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Pesquisa rendeu o livro You Can’t Be What You Can’t See (“Você não pode ser o que não pode ver”, em tradução livre). | Chicago Gang History
Pesquisa rendeu o livro You Can’t Be What You Can’t See (“Você não pode ser o que não pode ver”, em tradução livre).| Foto: Chicago Gang History

Em 1963, um grupo de professores de uma região pobre de Chicago percebeu que seus estudantes tinham sérios problemas de aprendizado. Já próximos do ensino médio, muitos alunos ainda sofriam até mesmo para ler os textos apresentados em aula. Saídos de famílias pobres, os jovens vinham de um conjunto habitacional conhecido como Cabrini-Green e, ali, sobrava violência e faltavam oportunidades. Os professores, então, decidiram iniciar um projeto voluntário, tutorando os alunos além do horário de aula – aos domingos, promoviam atividades extras. Os resultados não tardaram a aparecer. 

Mais tarde, o programa seria batizado de CYCLE, sigla em inglês para “Experiência Criativa de Aprendizado para Jovens da Comunidade”, em tradução livre. Com o passar dos anos, conforme a população do Cabrini-Green passou a sofrer com problemas socioeconômicos cada vez mais graves, o CYCLE também cresceu. 

Nos anos 80, enquanto o crime, as drogas e a gravidez precoce afetavam a vida da maioria e encurtavam os seus estudos, o programa se manteve firme oferecendo atividades seis vezes por semana e nas férias de verão.

Naquele conjunto habitacional, que ao todo abrigava cerca de 15 mil pessoas, só 30% das mulheres e 20% dos homens concluíam o ensino médio. Para aqueles que contavam com o apoio dos tutores voluntários, porém, o número era muito maior: 90% percorriam o ciclo escolar completo. 

O envolvimento comunitário, a exigência de um comprometimento fixo dos voluntários, e a participação de jovens saídos do próprio Cabrini-Green como tutores e “exemplos de vida” para os mais novos ajudaram a criar um círculo virtuoso para aqueles que passaram pelo programa. O CYCLE chegou ao fim nos anos 90, mas estudos recentes sobre a experiência mostram que o acompanhamento personalizado foi decisivo na vida daqueles atendidos nas décadas em que o projeto operou. Boa parte deles frequentou a universidade e construiu carreiras sólidas em diversas áreas, o que se refletiu nas oportunidades de seus filhos. 

Uma estabilidade que não se repetiu na vida daqueles que cresceram com eles em Cabrini-Green, mas não passaram pelas atividades do CYCLE. “Para os jovens que não fizeram parte do programa, a participação em gangues, o uso de drogas, a gravidez precoce e os maus resultados escolares continuaram sendo a norma”, aponta Milbrey McLaughlin, professora emérita de educação e políticas públicas da Universidade Stanford, que passou os últimos cinco anos documentando o que aconteceu com os egressos do CYCLE. 

A pesquisa de McLaughlin, publicada em abril deste ano, rendeu o livro You Can’t Be What You Can’t See (“Você não pode ser o que não pode ver”, em tradução livre), analisando o projeto e suas consequências na vida de mais de 700 jovens do Cabrini-Green, muitos dos quais hoje são adultos de meia-idade. A

McLaughlin concedeu à Gazeta do Povo a entrevista a seguir, detalhando o funcionamento e as lições deixadas pela experiência realizada na Chicago dos anos 80.  

Qual era exatamente o contexto em que o CYCLE operava? 

Marcado pela pobreza, crime, drogas e gangues, o Cabrini-Green de Chicago era considerado um dos projetos habitacionais mais violentos dos EUA dos anos 70 até os anos 90, quando foi demolido. Eram 81 prédios, pequenos, médios e grandes, e aproximadamente 10 mil crianças viviam ali no início da década de 80, quase todas vindas de famílias negras.

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As crianças equivaliam a cerca de 70% da população oficialmente registrada no Cabrini-Green, que era de 13 mil – mas se estima que outras 3 mil a 5 mil pessoas vivessem ali irregularmente. No início dos anos 80, mais de 90% dos lares eram mantidos por mães solteiras e 84% dependiam de subsídios do governo. Em média, os adultos tinham um nível de leitura que equivalia apenas ao do 6º ano escolar.  

Quais as principais questões presentes no Cabrini-Green que o programa tentou combater? 

As escolas públicas de Chicago que atendiam aos jovens do Cabrini-Green eram disfuncionais e mantinham baixas expectativas quanto aos seus alunos. Em meados dos anos 80, só 20% dos homens e 30% das mulheres terminavam o ensino médio. O CYCLE buscava abordar esses desafios com um enfoque no aprimoramento acadêmico, começando pelo jardim de infância e indo até o ensino médio. Oferecia exposição e orientação necessárias para motivar e apoiar o sucesso acadêmico e pessoal desses jovens. Além disso, estavam sempre presentes as preocupações sobre o bem-estar físico dos participantes.  

Por que o CYCLE foi bem-sucedido enquanto tantos programas semelhantes fracassam? O que havia de diferente? 

A abordagem do CYCLE refletia os princípios de desenvolver positivamente a juventude [em vez de “corrigir” os déficits] e fornecia um apoio amplo e abrangente para o sucesso dos jovens. Ao foco de aprimoramento acadêmico, incorporou também atividades divertidas para engajar os alunos. A programação do CYCLE acontecia em seis dias da semana e até mesmo no verão; a equipe estava sempre disponível para auxiliar os jovens. O CYCLE operava como uma “comunidade de prática”, na qual os adultos e jovens mantinham crenças, princípios e valores em comum. 

Esse contexto do CYCLE contrasta com muitos programas de jovens que não mantêm esse senso de comunidade compartilhada, nos quais os funcionários operam de forma mais ou menos independente uns dos outros. O CYCLE utilizava uma equipe com traços semelhantes aos jovens sempre que possível, a fim de proporcionar responsabilidades e, também, modelos a serem seguidos. Anos mais tarde, os participantes comentaram sobre a importância de ter esses “pares”, que eram apenas alguns anos mais velhos, e como eles ajudaram em seu próprio desenvolvimento e na crença de que eles “poderiam chegar lá” (ter sucesso na escola, imaginar um futuro melhor), já que crianças como eles também haviam conseguido ser bem-sucedidas. 

Não deve ser possível replicar exatamente a maneira como o programa funcionava, já que cada comunidade tem necessidades muito diferentes. Ainda assim, quais estratégias do CYCLE você acredita que poderiam ser aplicadas em outros lugares? 

Alguns elementos do CYCLE foram centrais para o sucesso do programa com os jovens muito pobres: em primeiro lugar, o CYCLE operava com um princípio básico – nunca desistir de uma criança. A equipe se relacionava com cada jovem individualmente, e trabalhava para encontrar as oportunidades que lhes permitissem ser bem-sucedidos e seguir em frente. A exposição a novos lugares, experiências e pessoas também estava no centro do “currículo” do CYCLE e desempenhou um papel importante expandindo as ideias dos jovens sobre quem e o que eles poderiam se tornar. O título do meu livro reflete essa suposição.  

O que podemos aprender com o CYCLE quando pensamos em ações práticas em comunidades carentes? 

Cada participante do CYCLE andou por Chicago para conhecer parques, museus, restaurantes e eventos culturais, e participou de viagens nas férias de verão. Os jovens envolvidos nos programas de bolsas de estudos do CYCLE viajaram pelo país inteiro, visitando faculdades e cidades importantes como Nova York e Washington. Além de expor os jovens do Cabrini-Green a novos lugares, esses passeios também os colocaram diante de normas e valores novos – que tipo de comportamento era esperado em lugares de negócios e restaurantes, por exemplo?

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O CYCLE também se destacou da maioria das organizações jovens não só pela sua missão abrangente, mas também na consistência e coerência de objetivos. Muitos, talvez a maioria dos programas de jovens mais abrangentes, funcionam como confederações soltas de atividades diferentes – esportes, artes, apoio acadêmico. O CYCLE operava como uma comunidade à qual eles pertenciam.  

Que papel tinham os mentores, em especial os jovens que vinham do próprio Cabrini-Green? 

A mentoria estava no centro de todas as interações do CYCLE com os jovens. Alguns eram “mentores naturais”, como a equipe “júnior” que agia como irmãos e irmãs mais velhos. Essa equipe era composta por jovens da Cabrini-Green com 14 anos ou mais, que ofereciam tutoria, cuidavam da segurança dos mais novos e ofereciam aconselhamento enquanto as crianças lutavam para lidar com os desafios do local onde viviam e das escolas públicas de Chicago. 

Eles eram bons exemplos a serem seguidos e uma prova positiva de que as crianças dali poderiam ter sucesso. Outros mentores foram os cerca de 250 voluntários que vinham ao CYCLE para dar aulas todas as semanas. Eles eram estudantes universitários locais, profissionais ou membros de uma igreja comunitária. Eles trouxeram recursos de “ligação” com outras realidades – convites para passeios em família, contatos com profissionais da cidade, pernoites em faculdades próximas, por exemplo. 

Os mentores voluntários se comprometiam a aparecer semanalmente por 33 semanas – eles não eram os tutores que só aparecem “de vez em quando” como se vê em vários programas desse tipo, cujo envolvimento inconsistente prejudica os jovens em situação vulnerável. Os mentores voluntários tinham o engajamento ativo da equipe do CYCLE para apoiar seu trabalho com os jovens e mantê-los informados sobre a vida dos alunos. Alguns desses relacionamentos entre tutores e jovens permaneceriam por anos depois do contato inicial. 

Que efeitos positivos o programa teve no longo prazo? Dentro do Cabrini-Green, o que aconteceu com aqueles que não foram diretamente atendidos pelo programa? 

O CYCLE teve um sucesso notável ao permitir que jovens afro-americanos de baixa renda do Cabrini-Green passassem pelo ensino médio e tivessem uma vida adulta positiva. Cerca de 90% dos jovens envolvidos nos programas de bolsas de estudo do CYCLE e outras atividades realizadas nos anos 80 concluíram o ensino médio. Eles depois tiveram carreiras como professores, médicos, funcionários de escritórios, assistentes sociais, gerentes, líderes juvenis, comerciantes e policiais. Muitos chegaram ao ensino superior. 

Além de vários que concluíram a graduação, os participantes do programa nos anos 80 incluem onze doutores em diversas áreas, dois médicos, e mestres em áreas como arquitetura, educação e administração. Hoje, os alunos saídos do CYCLE têm empregos, famílias e amizades estáveis. Eles são ativos na comunidade e na vida dos seus filhos. A maioria dos seus filhos também está indo para o ensino superior. Esses significativos “retornos de investimento” não se estenderam aos jovens que não participaram do CYCLE. Para os jovens residentes no Cabrini-Green que não fizeram parte do programa, a participação em gangues, o uso de drogas, a gravidez precoce e os maus resultados escolares continuaram sendo a norma. 

O que aconteceu com o programa nos anos 90? 

Infelizmente, o CYCLE fechou suas portas em meados da década de 90, quando uma mudança de liderança levou à retirada da equipe. Sob o seu líder fundador, o CYCLE funcionava como uma comunidade para a juventude, baseada no forte relacionamento entre funcionários e jovens, e valores compartilhados como a ideia de “nunca desistir de uma criança”. O novo líder do CYCLE trouxe um foco de “implementação do programa”, privilegiando cronogramas de atividades e uma fidelidade ao currículo que não respondiam bem às necessidades e interesses em constante mudança daqueles jovens. Assim, enfraqueceram-se as relações que permitiram o sucesso dos antigos participantes. 

A partir das lições do CYCLE, que mensagem você deixaria para assistentes sociais, políticos e pesquisadores que trabalham em áreas carentes ao redor do mundo e muitas vezes sofrem para obter bons resultados? 

Existem três lições principais: primeiro, o sucesso impressionante dos alunos do CYCLE e de seus filhos mostram que os resultados negativos previstos para crianças que crescem na pobreza não são inevitáveis. Eles não resultam de uma chamada “cultura da pobreza”, mas de uma pobreza de oportunidades. Mas, infelizmente, os jovens que mais precisam de oportunidades fora da escola, como era o CYCLE, têm menos chances de encontrar algo assim. As crianças, especialmente os jovens negros, que costumam crescer em comunidades mais pobres, têm poucas coisas construtivas a fazer nos locais onde vivem quando acaba o horário escolar. 

Em segundo lugar, talvez o ingrediente mais importante para transformar a percepção que as crianças têm sobre si mesmas e o que podem se tornar seja prestar atenção ao contexto delas. A experiência do CYCLE aconselha que a abordagem mais produtiva para melhorar os resultados dos jovens de baixa renda envolve mudar a natureza do ambiente em vez de se concentrar em “consertar” a criança. O CYCLE demonstra que um programa abrangente, centrado nos jovens e baseado em relacionamentos que expõe crianças pobres a novos lugares, opções e caminhos, apoia incondicionalmente seus esforços acadêmicos e pessoais, e dá a eles ferramentas necessárias para alcançar seus objetivos – esse programa pode transformar as vidas até mesmo dos jovens mais desfavorecidos e marginalizados. 

Finalmente, o projeto de acompanhamento posterior que realizei destaca a importância de seguir um “caminho de vida” ou uma perspectiva de longo prazo para entender as consequências de um programa de jovens na vida dos seus participantes. Embora os resultados do programa no curto prazo, como a conclusão do ensino médio ou a matrícula universitária, sejam importantes sinais da sua eficácia, eles não garantem que esse sucesso será sustentado ao longo do tempo. As consequências intergeracionais associadas à participação no CYCLE – o que acontece com os filhos dos participantes – é que fornecem a medida definitiva de que seus positivos efeitos existem e se mantêm.

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