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Em alguns artigos que publiquei aqui na Gazeta do Povo toquei em um tema sensível: o da degeneração das Universidades, especialmente das chamadas “ciências humanas”. Associei essa degenerescência (que se estendeu, desafortunadamente, à cultura em geral) a uma mentalidade de esquerda que, ao longo do século XX (sobretudo a partir dos anos 60), tomou as Universidades, algo documentado de forma riquíssima por Roger Kimball em seu excelente “Radicais na Universidade” (1990). Poder-se-ia dizer que ocorreu aquilo que um dos mais importantes (e obliterados) filósofos brasileiros, Mario Ferreira dos Santos, denominou (ainda em 1967) de “invasão vertical dos bárbaros”. 

Décadas de marxismo, escola de Frankfurt, pós-modernismo, e todas as suas variações, geraram frutos estéreis e apodrecidos desde sua origem, como “estudos de gênero”, “estudos sobre diversidade”, “estudos feministas”, “estudos em sustentabilidade”, etc. Curiosamente, chamam essas pseudo disciplinas de “estudos”. Como disse Walter Williams (em Educational Fraud Continues), essas disciplinas (“estudos”) surgiram, nas Faculdades, para acomodar aqueles que não possuem capacidades analíticas desenvolvidas plenamente. Em certo sentido, segundo ele, elas permitem que aqueles que não estão aptos a ocupar um lugar no Ensino Superior sejam acolhidos nessas instituições. Esse, creio, é um ponto para o surgimento desse tipo de disciplina. 

Outro ponto concerne ao fato de que elas são o ambiente propício à doutrinação. Afinal, parece-me que ainda é difícil alguém usar disciplinas como a de ‘Cálculo’ para doutrinar seus alunos (muito embora a decadência do Ensino Superior esteja chegando às ciências exatas também: algumas Universidades já estão oferecendo a disciplina “pré-cálculo”. Será que em alguns anos haverá a disciplina “pré-pré-cálculo”?). Mas o ponto é que os tais “estudos” são, em verdade, os cortiços das Instituições de Ensino Superior. 

Nelas, fatos, evidências e argumentos racionais são deixados de lado (abortados) em prol de uma agenda que visa a alguns fins: defesa do relativismo, defesa de uma mentalidade hostil ao Ocidente e a todos os fundamentos e valores de nossa cultura civilizada, defesa de uma mentalidade contrária a uma economia de mercado, defesa do feio em detrimento da beleza. Sem falar no ódio à masculinidade (sob sua crítica à “heteronormatividade”), na defesa de uma visão romântica de povos primitivos e na adoção, como diria Thomas Sowell (em Mascots of the Annoited), de alguns “mascotes humanos”: criminosos condenados, imigrantes ilegais, calaceiros, entre outros. 

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Se acompanharmos eventos, disciplinas, publicações relacionados com esse “estudos”, identificaremos todos esses temas. Mas vejam: tal agenda não é apenas imposta pelas Universidades em seus departamentos de ciências humanas e sociais. O aparelhamento da Universidade, do ensino (supostamente) “superior”, ocorre em seus centros acadêmicos, em seus diretórios, em suas associações, etc. Um exemplo? A capa do InformANDES (do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior) de Junho (Informativo número 83) traz como principal matéria uma defesa exacerbada do aborto. 

Diz a notícia do texto: “Aborto legal, seguro e gratuito”. Se folhearmos o “informativo”, encontraremos nele também suas “mascotes humanas” (mulheres presas por tráfico de drogas que são descritas, aqui, como vítimas de uma realidade na qual os sujeitos não têm livre arbítrio e, portanto, não são responsáveis por suas ações: são “vítimas” da sociedade vivendo em um mundo determinista – sem liberdade de escolha, portanto). Encontraremos, também, como não poderia faltar, a demanda por mais estado (intervenção), as críticas a uma economia de mercado, etc. Há também as tradicionais (e já enfadonhas) críticas à atual administração federal “golpista”. Mas, ao ver a capa do “informativo”, algumas questões me ocorreram. 

Comecemos pela capa. Nela há a foto de uma mulher seminua, com seios expostos e aparentemente fumando algo não identificável pela mera observação da foto. Em seu corpo, pichado, lemos: “aborto legal”. Trata-se de uma imagem que visa inicialmente causar impacto. Definitivamente, não se trata de algo, creio, que evoque um senso de beleza ou sublimidade.

Na verdade ela representa a ideia, tão estimada pelos “ungidos”, segundo a qual a beleza deve ser subvertida. Não apenas isso, tal foto expressa a ideia segundo a qual as pessoas devem ser colocadas sob “choque”. Isso, aliás, está em acordo com o exposto por William Sargant, em um importante livro de 1957 (Battle for the Mind), no qual ele descreve o processo de lavagem cerebral. 

Sim. É disso que se trata o uso de imagens como essa. Isso porque o “choque” (impacto estético, moral, etc.) tem, nesse processo, um papel basilar: “quebrar o indivíduo”. Imagens como essa (e muitas outras, como aquelas do ignóbil ‘Queermuseu’, por exemplo) alteram os padrões de comportamento. Segundo Sargant, “a evidência já apresentada sugere que os mecanismos fisiológicos que tornam possível a implantação ou remoção de padrões de comportamento em homens e animais são análogos; e que quando o ‘cérebro quebra’ sob perturbação severa o resultado é a mudança de comportamento”. Isso explica a razão dessa contínua tentativa de causar ‘perturbação’: provocar uma mudança de comportamento. 

Nesse sentido, não surpreende que esse tipo de publicação recorra a imagens como essa (a exemplo do que faz também o jogo “baleia azul”: observem que o participante desse jogo hediondo é também colocado, ainda nas fases iniciais do jogo, diante de imagens que causem “choque”, que lhe perturbem. E vejam o efeito que isso tem em seu comportamento logo em seguida). Na verdade, observem: grupos como esse frequentemente se comportam de forma agressiva, seja no uso da linguagem (verbal e corporal), seja no uso de imagens, “músicas”, etc. Muitas vezes se autovandalizam para justamente causar essa “perturbação”. 

Esse é um aspecto. Mas há outros pontos. 

Desde que iniciei minhas atividades acadêmicas me chama a atenção o fato de que essa publicação em específico pertence ao “Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior”. Noutros termos, seria uma publicação de um “sindicato”, de uma “associação” com fins representativos. E então eu me pergunto: a quem associações como essa representam? Em que medida é do interesse dos professores (enquanto professores no desempenho de suas funções em uma Universidade) financiar publicações com matérias “vitimizando” presidiárias presas por tráfico de drogas, ou defendendo um presidiário preso por recebimento de vantagens indevidas de uma empreiteira por meio de um tríplex, ou defendendo uma tese insustentável de um suposto “golpe”, etc.???? 

Será que os milhares de professores que recebem esse tipo de publicação (muitas vezes custeando atividades como essa) estão em acordo com essa agenda vinculada a uma ideologia partidária em particular? 

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Creio que não. Se acompanharmos as atividades desses grupos, veremos que a maioria delas está totalmente desvinculada das atividades realmente acadêmicas, as quais visariam, efetiva e eficientemente, qualificar o ensino. Mas mantenhamos a atenção na matéria da capa. Ela expressa a mensagem: “Aborto legal, seguro e gratuito”. Portanto, ela dogmaticamente assume sua infalibilidade e superioridade moral e assume que tanto o aborto é legítimo quanto que ele deve ser legalizado para ser “seguro”. E, por fim, demanda mais estado (o ‘gratuito’ na exigência implica obviamente na presença do estado assegurando que os pagadores de impostos vão custear sua prática). 

Bom, parafraseando Milton Friedman, dir-se-ia que “não há aborto grátis”. Alguém vai pagar. Mas esse nem é o ponto que quero mencionar. Quero ir aos aspectos anteriores, que se referem aos fundamentos da reivindicação. 

Em primeiro lugar, a questão do aborto é uma das questões perenes da bioética e não há consenso sobre ela (jamais haverá). É no mínimo temerário colocar a questão nos termos apresentados pelo “informativo”. Não apenas isso, essa é uma forma leviana de colocar a questão. Por que leviana? Ora, porque estamos decidindo o seguinte: “É legítimo assassinarmos uma forma humana individual de vida em seus primeiros momentos de desenvolvimento?” Não podemos nos esquivar dessa questão. 

Em uma pesquisa publicada na ‘Nature Cell Biology’ (2016), intitulada ‘Self-organization of the human embryo in the absence of maternal tissues’, encontramos que desde o momento em que espermatozoide e óvulo se unem temos um ‘indivíduo humano vivo’ agindo teleologicamente com vistas à manutenção de sua vida. E esse indivíduo é uma realidade material no contexto de uma continuidade física. Diferentemente das células que fazem parte de outro organismo, ele é autodirigido, um organismo único, distinto tanto do pai quanto da mãe. Ele tem um metabolismo, cresce, reage a estímulos e gera entidades semelhantes a si próprio (ele possui recursos internos que lhe permitem se desenvolver ativamente rumo aos estágios seguintes). Ele não é um mero agregado. 

Por essa razão, mesmo um ateu combatente como o finado Christopher Hitchens (no livro “God is not Great”) argumenta contra o aborto (sim, não é preciso ser religioso para ser contra o aborto, o que quebra mais um dos mitos criados pelos “ungidos”). A questão, aqui, é simplesmente moral: o que justifica matar uma pessoa? Se assumirmos a ideia de “dignidade da pessoa humana”, como justificarmos que algumas pessoas não são tão pessoas quanto outras? 

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Uma das grandes conquistas liberais (e ocidentais) foi justamente apontar para a importância do indivíduo e da liberdade individual. A sua dignidade (e liberdade) não lhe é atribuída como se fosse um adereço: ela lhe é inerente. Imaginem se alguém (ou algum grupo) assumisse a função de determinar quem tem e quem não tem dignidade. Que aconteceria? A história nos oferece exemplos. Em 1939 Adolf, Hitler assinou o Aktion T4, um decreto que exortava os médicos e psiquiatras alemães a promoverem a “morte misericordiosa” de doentes incuráveis, deficientes mentais e físicos, idosos senis, etc. Centenas de milhares foram mortos. Eram, de acordo com Hitler, menos pessoas que os demais. O mesmo pressuposto foi usado contra judeus, escravos, etc.

Sempre que se quis exterminar um grupo se retirou desse grupo sua “pessoalidade” (para se lhes retirar, consequentemente, a dignidade, a individualidade e a liberdade). Não à toa se costuma falar em embriões e fetos como “material biológico”. Se lhes tira a humanidade para que possam ser exterminados. 

Mas a questão é muito clara diante dos fatos: a embriologia nos mostra que o embrião/feto está vivo, que ele é um indivíduo e que ele é, obviamente, humano. Simplesmente não podemos rejeitar esse fato: ele é um ‘ser humano individual vivo’ (Como diria Jerôme Lejeune, pai da genética moderna, logo que os 23 cromossomos paternos trazidos pelo espermatozoide e os 23 cromossomos maternos trazidos pelo óvulo se unem, toda a informação necessária e suficiente para a constituição genética do novo ser humano se encontra reunida). Sua dignidade está associada de forma intrínseca a essa humanidade. Qualquer tentativa de lhe “atribuir”, a partir de fora (da vontade de algum sujeito ou grupo, por exemplo), humanidade e dignidade implicará em se recorrer a alguém que decida quem é pessoa e possui dignidade, em se estabelecer critérios que definam quem tem dignidade, tal como ocorreu no Aktion T4 assinado por Adolf Hitler. 

Sem falar que esses critérios poderão afetar os que já nasceram, como já colocado por Paul Ramsey, o qual demonstra que os argumentos assentados em favor do aborto poderão ser usados, por exemplo, para o infanticídio. Afinal, segundo ele, o infanticídio “causal e logicamente se segue da prática muito difundida do aborto legalizado, escolhido”. Sem falar em outras consequências que surgem na ladeira escorregadia da permissão do aborto, como o possível extermínio de doentes mentais, etc. 

Portanto, o que temos no referido “informativo” é mais uma tentativa de se impor, de forma totalitária, um dos dogmas promovidos pelos “intelectuais”, pelos “ungidos”, a saber, o dogma de que o aborto é justificável de forma inquestionável. Dito de outra forma, eles apresentam um slogan, “Aborto legal, seguro e gratuito”, e abortam o conhecimento e os fatos em torno da questão central (“O que justifica matarmos uma pessoa em seus primeiros momentos de vida?”). Ao fim abortam inclusive, e sobretudo, o bom senso.

* Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com estágio doutoral na State University of New York (SUNY). Foi Professor Visitante na Universidade Harvard (2010). Atualmente é professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Filosofia, no qual orienta dissertações e teses com foco em ética, filosofia política e filosofia do direito.

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