrocínio que se aplicam aos destilados e vinho e não se aplicam à cerveja. “Alguém já se questionou o porquê de tais privilégios?”, questiona a associação em um artigo sobre o tema.

Imposto Seletivo visa desestimular o consumo elevado de álcool

Um ponto abordado por ambos os setores, ainda que sob perspectivas diferentes, é a questão da saúde do consumidor e, portanto, da saúde pública, já que o Imposto Seletivo trazido pela reforma tributária visa reduzir o consumo de bens que tragam prejuízos individuais e coletivos.

Márcio Maciel defende que taxar igualmente bebidas com teores alcoólicos diferentes não ajudará no atingimento do propósito de reduzir o consumo de produtos nocivos à saúde. “A taxação progressiva por teor alcoólico é uma boa prática internacional comprovada, que trará resultados positivos para o nosso país”, diz.

A indústria de destilados contra-argumenta. O Ibrac e a ABBD têm promovido a campanha Álcool é Álcool, para fortalecer a demanda por um imposto único para todas as bebidas alcoólicas no país.

Na campanha, é citado um parecer do Conselho Nacional de Saúde, da Recomendação 4 de 2024, que defende que o Imposto Seletivo não varie de acordo com o teor alcoólico, sob o risco de favorecer a indústria da cerveja, responsável por 90% do consumo de álcool em todo o país.

Qual bebida causa mais males à saúde?

Segundo as entidades de destilados, os danos causados à saúde pelo consumo de álcool no Brasil estão majoritariamente associados à cerveja, já que o consumo per capita do brasileiro é de 84,6 litros da bebida por ano, contra 4,6 litros de bebidas destiladas.

Calculados os percentuais alcoólicos, o consumo per capita de cerveja leva à ingestão de 4,23 litros anuais de álcool, em média, enquanto o consumo de destilados corresponde a 1,64 litro por ano.

A campanha Álcool é Álcool ainda cita dados de uma pesquisa realizada por uma fabricante de cerveja nacional para demonstrar a gravidade do consumo da bebida no país: a cerveja seria a bebida mais consumida antes de acidentes relacionados ao consumo de álcool e a mais associada a episódios de consumo pesado.

Uma das conclusões do estudo seria que a uma “maior implementação de intervenções baseadas em evidências para reduzir o consumo de cerveja pode ter o maior impacto sobre o consumo perigoso de álcool e problemas relacionados”.

Outro ponto defendido pela campanha é que uma lata de cerveja [350 ml com teor de 5%], uma taça de vinho [150 ml com teor de 12%] e uma dose de cachaça ou destilado [40 ml com teor de 40%] têm a mesma quantidade de álcool puro, cerca de 14g. O argumento é de que a conscientização sobre uma dose padrão é a melhor saída para o consumo moderado de álcool.

Thúlio Carvalho, no entanto, destaca que a função do IS é coibir o consumo de produtos nocivos e que, nesse sentido, se houver base científica para se afirmar que os destilados sejam mais prejudiciais à saúde do que as bebidas com menos teor de álcool embutido, seria razoável que a tributação fosse estabelecida de modo a desincentivar estas últimas.

"Assumindo que quem bebe irá continuar bebendo, seria uma forma de o Poder
Público incentivar aquele consumo que é menos prejudicial", avalia.

Alta de imposto pode fortalecer mercado paralelo de bebidas

Para o tributarista Caio Malpighi, caso a taxação progressiva seja estabelecida, a forma de sua implementação pode causar uma distorção de mercado, ao aumentar ainda mais a carga tributária sobre os destilados. Tal medida penalizaria de forma desproporcional quem consome essas bebidas de forma moderada.

O valor das bebidas destiladas já é mais elevado, o que já reduziria seu consumo em excesso. Além de prejudicar pequenos produtores, como os de cachaça artesanal, a medida ainda poderia ter outro efeito adverso: o fomento ao mercado ilegal e ao consumo de bebidas falsificadas, cujos efeitos seriam ainda mais nocivos para a saúde. Malpighi afirma que esse é um ponto crítico que deve ser considerado pelo Senado Federal.

“Quando os preços das bebidas alcoólicas aumentam significativamente em razão da carga fiscal, há um incentivo indireto ao contrabando e à falsificação de bebidas. O mercado clandestino pode se expandir, oferecendo bebidas de baixa qualidade e sem controle sanitário a preços muito mais acessíveis, especialmente para os consumidores de baixa renda, que são mais sensíveis às mudanças de preço", afirma.

"Isso não apenas prejudica a arrecadação governamental, como também representa um risco à saúde pública, agravando os problemas que o imposto busca solucionar”, complementa.

O presidente da ABBD, Eduardo Cidade, também alerta para um possível aumento no comércio e consumo de bebidas ilegais. "Nossa preocupação é que aumento da carga tributária para destilados possa estimular o consumo de bebidas ilegais, provocar evasão de impostos e atentar à saúde dos brasileiros", disse.

Por sua vez, Thúlio Carvalho avalia que é cedo para medir os impactos da aplicação das reforma tributária para as bebidas alcoólicas e que, em um primeiro momento, o maior impacto para o setor será o de se adaptar aos novos tributos que serão instituídos nos próximos anos.

"O impacto da progressividade do Imposto Seletivo, em si, ainda é difícil de estimar, pois não houve divulgação detalhada, pelo governo, de qual será a diferença de tributação entre a cerveja, de um lado, e os destilados, de outro", conclui o tributarista.

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