
A meia dúzia de estrangeiros que chegou a esta remota vila no oeste da África trouxe notícias alarmantes que foram transmitidas pelo boca a boca entre agricultores: seus modestos campos, cultivados e passados de geração em geração, agora eram controlados pelo líder da Líbia, o coronel Muammar Kadafi, e todos os agricultores teriam de deixar o local. "Eles nos disseram que esta seria a última estação de chuvas para nós cultivarmos nossos campos; depois disso, eles demoliriam todas as casas e tomariam as terras", diz Mama Keita, 73 anos, líder desta vila coberta por um cerrado denso e espinhoso. "Disseram que Kadafi é o dono da terra", lamenta.
Em toda a África e no mundo em desenvolvimento, uma nova corrida global por terras está devorando grandes trechos de terreno arável. Apesar das tradições, os espantados moradores das vilas estão descobrindo que o governo africano é dono de suas terras e as vinha arrendando, muitas vezes por preços módicos, a investidores e governos estrangeiros há décadas.
Organizações como as Nações Unidas e o Banco Mundial dizem que a prática, se feita de forma justa, poderia ajudar a alimentar a crescente população mundial ao introduzir a agricultura comercial de grande escala em lugares onde isso não existe. Mas outros condenam os acordos, taxando-os de tomadas de terras neocolonialistas que destroem vilas, desalojam dezenas de milhares de agricultores e criam uma massa de pobres sem terra. Para piorar, eles sustentam, grande parte dos alimentos tem como destino países mais ricos. "A segurança alimentar do país deve estar na mente de todos, em primeiro lugar", disse Kofi Annan, ex-secretário geral da ONU que hoje trabalha na questão da agricultura africana. "Caso contrário, trata-se de exploração clara e não funcionará. Já vimos uma luta pela África antes. Acho que não queremos presenciar mais outra", adverte.
Surpresas
As pessoas vêm sendo retiradas de suas terras em países como Etiópia, Uganda, República Democrática do Congo, Libéria e Zâmbia. Não é incomum que investidores cheguem a terras supostamente desocupadas. Em Moçambique, uma empresa de investimentos descobriu uma vila inteira, até com agência dos correios, no que tinha sido descrito como terreno desocupado, segundo Olivier de Schutter, inspetor da área de alimentos da ONU.
No Mali, cerca de 1,2 milhão de hectares ao longo do Rio Níger e seu delta são controlados por um fideicomisso (substituição testamentária) administrado pelo governo, chamado de Office du Niger. Em quase 80 anos, apenas 81 mil hectares da terra tinham sido irrigados, então o governo considera os novos investimentos uma dádiva. "Mesmo que déssemos a terra à população de lá, eles não teriam meios para desenvolvê-la, nem mesmo o Estado", diz Abou Sow, diretor executivo do Office du Niger.
Sow listou países cujos governos ou setores privados já fizeram investimentos ou expressaram interesse: China e África do Sul na cana-de-açúcar: Líbia e Arábia Saudita no arroz; além de Canadá, Bélgica, França, Coreia do Sul, Índia, Holanda e multinacionais como o Banco de Desenvolvimento da África Ocidental.
A grande extensão de terra cedida a investidores privados está a muitos anos da produção. No entanto, autoridades observaram que a Líbia já gastou mais de US$ 50 milhões na construção de um canal de 39 quilômetros e uma estrada, aberta por uma empresa chinesa, beneficiando moradores locais. Toda propriedade rural afetada, Sow acrescentou, incluindo 20 mil propriedades afetadas pelo projeto líbio, receberá indenização. "Se eles perderem uma única árvore, pagaremos o valor dessa árvore", disse.
Protestos
Entretanto, ainda há raiva e desconfiança. Num protesto ocorrido em novembro do ano passado, centenas de produtores rurais exigiram que o governo interrompa esses acordos até que eles tenham voz. Vários disseram que tinham sido espancados ou presos por soldados, mas que estavam prontos para morrer para manter suas terras. "A fome vai começar logo, logo", grita Ibrahima Coulibaly, líder do comitê coordenador de organizações agrícolas no Mali. "Se as pessoas não exigirem seus direitos, perderão tudo!" "Ante!", gritavam membros da multidão em bamanankan, a língua local. "Nos recusamos!" Kassoum Denon, chefe regional do Office du Niger, acusou os opositores maleses de serem pagos por grupos ocidentais ideologicamente opostos à produção agrícola em larga escala. "Somos responsáveis por desenvolver Mali", ele diz. "Se a sociedade civil não concorda com a forma como estamos fazendo, que vão embora", critica.
Sekou Traore, 68 anos, morador de uma vila, ficou em estado de choque quando autoridades do governo disseram, no ano passado, que a Líbia agora controlava sua terra e começaram a medir seus campos. Ele sempre tinha considerado a terra como sua, pois foi passada de pai para filho. "Antes que eles destruam nossas casas e tomem nossos campos, queremos que eles nos mostrem as novas casas onde viveremos, e os novos campos que cultivaremos", ele disse, no protesto de novembro. "Temos tanto medo", afirma o homem, falando pelos 2.229 moradores da vila. "Seremos vítimas dessa situação, disso nós temos certeza", lamenta.



