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Às vezes um episódio pode ser a oportunidade para desvelar outros temas. Revelar conteúdos profundos de uma sociedade. Os episódios, como dizia Fernand Braudel (1902-1985), são como a espuma das ondas no mar. São o ápice fugaz e instantâneo de movimentos lentos e grandiosos das águas profundas. 

Assim parece ser o desenrolar de posicionamentos, críticas, apoios, reflexões em torno de algumas opiniões expressadas pela professora Rejane Barreto Jardim (ICH/UFPEL), doravante chamada de “autora” por de fato ter a autoria das opiniões que geraram tanta polêmica.

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O episódio se deu no contexto da prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva no último dia 09 de abril. Poderia tratar de discutir os termos e motivações da referida professora, retomar os argumentos contra ou à favor. Mas seria dar uma importância maior do que o episódio possui. Pois o que importa são as ações/reações derivadas do mesmo. Elas sim explicitam, trazem a superfície, o que deveria ser o grande debate nacional que estamos deixando escapar pelas brechas das “redes sociais”, que de sociais tem apenas o nome. 

Dentre os muitos desdobramentos daquele episódio, quero destacar um em particular para, através dele, tratar de propor uma discussão de outra ordem. Me refiro a um artigo, publicado aqui mesmo na Gazeta do Povo, intitulado “A decadência das Ciências Humanas”, de autoria do Prof. Carlos Adriano Ferraz (Dep. de Filosofia/UFPEL). 

Escolho este artigo entre tantas manifestações observadas nas duas últimas semanas por acreditar que ele revela muito mais do que as palavras nele contidas. Pretendo destacar alguns trechos do artigo, embora saiba que ao fazê-lo posso abrir margem para que se diga depois que as palavras foram retiradas de seu contexto. Visando diminuir esse efeito tão usual, peço que leiam, por favor, o artigo do Prof. Ferraz. Assim, terão a íntegra de suas ideias na sequência em que ele as imaginou e organizou.

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Minha primeira observação se dá sobre a forma como o autor situa a docente Rejane Jardim em um determinado “campo” político-ideológico e, da mesma maneira, apresenta ao leitor quem são os adversários da autora e de seus “pares”, onde suponho, estou incluído. Vejamos: o Sr. Ferraz diz que a autora ao usar o termo “fascistas” se refere a um conjunto maior de atores. 

“Aos olhos dela e dos seus pares, todo aquele que não concorde com eles é “fascista”. Esse é um termo geral que eles usam para ‘liberais’, ‘conservadores’, ‘estudantes que realmente se dedicam aos estudos e se preocupam com o futuro’, ‘professores que preparam suas aulas com diligência’, ‘trabalhadores preocupados em pagar suas contas no final mês’, ‘empreendedores’, etc.” 

O que temos aqui é já um exercício textual interessante, onde o Sr. Ferraz diz aos seus leitores que a autora considera fascistas os liberais, os conservadores, os estudantes que realmente se dedicam aos estudos e se preocupam com o futuro, os professores que preparam suas aulas com diligência, os trabalhadores preocupados em pagar suas contas no final mês, e os empreendedores. 

De uma só tacada, o leitor passa a ver a referida professora como alguém que não sabe distinguir o que seria um fascista e um não fascista. E isto porque ela, se supõe, não domina a literatura sobre o fascismo. No mesmo movimento, o leitor é levado a concluir que existem professores que preparam suas aulas com diligência, alunos que se dedicam aos estudos, trabalhadores que se esforçam; e existem os “esquerdistas”, que são o oposto disso, logo não preparam suas aulas (se forem professores), não estudam (se forem alunos) e não se preocupam em como pagar suas contas (se forem trabalhadores). 

Um belo início de contribuição ao debate, quando já se determina todas as posições daquele à quem se está criticando sem que ele as tenha explicitado. Mas isto não me parece nem de perto o fundamental no texto do Sr. Ferraz. Pois seria permanecer na arena por ele estabelecida, onde “eles” (nós?) tem por motivação “...apenas agredir o adversário. Portanto, demandar alguma coerência deles, mesmo que conceitual, é perda de tempo.” 

Bom, vejamos se consigo demonstrar que demandar de nossa parte alguma coerência conceitual é ou não uma perda de tempo. Inspirado nas palavras do próprio Sr. Ferraz, não irei utilizar o Argumentum ad hominem, pois pretendo justamente contrapor seus argumentos, e não atacar sua pessoa, o que parece ser mais o seu estilo. Após dizer que a universidade tem uma tradição de origem ligada às humanidades, citando os campos do saber no início destas instituições na Europa, demonstrando uma razoável erudição, nada excepcional para a posição que ocupa, o autor ajuíza a seguinte opinião: 

“...a universidade surge preocupada com a ‘Verdade’ (bem como com o ‘Bem’, com a Moral’, com a ‘Sabedoria’, etc), algo presente em muitos lemas de universidades centenárias, por exemplo na Europa e nos EUA. […] Todavia, desafortunadamente, “Verdade” (como os demais conceitos que outrora inspiraram o surgimento das Universidades) passou a ser um termo assignificativo, vazio, e, mesmo, “politicamente incorreto”, especialmente em uma cultura acadêmica que fomenta o relativismo (sobretudo, e ironicamente, nas humanidades).” 

É aqui que encontramos o ponto ao qual me referi no introito desse artigo. É aqui que chegamos ao cerne do debate que deveríamos estar realizando. O colega Ferraz nos permite concluir que compartilha de uma certa visão do que seja a Universidade, o propósito inicial dela com a “verdade” e seu suposto antagônico, o relativismo. Me causa espécie que o autor, vindo do campo da Filosofia, jogue assim o conceito de relativismo, como se esse fosse um corpo estranho ao campo ao qual pertence. Desconsidera que o relativismo remonta aos sofistas da Grécia antiga. Silencia quanto ao alcance do relativismo na moral, na religião e, desde o século XX, ao menos, na cultura como um todo. 

O relativismo cultural ou histórico não é uma pura e simples negação da verdade. É uma desconstrução de uma certa concepção de verdade, aquela desenvolvida pelos europeus na retomada do pensamento da antiguidade a partir do século XVI, e seu desdobramento na constituição das ciências entre os séculos XVIII e XIX. Todo esse processo se dá entre mentes europeias, que desde seu ponto de vista, olham para o mundo e tratam de defini-lo, quantificá-lo, classificá-lo e ordená-lo.

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Não pretendo cansar o leitor recordando as relações extremas das origens das ciências com a expansão do imperialismo e do colonialismo europeus. Há bons livros para este fim. Mas quero destacar que o relativismo é uma desconstrução desta pretensão de uma verdade universal “descoberta” e afirmada pelos europeus. Relativizar é acreditar que, além da forma como os europeus interpretaram o mundo, existiram e existem outras. Muitas. Diversas. 

A expansão europeia iniciada nos anos de 1400, com a primazia dos portugueses, criou o simulacro de que, por uma certa superioridade moral, civilizacional, eles seriam os responsáveis por colocar ordem em um mundo de aparente caos. É nesse processo que são construídas as noções de selvageria, barbárie e civilização, sendo estas etapas “naturais” a todas as sociedades, estabelecendo assim uma hierarquia de povos e, consequentemente, de seus saberes e formas de explicar o mundo. 

Eis então o motivo de nosso desacordo, meu e do Sr. Ferraz. Ele afirma que, em função do relativismo, de um abandono da busca de uma verdade, as humanidades estariam em decadência, se degenerando. É baseado nessa conclusão que ela acaba nos informando que concordaria com aqueles que pretendem diminuir ou mesmo acabar com as humanidades nas universidades: 

“Embora esteja em um curso que seria afetado diretamente por tal medida, me sinto impelido pelo bom senso a conceder aos nossos algozes que eles estão certos em considerar que há desperdício de recursos públicos e tempo nas humanidades. E isso não apenas pelas universidades, mas, mesmo, por agências de fomento.” 

A partir deste ponto, e para dar sustentação aos seus argumentos, o Sr. Ferraz passa a dar alguns exemplos desta degenerescência das Ciências Humanas. Nos fala de um evento ocorrido em 2014 na Universidade Federal Fluminense (UFF), intitulado “Corpo e resistência — 2º seminário de investigação & criação”. Ao final do evento houve uma festa chamada de “Xereca Satânik”, onde teria ocorrido uma performance de uma “militante feminista” que costurou a vagina após enfiar em seu interior uma bandeira do Brasil. Não fica clara a relação da festa com as ciências humanas, que dirá com a suposta decadência destas. Parece mais querer indicar que a Universidade e seu “solo sagrado” foram vilipendiados por satanistas orgiásticos, creio eu. 

A seguir, aponta para alguns trabalhos acadêmicos acerca da trajetória intelectual de Mano Brown, vocalista do grupo Racionais MCs (Unicamp), sobre “interações homoeróticas em banheiros públicos” (UFBA), e sobre Valesca Popozuda” (UFF). 

Mano Brown, por exemplo, é um compositor e intérprete que traduz sentimentos e concepções das comunidades das periferias. Seu grupo, Racionais Mcs está em atividade desde 1988. Suas canções expressam a violência cotidiana contra as populações pobres e negras do Brasil. Mas parece que o Sr. Ferraz acredita que a Academia não deve analisar esse fenômeno artístico, cultural e político. O homoerotismo é uma realidade. Como ignorar esse aspecto do comportamento humano? Como não analisar sua relação com os lugares vistos como degradantes, como são os banheiros públicos? Digo degradantes no sentido de que ali se imagina que ocorram coisas “bizarras” e logo seria o local adequado para a realização do homoerotismo no entender de alguns. 

Mas para o Sr. Ferraz esse é um tema cujo estudo contribui para degenerar as Ciências Humanas. Sobre Valesca Poposuda, imagino que esteja se referindo a dissertação de Mestrado “A representação feminina por meio do funk no Rio de Janeiro: Identidade, feminismo e indústria cultural – My pussy é o poder”, tema do trabalho de Mariana Gomes onde analisa o papel social da cantora Valesca Popozuda e as relações de gênero no mundo do funk. 

Talvez o Sr. Ferraz fique um tanto quanto mais contrariado se souber que Valesca Poposuda foi também objeto do Trabalho de Conclusão de Curso de Lucas Fernando Souza na Universidade Federal de Rondônia (UNIR), intitulado “Valesca Popozuda: A dominação feminina em discurso”. 

Rappers, Homossexualidade e Funk parecem ser temas sobre os quais não se deveria usar o conhecimento científico das humanidades em prol de sua análise e interpretação. Sou levado a concluir que se tratam de temas menores a luz das ideias de nosso filósofo. Ainda que representem a cultura e a vivência de milhões de brasileiros e brasileiras, e sejam fenômenos centrais para discutir a atualidade do país e suas contradições. 

Mas nosso articulista vai além. Está preocupado com a avaliação que a área de Ciências Humanas recebeu por parte da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) referente ao quadriênio 2013-2017, na qual todas as áreas tiveram um crescimento em programas de pós-graduação de excelência, exceto as Ciências Humanas. Nem uma palavra sobre essas avaliações e as discussões que o meio acadêmico tem feito acerca de suas métricas, critérios, exigências, desequilíbrios e, sobretudo, incentivo a um produtivismo quantitativo.

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A CAPES é sim um dos principais órgãos de fomento a pesquisa científica acadêmica no Brasil. Mas não é através dela e seus parâmetros que tiramos quaisquer conclusões sobre a qualidade das pesquisas, que dirá os rumos que as mesmas devam tomar. Pois isso depende muito mais de uma discussão de qual Universidade se quer, sem que haja um modelo universal, cuja excelência seja inquestionável. 

O Sr. Ferraz acredita estar em posição de definir qual a inspiração por trás das pesquisas que considera de nível inferior e desvirtuantes da “boa” Ciência Humana: 

“O princípio adotado nesse tipo de dissertação e tese é claro: quanto mais agressivo à inteligência e ao senso moral (e, mesmo, estético), tanto melhor.” 

Pronto. Os que realizam os estudos que o Sr. Ferraz abomina o fazem buscando temas que agridam a inteligência e o senso moral. Mas fica nos devendo uma explicação de qual inteligência e qual moral se trata. Isto para não falar em estética, pois abriríamos um outro debate. Devo me sentir menos inteligente por aceitar esses temas como relevantes para as pesquisas em Ciências Humanas? Da mesma forma, me ressinto de não saber sobre que Moral estamos falando. Ou existe apenas uma única Moral e os que não a seguem estão em algum tipo de postura criminal de tempo integral? 

Até aqui, creio que fica evidente que estamos diante de alguém que acredita que as Ciências Humanas possuem um escopo de temáticas as quais deva se dedicar, excluindo todas aquelas cuja relevância é tida como inexistente. Uma pena não sabermos então a quais temas deveríamos estar dedicando nossos esforços e recursos. Ao menos teríamos mais elementos para discutirmos sua pertinência, ou a falta dela. Mas nosso autor nos oferece ainda uma baliza para medir o que deve ficar dentro e o que deve ficar fora da Universidade: 

“...tudo isso em nome de algumas ideologias e posições político-partidárias. Por essa razão abundam atualmente eventos, disciplinas, etc, sobre ‘ideologia de gênero’, ‘construção do saber” (como se não houvesse Verdade), e, é claro, sobre o suposto “golpe de 2016”, um tema mais na moda no atual momento.” 

Fiquei surpreso pelo fato de que autor levou 10.087 carácteres para chegar aos termos “ideologias” e “posições político-partidárias”. Em geral, textos deste teor o fazem bem antes, no primeiro ou segundo parágrafo. E isto porque há um outro elemento bastante comum no artigo do Sr. Ferraz. A ideia de que apenas as concepções de esquerda constituem ideologias. 

As demais, como o Liberalismo, eu suponho, não são ideologias, mas “verdades” que expressam a “natureza humana” tal como ela é. Já é hora de que retiremos o Liberalismo, e outras vertentes do espectro das teorias políticas, da confortável posição de negar seu caráter ideológico. Essa estratégia é a que tem sido usada para marginalizar teorias e concepções do materialismo histórico dialético e suas vertentes, ao passo que se confere um status de verdade e de inevitabilidade da certeza das ideias do Liberalismo, e mais recentemente do Neoliberalismo. Vivemos sim um choque de ideologias. Um choque de concepções de mundo e de sociedade. De interpretações sobre o passado e a história. E, consequentemente, de que sujeitos projetamos para o futuro. 

Jogar a pecha de “posições político-partidárias” sobre as interpretações de historiadores, sociólogos, cientistas políticos, arqueólogos, antropólogos e filósofos que analisam processos pretéritos ou atuais é, no mínimo, desonestidade científica e intelectual. 

É dizer aos estudantes que os que criticam o Liberalismo e seus desdobramentos em todas as instâncias de nossas vidas estão errados e são mal intencionados. Pois a “verdade” está em outro lugar. E não em suas ideias, pois estas estão contaminadas por “ideologias”. Que isto seja dito por algum leigo destes que hoje pululam nas redes sócias virtuais não chega a ser um problema. Mas vindo de alguém do universo acadêmico, que imagina-se sabe o que seja uma ideologia, é descabido e arrogante. Seria mais “científico” e altamente elevado se tivéssemos o reconhecimento por parte de nossos detratores de que eles também se pautam por uma ideologia. Assim, estaríamos em um patamar mais condigno com a verdade que o Sr. Ferraz tanto presa. Mas não. Infelizmente, o Sr. Ferraz já tem a caixa na qual nos classifica. E com esta lupa, para usar uma metáfora bem “científica”, arrola os temas que são responsáveis pelo rebaixamento das Ciências Humanas. Ao se referir aos diversos eventos que estão ocorrendo em várias Universidades sobre o denominado “Golpe de 2016”, o autor diz: 

“...basta vermos a programação para percebermos que o tal seminário reproduzirá o tradicional discurso sobre os males do capitalismo, da malignidade do pensamento liberal, da ardilosa conspiração das “elites”, bem como, não poderia faltar, vão discutir também questões de gênero, direitos dos povos indígenas, imperialismo estadunidense e roubo de nossas riquezas naturais, etc. […] Quase todos os temas clássicos, e já nauseantes, do universo das (des)humanidades estarão lá.” 

Certamente. Somos nauseantes quando afirmamos a defesa incondicional das pautas feministas em uma sociedade patriarcal. Quantos perfis de redes sociais resistiriam dois minutos até encontramos a primeira piadinha misógina e machista? Estas inocentes “brincadeiras” não são periféricas ao patriarcado. São parte estruturante do mesmo. E convivem placidamente com elogios às mulheres nos mesmos perfis, pois a como o próprio autor diz:

“...nos termos de Orwell esse é o “duplipensar”: “Doublethink means the power of holding two contradictory beliefs in one’s mind simultaneously, and accepting both of them”).” 

Traduzindo, significa o poder de manter simultaneamente duas crenças contraditórias na mente de uma pessoa e aceitar ambas. Somos nauseantes quando nos colocamos ao lado dos povos indígenas, e oferecemos o poder simbólico da Academia e nossos espaços para que se discuta a condição absolutamente marginal relegada a estes seres humanos com os quais dividimos a história e o território, sendo todos um só povo brasileiro. 

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Somos nauseantes quando fazemos a análise crítica do capitalismo como um sistema global com pretensões de universalização dos costumes e hábitos. Somos nauseantes quando debatemos a estratificação social no Brasil e o papel histórico das elites econômicas, políticas e culturais do país. Por tudo isso e muito mais, acabamos por provocar náuseas, desconforto. 

É exatamente isto que a ciência faz. Ela provoca o desconforto. Ela induz a deslocamentos. Ela abala certezas. Sem esses pressupostos não há ciência. E quando debatemos entre nós, os membros da “Academia”, os recursos discursivos não resistem por muito tempo. 

Por exemplo, quando o Sr. Ferraz trata de dizer que há uma diferença em ser contra as cotas e pregar o racismo somos tentados a concordar com ele. Mas isso apenas até sabermos quais são os argumentos apresentados para se opor a política de cotas raciais. Mas o autor não nos oferece os argumentos. Apenas usa um artifício de descolamento de temas, como se fosse possível opor-se às cotas raciais sem estabelecer nenhuma relação com o racismo e a escravidão. Não se trata de defender o racismo e a escravidão ao se opor as cotas, mas sim de impedir que se combata a permanência do racismo e do pensamento escravista no país. Não é preciso ser psicopata para entender isso. 

Por fim, o Sr. Ferraz nos brinda com o coroamento de sua concepção de Universidade, que acaba por revelar sua visão de mundo, acaba por confessar a primazia do pensamento ocidental, raiz de toda sua cosmovisão e posição ideológica, que trata de ocultar sob um manto de “verdade”: 

“Assim, as Humanidades, que pavimentaram o caminho para o avanço civilizatório, são, hoje, ironicamente, a causa de retrocesso nesse processo civilizatório. Em verdade, hoje elas colocam em risco os pilares da civilização ocidental, tendo já causado diversas rachaduras em seus pilares.” 

Creio que terminamos por concluir que estamos diante de alguém que acredita que a civilização ocidental ofereceu o que há de melhor na humanidade. Que é sobre os pilares desta civilização que devemos nos assentar. E questionar essa matriz de pensamento é colocar em risco a própria humanidade. Pois bem, permitam-me dizer-lhes que iremos questionar estes pilares. Iremos dissecá-los, analisá-los e demonstrá-los, tal como fizeram os europeus com os corpos de africanos no século XIX para “demonstrar” sua inferioridade moral e física. E iremos fazê-lo por duas razões. 

A primeira, porque a ciência assim o exige. A mesma ciência criada pelos europeus nos legou o primado da dúvida, da desconstrução de uma tese ou teoria. Nos deixou a tarefa de questionar todo e qualquer princípio de verdades absolutas. O mais imaturo dos filósofos bem o sabe. A segunda, porque o mundo mudou. Porque estamos já em 2018. E outros povos, que não os europeus, reclamam o direito a que se conheça e dialogue com suas visões de mundo. Porque mulheres já estão fartas do fardo do patriarcado. Porque negros e indígenas já disseram há muito tempo que não serão os brancos eurocêntricos e etnocêntricos que irão lhes descrever, estudar e explicar, destinando-lhes uma classificação em uma escala qualquer.

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Nada disso significa que estejamos renunciando ao saber científico de origem europeia. Apenas afirmamos que, se queremos conhecer o mundo e tudo que ele contém, não podemos fazer apenas a partir dos “pilares” estabelecidos por uma parcela da humanidade. Precisamos ouvir as múltiplas vozes, enxergar as múltiplas cores, saborear os múltiplos sabores. E isto se faz pintando a Universidade de gente. De seres humanos com todas as suas contribuições. Prezando sempre pela dignidade e pela preservação dos direitos. Excetuados os fascistas, pois estes não possuem direitos. 

Para voltar a metáfora com a qual abri esse artigo, acredito que a professora Rejane Jardim jogou sua rede para pescar peixes fascistas. Mas acabou trazendo à tona uma enorme Moby Dick. Pois sua polêmica permitiu que soubéssemos que há muitas ideias sobre o que sejam Ciências Humanas e a que fins se destinam as Universidades. Descobrimos também que, nesse maremoto de ideias as Ciências Humanas não estão em decadência. Estão se reinventando. Estão entrando no século XXI. Por mais que alguns de seus praticantes desejem voltar ao século XIX. 

Artur Henrique Franco Barcelos é Historiador e Arqueólogo. Doutor em História das Sociedades Iberoamericanas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor do Bacharelado em Arqueologia e do Mestrado em História da Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

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