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Jamil Iskandar vai para Paris em outubro. No quadro, lê-se: “Louvado seja aquele que tem todo o poder em suas mãos, e sobre tudo pode”, um versículo do Alcorão. | Daniel Castellano / Gazeta do Povo
Jamil Iskandar vai para Paris em outubro. No quadro, lê-se: “Louvado seja aquele que tem todo o poder em suas mãos, e sobre tudo pode”, um versículo do Alcorão.| Foto: Daniel Castellano / Gazeta do Povo

Nascido no Líbano e criado em Curitiba, o professor Jamil Ibrahim Iskandar, 65 anos, fará parte do seleto grupo de pesquisadores estrangeiros que trabalham no Museu do Louvre, em Paris. O convite foi oficializado em maio e é um reconhecimento do trabalho pioneiro feito pelo filósofo no Brasil. Iskandar fundou a disciplina de Filosofia Medieval Árabe na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em 2009, única no país, e é o primeiro tradutor de textos árabes do século 10 para o português do Brasil.

O pesquisador irá em outubro para Paris, onde atuará por três meses como professor-pesquisador e terá permissão para estudar as peças dos dois amplos andares destinados à arte islâmica no museu, que são abertos à visitação pública, e também toda a documentação dessas obras de arte. Trata-se de antigos escritos árabes, que legitimam a origem e autenticidade das peças e têm acesso restrito.

Apesar do que diz a certidão de nascimento dele, Iskandar não hesita em destacar sua identidade: "Sou paranaense!". E tem bons argumentos para sustentar a afirmação. Embora lecione exclusivamente na Unifesp há cinco anos, ele prefere uma rotina de voos frequentes para São Paulo do que deixar Curitiba e a casa onde ele e a família moram, no bairro do Ahú. Entre os motivos estão os laços construídos com a comunidade acadêmica da cidade durante os 29 anos em que foi professor do curso de Filosofia na PUCPR, onde se formou, além do papel de liderança que mantém entre os religiosos locais. Iskandar foi durante 10 anos presidente da Sociedade Beneficente Muçulmana do Paraná. Confira os principais trechos da entrevista:

Por que estudar o setor de arte islâmica do Louvre é importante?

Porque lá há centenas de obras cujos arquivos revelam a caminhada histórica daquelas peças até Paris. É uma parte relativamente nova do museu, foi aberta há cerca de quatro anos, e nela estão peças desde o século 1 da era islâmica, que é o século 7 da era cristã, entre livros, obras de arte e quadros com caligrafia árabe. A caligrafia é muito valorizada no mundo árabe porque os muçulmanos não podem ter imagens, então se dedicaram a fazer arte com palavras. Em geral, são versículos do Alcorão caligrafados em estilos específicos, pelos quais você consegue saber se são marroquinos, espanhóis e até se a arte tem influência filosófica ou religiosa.

Seu currículo mostra que o senhor é um desbravador na sua especialidade. Mas há interesse em filosofia medieval islâmica por parte dos alunos brasileiros?

Sim, e está crescendo. Trata-se de uma disciplina eletiva na Unifesp. Normalmente, essas disciplinas têm entre 15 e 18 alunos, mas eu tenho 46, além de dois orientandos no mestrado e mais dois no doutorado. Todos escolheram cursar Filosofia Medieval Árabe por conta própria. Além disso, é bom destacar que o número de árabes e descendentes no Brasil também é grande e hoje eu dou aulas na cidade onde está a maior comunidade, que é São Paulo. Eu já vi estatísticas que apontam algo em torno de 15 milhões de árabes em todo país, contando descendentes de 1.ª, 2.ª e 3.ª gerações. Eu não saberia precisar o número dos que moram em São Paulo, mas, em Curitiba, eu sei que estão em torno de 6 mil e, em Foz do Iguaçu, aproximadamente 15 mil.

Seus alunos são todos muçulmanos?

Não. A maioria deles procura a disciplina por interesse acadêmico mesmo. Um dos doutorandos, inclusive, é um monge beneditino, que agora está no Egito, já domina o idioma árabe e, quando voltar, vai escrever uma tese sobre um filósofo persa.

Como o senhor entrou no assunto, se não havia professores no Brasil para ensiná-lo?

Quando eu era pequeno, durante o primário, meus pais me enviaram de volta ao Líbano para estudar árabe. Quando retornei para cá e comecei a ter Filosofia no 2.º grau, percebi que ninguém falava de filosofia árabe aqui e aquilo me incomodava. Então, comecei a ler por conta, resolvi fazer Filosofia e então mergulhei definitivamente no assunto. Depois eu fiz mestrado na PUCSP e consegui uma bolsa para estudar parte do curso na Universidade Complutense de Madri, Espanha, onde há uma rica tradição de estudos islâmicos e onde tive contato com muitos arabistas. Voltei para o Brasil, fiz doutorado na Unicamp e prossegui minhas pesquisas na Itália e no Irã.

Por que a filosofia medieval árabe despertaria o interesse de ocidentais contemporâneos?

A filosofia medieval árabe foi o seleiro para a filosofia medieval latina, a escolástica cristã. São Tomás de Aquino, por exemplo, cita alguns desses filósofos em suas obras. Muito do conhecimento de Aristóteles, de Platão, de Alexandre de Afrodísias, Ptolomeu, Plutarco e vários outros nomes importantes da filosofia foram traduzidos, primeiro, pelos árabes.

Somente numa segunda etapa o mundo latino se interessou por passar essas obras do árabe para o latim. Então podemos dizer que, a origem dessa chegada de muitos textos da filosofia grega ao mundo latino medieval começou no mundo islâmico. Digo islâmico porque ocorreu graças à dedicação de filósofos, tanto cristãos, quanto muçulmanos, mas em solo islâmico.

Quanto ao crescente interesse, ele começou por aqui após o 11 de setembro de 2001, quando houve o ataque às torres gêmeas em Nova York. Depois houve a invasão do Iraque, os conflitos no Afeganistão, toda a discussão política no Oriente Médio. Essas notícias parecem ter despertado o interesse de muitos em compreender como pensam os árabes. E, convenhamos, nós não tínhamos nada sobre esse mundo nos nossos currículos escolares.

Pode citar alguns autores da filosofia medieval árabe e do que eles tratam?

O primeiro grande filósofo do período é chamado Al-Kindi, que viveu no século 8. Depois veio Al-Farabi, que ficou mais famoso e viveu no final do século 10. Há também Al-Biruni, do final do século 9. Em seguida vem o autor que eu mais estudo, chamado Avicena, que é do final do século 10 e começo do século 11. Depois a gente pode citar Averróis, do século 13, nascido na Espanha muçulmana.

A maior preocupação desses filósofos era a metafísica. Isso porque a filosofia no mundo árabe, muçulmano, começa no momento em que os pensadores se dedicam a entender o Alcorão. Como era uma linguagem difícil, às vezes metafórica, era preciso interpretar. Essa busca por explicar o Alcorão vai despertar nos árabes o interesse por aquilo que os gregos antigos escreveram, sobretudo Aristóteles e Platão, porque os dois produziram muito sobre metafísica, cosmologia e lógica, justamente as vias de pensamento que eles buscavam.

No início, era tudo exclusivamente para validar e entender o conteúdo do Alcorão, mas, quando você faz hermenêutica de alguma coisa, naturalmente você expande o raciocínio. Então você começa a pensar nos porquês das coisas. E aí que começam a aparecer coisas interessantes. É o lado positivo do confronto entre o teólogo e o filósofo. Foi o aperfeiçoamento desse tipo de raciocínio que levou a Idade Média a ser insuperável quando se fala de metafísica.

Por que o senhor acha que estudamos pouco esses autores?

A Idade Média, em geral, já sofreu muito preconceito da academia por aqui, mas isso está mudando. Não é justo que se despreze mil anos de filosofia só porque não se concorda com a posição de instituições importantes da época, como a Igreja. Cansei de ver, em aulas de História da Filosofia, os professores citarem apenas generalidades sobre autores, como o nome, onde nasceu, algo do que fez, mas sem estudar de fato a filosofia produzida. No entanto, hoje, muitos autores contemporâneos têm se voltados para temas tratados na Idade Média, o que obriga os pesquisadores a irem até as fontes.

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