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trigo
| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

Um enorme estoque de trigo contaminado com agrotóxicos proibidos ou em níveis acima do permitido por lei foi encontrado em um silo da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e em outro armazém que pertence à empresa gaúcha Unnilodi, mas que presta serviços à estatal. Ao todo são 2.850 toneladas estocadas em Ponta Grossa, no Paraná, e Marau, no Rio Grande do Sul.

A descoberta foi feita pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) durante uma pesquisa para analisar perdas qualitativas e quantitativas na fase de armazenamento do grão. Pesquisadores identificaram quantidades de glifosato 100 vezes acima do limite seguro para o consumo humano.

“Provavelmente [o glifosato] foi usado para dessecação do trigo, que é uma prática que não é recomendada, mas alguns agricultores utilizam para adiantar o plantio da soja e uniformizar a lavoura”, explica Casiane Tibola, pesquisadora da Embrapa que coordenou o estudo. Além de não recomendado, o uso do agrotóxico para essa finalidade é proibido no Brasil.

Em uma das amostras retiradas do estoque em Marau, os pesquisadores registraram concentração de 5,206 mg/kg de glifosato. O limite máximo de resíduo permitido é de 0,05 mg/kg, valor 100 vezes inferior. A equipe da Embrapa monitorou os dois estoques por dez meses, de fevereiro a novembro de 2018 e encontrou várias substâncias em níveis fora da lei.

Por meio da assessoria, a Embrapa informou que as irregularidades foram comunicadas ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), mas não informou em qual data. O que é certo é que a Conab, órgão vinculado ao Mapa, teve acesso à pesquisa, que foi divulgada publicamente nesta semana em Curitiba.

A Conab informou em nota que o trigo contaminado com glifosato está estocado apenas no armazém de Marau, que é de uma empresa terceirizada: "O armazém contratado tem a obrigação de guardar e conservar os estoques públicos, disponibilizando-os para Conab na mesma quantidade e qualidade em que foram depositados". Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam, contudo, que o mais provável é que o glifosato tenha sido usado na pré-colheita e, portanto, que os grãos tenham chegado já contaminados ao armazém.

“O número [do glifosato] me assustou porque é o trigo que eu como em forma de pão, de pizza, de macarrão”, diz Paulo Cesar Corrêa, agrônomo e professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV), de Minas Gerais. Ele não participou diretamente do estudo, mas foi um dos técnicos que contribuíram para o conjunto de pesquisas encomendadas pela Conab sobre armazenamento e transporte de grãos no país e acompanhou a divulgação dos dados da Embrapa.

Apesar da elevada concentração de agrotóxicos, a autora do estudo classifica que o “problema foi pontual” e que “muitas ações de boas práticas foram efetuadas para que os produtores não utilizassem o glifosato”.

O trigo contaminado é oriundo de Pato Branco e, pelo tamanho do estoque, seria de vários produtores – as empresas, contudo, não foram reveladas. Os grãos foram adquirido pela Conab entre dezembro de 2017 e janeiro de 2018. Segundo apurou a reportagem, boa parte dos grãos continua armazenada nos silos. São 1.650 toneladas em Marau e, das outras 1.200, pelo menos uma parte continua estocada em Ponta Grossa.

Existe a possibilidade de que esse trigo possa chegar à nossa mesa? “Eu como moinho não posso aceitar esse produto com princípio ativo não regulamentado”, diz o presidente do Sindicato da Indústria do Trigo do Paraná (Sinditrigo-PR), Daniel Kümmel. Segundo ele, os moinhos não compram trigo cujos parâmetros não se encaixam na legislação e afirma que os produtores rurais têm consciência das práticas de manejo do grão. "Se aconteceu é uma particularidade", afirma.

O glifosato é o herbicida mais utilizado no Brasil – 173 mil toneladas foram comercializadas em 2017 – e foi por muito tempo classificado como “extremamente tóxico” pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas em 27 de agosto, 93 produtos à base da molécula tiveram a classificação de toxicidade reduzida, de acordo com levantamento da agência A Pública.

Procurado, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) se posicionou por meio de nota. Confira a íntegra:

"O Ministério da Agricultura tomou conhecimento da situação, que ocorreu em 2017, e participou da discussão sobre os problemas levantados. Foram realizadas coletas oficiais pela equipe do Mapa nos mesmos silos e os resultados indicaram níveis mais baixos.

A preocupação levantada pela Embrapa nessa pesquisa foi importante, pois, no caso do glifosato, está apontando o uso de um produto que não está autorizado para a cultura. Esse fato demonstra a necessidade de desencadear programas de fiscalização do uso de agrotóxicos pelos órgãos estaduais, que têm a competência legal para essa atividade.

Quanto ao demais produtos, nas amostras oficiais realizadas posteriormente observamos que também houve degradação, sendo que no caso do pirimifós-metilico não foram detectados nem traços do produto.

O Mapa monitora não só os grãos como outros produtos através do Programa Nacional de Controle de Resíduos e Contaminantes (PNCRC). As amostras são coletadas conforme cronograma estabelecido previamente. Quando constatada uma violação, os resultados são enviados para os órgãos estaduais realizarem a investigação da origem do problema, pois como informado acima, cabe aos órgãos estaduais fiscalizarem o uso de agrotóxicos.

No caso da legislação da classificação vegetal, as multas podem chegar até R$ 532.050,00, pois é calculada sobre o valor do produto. Também pode haver a apreensão do produto".

Pesticidas além do limite

Além do glifosato, a presença de outros agrotóxicos que extrapolam do nível autorizado por lei foi identificada no lote de trigo. No estoque de Ponta Grossa foram encontrados oito princípios ativos de pesticidas acima do limite máximo de resíduos. Em Marau, nove.

As amostras colhidas pela Embrapa em Marau evidenciaram a presença de fenitrotiona e pirimifós-metílico, dois inseticidas aplicados durante a fase de armazenamento, em concentrações duas vezes superiores às permitidas por lei.

Em uma das amostras, a fenitrotiona alcançou o valor de 1,99 mg/kg, sendo que o limite permitido é de 1 mg/kg. Já o pirimifós-metílico, cujo limite é de 5 mg/kg, ultrapassou 12 mg/kg em pelo menos três amostragens.

Nas amostras retiradas do estoque de Ponta Grossa foi detectada a presença do inseticida fosfeto de alumínio acima do permitido pela legislação.

Em nota, a Conab afirma que "o resíduo encontrado (na forma de fosfeto de alumínio) advém de amostragem realizada logo em seguida da realização de tratamento fitossanitário".

O uso desses produtos é permitido e, inclusive, indicado para o controle de pragas, mas o fato de estarem presentes em quantidades acima dos limites significa “excesso de uso”, “manejo talvez inadequado” e “falta de fiscalização”, segundo o professor Corrêa, da Universidade Federal de Viçosa.

Após a aplicação, os agrotóxicos têm um prazo para se degradarem. “O defensivo, em no máximo 45 dias, tem que desaparecer. Ela [a pesquisa do Embrapa] detectou porcentagens maiores do que é o admissível com 281 dias [de armazenamento]”, explica Corrêa, se referindo aos inseticidas usados no silo de Marau.

Questionada sobre qual fim levará o estoque, a Conab informou que "a empresa ainda avalia o que será feito".

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