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Plenário do STF: palavra final sobre ensino religioso nas escolas públicas | Carlos Moura / STF
Plenário do STF: palavra final sobre ensino religioso nas escolas públicas| Foto: Carlos Moura / STF

A presença de religião em sala de aula é tema de debates constantes, mas um ponto está fora da alçada da Justiça: a própria existência do ensino religioso nas escolas públicas, que está prevista na Constituição, de modo facultativo. Portanto, apenas o Congresso poderia aboli-la – o que não está em debate. A discussão em torno do conteúdo a ser ensinado, entretanto, é intensa.

Uma corrente jurídica defende uma interpretação restritiva da Constituição neste quesito: a religião poderia ser apresentada apenas na forma não confessional. Os alunos não poderiam ter aulas ministradas por um representante de uma crença específica – ou mesmo de várias delas. É esse o tema em discussão no julgamento que o Supremo Tribunal Federal deve encerrar nesta quarta-feira. Por ora, o placar é de 5 a 3 em favor do ensino confessional nas escolas públicas.  

A tese restritiva pode parecer razoável em um Estado laico, mas tem um efeito inverso: atribui ao poder público, como único juiz, o papel de definir o que é religião e quais aspectos de cada uma são relevantes o suficiente para serem apresentados. 

Em um país laico, Igreja e Estado são separados, mas a religião (como reconhecido até mesmo no preâmbulo da Constituição, que cita a “proteção de Deus”) não deve ser banida da esfera pública. Muito menos da sala de aula, desde que as lições sejam facultativas. Tampouco é necessário diluir a crença da maioria da população em meio a uma miríade de outras religiões e doutrinas em nome da diversidade.  

Assim como as aulas de História priorizam os acontecimentos do Brasil Colônia em vez da China imperial, é natural que as aulas de religião tenham um enfoque maior na tradição cristã, essencial para a formação dos costumes e dos valores nacionais.  

Panorama nacional 

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em seu artigo 33, define essas classes como “parte integrante da formação básica do cidadão”. Seguindo o previsto na Carta Magna, o texto acrescenta que essas aulas constituem “disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurando o respeito à diversidade cultural e religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo”. A obrigatoriedade do oferecimento da disciplina por parte das escolas, no entanto, não significa que os alunos tenham a necessidade de cursá-la.  

“Creio que o papel da religiosidade é, de um lado, o respeito pelo privado e, de outro, o reconhecimento da alteridade religiosa e mesmo da não-religiosa (caso dos agnósticos e ateus) como elementos presentes dentro de uma sociedade plural e aberta. O Brasil legal reconhece a diferença e a respeita em seu ordenamento jurídico, mas o Brasil real tem muito o que aprender com o efetivo respeito ‘ao que não pensa e age como eu’”, aponta Carlos Roberto Jamil Cury, professor da pós-graduação em Educação da PUC-MG.  

Para Cury, “a leitura do artigo 33 da LDB é claramente oposto ao proselitismo”. Segundo ele, embora seja difícil analisar as especificidades das aulas de ensino religioso no país, “as pesquisas mais sistemáticas revelam que há menos aulas do tipo tradicional e mais a manutenção de um clima cultural dentro da ambiência escolar que se inclina para tradições do cristianismo”. 

A importância do ensino religioso como forma de compreensão do mundo – e da relevância que as religiões tiveram ao longo da história e da constituição social – é um aspecto ressaltado pelos estudiosos da área. “Para estar presente na escola, o ensino religioso precisa ter o caráter científico, de produção de conhecimento. Conhecer a religiosidade, pensar e problematizar as relações do humano com o divino, entendê-las como constituintes da humanidade, da cultura, geradoras de identidades culturais e pessoais”, argumenta Lara Sayão, doutoranda em Filosofia da Educação pela UERJ e professora de ensino religioso na rede pública do Rio de Janeiro. 

O caminho é se valer da oportunidade em sala de aula para estimular o diálogo entre as diferentes culturas. Na opinião da professora, o resultado da equação é o inverso do que muitas vezes dita o senso comum: não seria o contato com a religião a causadora do preconceito e sim, ao contrário, o pouco acesso a outras crenças. “Não se compreende ao certo a dimensão religiosa como constituinte do ser humano, não nos dedicamos ao conhecimento das doutrinas, nem mesmo das que dizemos seguir e, como consequência, colhemos confusão”, sustenta a professora. 

Pelo mundo 

Fora do Brasil, o tema do ensino religioso também tem mobilizado especialistas, e várias iniciativas de revisão curricular têm sido tomadas ao redor do mundo. No Reino Unido, um relatório intitulado “A New Settlement: Religion and Belief in Schools” (“Um novo acordo: religião e crença nas escolas”, em tradução livre) foi publicado em 2015 propondo alterações no sistema vigente no país desde 1944. Na época, como forma de encontrar um meio-termo entre as escolas públicas e as mantidas com apoio da Igreja Anglicana, ficou acordado que as instituições tinham direito a promover uma oração coletiva no início de cada dia, bem como de oferecer “instrução religiosa” – os pais dos alunos, porém, poderiam solicitar a não-participação de seus filhos nessas atividades.  

Com o tempo, a lei britânica passou a funcionar como letra morta: na prática, poucas escolas respeitavam o que a legislação dizia, e cada uma realizava os atos religiosos de acordo com seus próprios critérios. “O Education Act de 1944 ainda é a lei, mas nesses 70 anos tanto as escolas quanto a religião mudaram muito no Reino Unido. A lei não é totalmente respeitada por todas as escolas, mas mudar esse tipo de situação é sempre difícil. Entendemos que uma mudança é necessária e estamos tentando encorajar a discussão nesse sentido”, diz Charles Clarke, ex-Secretário de Estado para Assuntos Internos durante o governo de Tony Blair e um dos autores do relatório, em entrevista à Gazeta do Povo

“A religião é, sem dúvidas, muito importante no mundo moderno, e as crianças em idade escolar devem ser ensinadas a apreciar e entender sua importância. Ao mesmo tempo, devem ter condições de desenvolver suas próprias crenças, religiosas ou não, em um ambiente no qual possam determinar livremente seus próprios pontos de vista”, entende Clarke. De acordo com o político inglês, uma das maiores preocupações dizia respeito à falta de critérios guiando o ensino religioso nas escolas. Enquanto algumas instituições consideravam essas aulas mais importantes que as demais, outras praticamente o ignoravam – um dos objetivos do relatório era fornecer as bases para que a religião passasse a ser tratada como uma disciplina escolar como as demais.  

“Queremos que o ensino religioso seja tratado como uma disciplina acadêmica como qualquer outra, e que não seja confundida com outras atividades como a reza coletiva. Não somos contra escolas cristãs realizarem suas orações de uma maneira que seja justa com os alunos que não queiram participar, mas essa atividade não deveria ser conectada com as aulas de religião”, explica Linda Woodhead, professora de sociologia da religião da Universidade de Lancaster e co-autora do relatório. 

Para Woodhead, cortar o ensino religioso por completo é ignorar a importância que as religiões possuem na história humana e no mundo atual. Pelo contrário, argumenta a especialista, é preciso dar aos estudantes uma visão mais aprofundada do que de costume: “o estudo das religiões é um campo multidisciplinar bem estabelecido e em evolução constante, tanto nas universidades quanto nas escolas. Não há razão pela qual a religião não deva ter o mesmo status de outras disciplinas como filosofia, história ou sociologia nas escolas. Queremos que o ensino religioso tenha um suporte e uma proteção melhores, dentro de uma lei atualizada – da mesma forma que todas as outras matérias têm”, defende a professora. 

Austrália 

O entendimento é similar na Austrália, onde um comitê realizou em 2014 uma revisão de todo o currículo escolar do país, incluindo as aulas de religião. No país da Oceania, do mesmo modo, a importância do ensino religioso foi assinalada pelos especialistas, com o argumento de que a disciplina deve ser encarada com a seriedade dos estudos realizados na área, e não como uma oportunidade de proselitismo.  

“Diferenciamos entre instrução religiosa e educação religiosa. A instrução envolve uma aula específica dada por um professor especializado na qual os estudantes aprendem sobre religião – geralmente, o cristianismo”, aponta Kevin Donnelly, pesquisador em educação da Universidade Católica da Austrália em Melbourne. “Já a educação religiosa tem relação com a forma como as várias religiões são tratadas no currículo escolar compulsório em disciplinas como história, cívica, artes, música e literatura”, complementa Donnelly, que foi um dos autores do relatório que atualizou o currículo das escolas australianas. 

Atualmente, todos os estados e territórios da Austrália estão implementando o novo modelo no qual aspectos das diferentes religiões são apresentados nas aulas relacionadas a outras matérias escolares. Para Donnelly, a manutenção da religião no currículo e o aprimoramento da forma como ela aparece nas aulas é importante tanto para valorizar a tradição cristã do país quanto – em uma sociedade com um número crescente de imigrantes – para estimular a tolerância em relação aos estudantes vindos de outras culturas. “A religião é vital, pois dá um sentido claro de moral e valores, permitindo que os estudantes se alfabetizem culturalmente e, se for ensinada de forma apropriada, ajuda a promover aceitação e entendimento entre as diferentes fés”, define. 

Segundo Donnelly, uma lição a aprender com a Austrália é que o argumento de que ser uma sociedade secular não deve significar que não há espaço para a instrução e a educação religiosas. “Grande parte dos nossos sistemas político e legal, e nosso modo de vida, ou são cristãos em origem ou se baseiam nas morais e crenças cristãs. É por isso que a fé judaico-cristã deve ser parte do currículo escolar”. 

Estados Unidos 

Nos Estados Unidos, embora aulas de religião não sejam permitidas nas escolas públicas, é ponto pacífico entre os juristas que aspectos e textos religiosos podem ser abordados em sala de aula. Em 1963, a Suprema Corte decidiu que abrir mão desse estudo seria impor na realidade uma “religião do secularismo”, opondo-se ao conhecimento que vem das diferentes crenças. “Pode-se dizer que a educação de alguém não está completa sem um estudo comparativo da religião, ou a história da religião e sua relação com o avanço da civilização”, dizia a famosa decisão judicial, que ainda hoje embasa a forma como o tema é abordado nas escolas norte-americanas.  

“A história da religião, a religião comparada, a Bíblia (ou outra escritura) enquanto literatura são temas permitidos em escolas públicas”, explica a União Americana das Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês) em sua declaração conjunta sobre o ensino religioso. “É permissível e desejável ensinar objetivamente sobre o papel da religião na história dos Estados Unidos e de outros países. Pode-se ensinar que os Peregrinos vieram aos EUA com uma visão religiosa em particular, que católicos e outros foram vítimas de perseguição e que muitos dos que participaram em causas abolicionistas, pelo sufrágio feminino ou pelos direitos civis tinham motivações religiosas”, exemplifica a ACLU. 

Itália 

Na Itália, como ocorre no Brasil, o ensino religioso também é de oferta obrigatória e matrícula facultativa nas escolas públicas do país. A diferença em relação a outros países é que, em solo italiano, as aulas de religião são mais restritivas: em geral, necessariamente relacionadas à fé católica. Embora o país não registre a opção religiosa de seus habitantes nos censos, o que dificulta uma medição exata, estima-se que apenas 4% da população italiana siga uma religião não-cristã – e, entre os cristãos, 97% são ligados de alguma forma à Igreja Católica. 

Além da questão demográfica, a garantia do ensino católico nas escolas também tem raízes históricas e políticas: desde a unificação da Itália, no final do século 19, a então Coroa italiana buscou acordos bilaterais de reconhecimento mútuo e colaboração com o Vaticano, para garantir a estabilidade do país – até o Tratado de Latrão, negociado por Mussolini em 1929, a Santa Sé exigia mais controle sobre partes do território italiano. Entre os acordos firmados para reduzir a influência direta da Igreja na vida política do país estava o ensino dos dogmas católicos nas escolas. 

A lei atual, adotada em 1985, postula: “a República Italiana, reconhecendo o valor da cultura religiosa, e tendo em conta que os princípios do catolicismo são parte do patrimônio histórico do povo italiano, continuará a assegurar, entre as finalidades da escola, o ensino da religião católica nas escolas públicas abaixo do nível universitário”.

*Colaborou: Maurício Brum

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