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“Kit Gay”: o que é mito e o que é verdade
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Nesta terça-feira (16), o ministro Carlos Horbach, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mandou retirar do ar vídeos em que o candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro (PSL) diz que o livro “Aparelho Sexual e Cia.”, editado no Brasil pela editora Companhia das Letras, era parte da cartilha “Escola Sem Homofobia”, produzida em 2010, e que ficou conhecida como “Kit Gay”. Embora o livro de fato não faça parte da cartilha, há farta documentação e registros públicos de que o material de fato existiu (e pode inclusive ser acessado na internet; veja mais abaixo), de que o MEC supervisionava e discutia a elaboração do material e de que ele seria recomendado para o Ensino Fundamental II (crianças a partir de 11 anos).

O ministro do TSE baseou sua decisão em comunicado oficial do MEC que afirma que “não produziu e nem adquiriu ou distribuiu” o livro Aparelho Sexual e Cia., que tampouco consta do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE).

O ministro Horbach afirmou que “é igualmente notório o fato de que o projeto ‘Escola sem Homofobia’ não chegou a ser executado pelo Ministério da Educação, do que se conclui que não ensejou, de fato, a distribuição do material didático a ele relacionado”, mas o projeto foi, sim, elaborado com orientação técnica da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) do Ministério da Educação (MEC).

Ele só não foi executado por oposição de parlamentares, que levaram o governo da então presidente Dilma Rousseff (PT) a vetar o material. Pode-se até discordar do nome pelo qual a cartilha foi batizada por seus opositores à época, mas não sobre sua existência, que pode ser confirmada abaixo.

O papel do MEC

O Kit Gay é como ficaram conhecidos a cartilha “Escola Sem Homofobia” e materiais anexos desenvolvidos pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais (ABGLT), a Pathfinder Brasil, a ECOS-Comunicação em Sexualidade e a Reprolatina-Soluções Inovadoras em Saúde Sexual e Reprodutiva. A cartilha orientava professores em atividades de combate à homofobia a ser desenvolvidas pelos alunos e trazia indicações de filmes e vídeos (veja mais sobre o conteúdo abaixo).

Conforme consta do próprio documento, o projeto contou com orientação técnica da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) do Ministério da Educação (MEC) e com financiamento de emenda parlamentar aprovada pela Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados, por iniciativa da deputada Fátima Bezerra (PT-RN).

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“O Projeto Escola sem Homofobia visa contribuir para a implementação e a efetivação de ações que promovam ambientes políticos e sociais favoráveis à garantia dos direitos humanos e da respeitabilidade das orientações sexuais e identidade de gênero no âmbito escolar brasileiro”, diz o documento, finalizado em setembro de 2010.

Ainda em novembro de 2010, no seminário “Escola Sem Homofobia”, ocorrido na Comissão de Legislação Participativa, o então secretário do MEC André Lázaro chegou a contar que os responsáveis do MEC pela campanha discutiram, entre outras coisas, o conteúdo dos vídeos indicados pelo material.

“Vale a pena contar a seguinte história: uma dificuldade que tivemos diz respeito a um dos materiais didáticos, um filme, que trazia um beijo na boca [...] Um beijo lésbico na boca. Ficamos três meses discutindo até onde entrava a língua. (Risos.)”, contou Lázaro em tom jocoso. O conteúdo completo da sua fala pode ser lido nas notas taquigráficas da Câmara dos Deputados.

Fernando Haddad era ministro da Educação desde 2005 e, embora seja crível que não conhecesse minúcias de todas as ações que se desenrolavam sob a alçada do ministério, há indícios de que ele sabia da elaboração do material. Em reportagem da TV Record de maio de 2011, Beto de Jesus, então diretor da ABGLT, declarou que tinha conversado pessoalmente com Fernando Haddad em maio de 2010 e que ele sabia do material.

“O ministro amarelou, infelizmente, é uma vergonha ele falar isso, porque eu estive com ele, nós falamos dessa matéria, nós conversamos sobre isso, ele sabe do que se trata”, declarou.

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Beto se referia às respostas que o governo Dilma Rousseff (PT) deu às manifestações de deputados que denunciaram os materiais, entre eles o deputado Jair Bolsonaro, à época no PP-RJ, e o então deputado Anthony Garotinho, que naquela época estava no PR-RJ. No início de maio de 2011, Haddad declarou que o material ainda estava sendo preparado e que só seria distribuído às escolas após a aprovação da Comissão de Publicações do MEC.

Haddad chegou a se encontrar com os parlamentares críticos do projeto e aceitou receber sugestões, mas negou, à época, que tivesse alterado o conteúdo do material. No final do mês, no entanto, a presidente Dilma Rousseff (PT) decidiu pela suspensão do material. "O governo entendeu que seria prudente não editar esse material que está sendo preparado no MEC”, declarou o então ministro da Secretaria-geral da Presidência, Gilberto Carvalho.

Faixa Etária

Em 2011, o então ministro Fernando Haddad declarou que o material estava sendo preparado apenas para o Ensino Médio, mas uma reportagem do jornal O Globo que teve acesso à cartilha informa que nela se lia que "essas dinâmicas podem ser aplicadas à comunidade escolar e, em especial, a alunas/os do ensino fundamental (6º ao 9º ano) e do ensino médio". No documento de 123 páginas que a Revista Nova Escola trouxe a público em 2015 não consta uma indicação de faixa etária para os materiais, mas há capítulo dedicado à inclusão de “temas transversais” no currículo do Ensino Fundamental.

Também no seminário “Escola Sem Homofobia”, de novembro de 2010, o então secretário do MEC André Lázaro ponderou, a respeito da discussão sobre o beijo lésbico, que  “quis contar esse detalhe menor para saberem da delicadeza com que tratamos o assunto. É isto. Pode ter beijo num filme que vai ser passado para o ensino fundamental? Pode ou não pode?”. Logo em seguida, ele pondera que talvez o material não fosse aprovado integralmente, como de fato acabou acontecendo depois da oposição dos parlamentares.

A cartilha não era uma iniciativa isolada, como o próprio Jair Bolsonaro afirma no vídeo que o TSE mandou tirar do ar, mas era parte de uma iniciativa mais ampla do Ministério da Educação, o Projeto Escola sem Homofobia, gestado a partir das diretrizes lançadas no Programa Brasil sem Homofobia, de 2004, e da I Conferência Nacional de Políticas Públicas para a População LGBT, ocorrida em junho de 2008, sob coordenação da Subsecretaria de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República.

O documento inaugural dos esforços da gestão petista nessa área, o “Brasil sem Homofobia – Programa de Combate à Violência e à Discriminação”, de 2004, já propunha ações integradas na área de educação, como “fomentar e apoiar curso de formação inicial e continuada de professores na área da sexualidade” e “estimular a produção de materiais educativos (filmes, vídeos e publicações) sobre orientação sexual e superação da homofobia”.

O conteúdo da cartilha

Mesmo com o objetivo oficial de combater a homofobia, a cartilha “Escola Sem Homofobia” é permeada de ideologia de gênero, que é um conjunto de teorias que tentam separar o que se chama de “identidade de gênero” de seu substrato biológico. Segundo o caderno de propostas da 3ª Conferência Nacional de Políticas Públicas de Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, ocorrida entre 24 e 27 de abril de 2016, em Brasília, identidade de gênero seria “uma experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos e outros)”. Segundo o mesmo documento, a teoria queer “propõe a desconstrução das identidades sexuais via discurso”.

Na cartilha “Escola sem Homofobia”, é possível ler que “o que se vê hoje é, pode-se dizer, produto de uma construção social, algo que constituiu uma parte crucial da organização da desigualdade social” e que “a noção de identidade de gênero nos possibilita perceber que não é pelo simples fato de possuirmos genitais de um ou de outro sexo que automaticamente nos identificamos como pertencentes a este ou àquele”.

“As identidades de gênero são, portanto, as maneiras – sempre diversas entre si – que o indivíduo tem de se sentir e de se apresentar para si e para os demais na condição de mulher ou de homem ou, em muitos casos, como uma mescla de ambos, sem que se possa inferir desse processo uma conexão direta e inescapável com o sexo biológico”, afirma ainda.

Confira: O que é ideologia de gênero?

O documento ataca ainda concepções morais e religiosas sobre a personalidade humana, ao dizer que “essa visão de pecado é manipulada para controlar o desejo espontâneo das pessoas por outras do mesmo sexo, reforçando o que já vimos anteriormente quando tratamos da visão heteronormativa da sociedade”.

Em um dos vídeos de apoio citado na cartilha, a animação “Medo de quê?”, um menino aparece deitado em sua cama. Ele vê imagens de mulheres de biquíni enquanto se masturba, mas acaba pensando em um colega do sexo masculino. Em seguida, o protagonista da animação compra revistas de pornografia masculina e, mais tarde, os dois meninos começam a namorar. A certa altura, os dois meninos se beijam, um deles pega uma camisinha e o vídeo insinua uma relação sexual entre eles.

Em outro vídeo, “Boneca na Mochila”, em que uma mãe está preocupada com o fato de a escola ter encontrado uma boneca na mochila de seu filho, um psiquiatra aparece em um programa de rádio afirmando que “o troca-troca nessa idade entre dois meninos só expressa o desejo que eles têm de descobrir o seu corpo e o corpo do outro. Na realidade, durante toda nossa educação, nós ficamos proibidos de tocar os nossos genitais”.

Mais adiante, o mesmo médico afirma que “essa ideia de que a criança precisa da referência masculina dentro de casa é um mito, porque, na realidade, a referência masculina e feminina existe no mundo, ela existe em todas as partes, não é necessário que ela exista dentro de casa”.

Em outro vídeo, chamado “Encontrando Bianca”, um adolescente chamado José Ricardo está inconformado com o próprio sexo, vai à escola vestido como menina e com as unhas pintadas de vermelho. Quer ser chamado de Bianca, inclusive na hora da chamada, e lamenta não poder usar o banheiro feminino.

Em novembro de 2017, a Gazeta do Povo publicou, com exclusividade em língua portuguesa, o mais importante estudo sobre ideologia de gênero na medicina: “Disforia de gênero, condições médicas e protocolos de tratamento”, de Michelle Cretella, médica e presidente do American College of Pediatricians (ACPeds). O estudo aponta para os perigos de mudanças bruscas na compreensão médica sobre o fenômeno da disforia de gênero sem pesquisas sólidas que as recomendem.

Segundo o filósofo Ryan Anderson, autor de um livro sobre o tema, "no centro da ideologia de gênero está a radical afirmação de que sensações determinam a realidade. A partir dessa ideia surgem demandas extremas para a sociedade lidar com afirmações subjetivas da realidade”.

Conheça a cartilha “Escola Sem Homofobia”:

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