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Calouros de Engenharia Civil da UFPR foram sujos com tinta no trote promovido pelos veteranos na última terça-feira (28), na Praça Santos Andrade. | André Rodrigues / Gazeta do Povo
Calouros de Engenharia Civil da UFPR foram sujos com tinta no trote promovido pelos veteranos na última terça-feira (28), na Praça Santos Andrade.| Foto: André Rodrigues / Gazeta do Povo

Tinta no rosto e nos muros

Veteranos do curso de Engenharia Civil da Universidade Federal do Paraná (UFPR) recepcionaram os calouros com tinta e brincadeiras no dia da matrícula no Prédio Histórico. O centro acadêmico do curso também estava lá, mas não para pintar o rosto dos recém-chegados. Eles foram divulgar o trote solidário que promovem, ação prevista para a próxima quinta-feira e que deve usar tinta para outros fins. "Vamos juntar calouros de várias Engenharias para pintar os muros de uma escola pública no Cajuru", conta a estudante do 5º período, Thaís Rezende, membro do centro acadêmico. A instituição a receber a visita dos alunos será a Escola Municipal Ritta Anna de Cássia. Além de dar uma cara nova aos muros, os alunos montarão redes de vôlei e cestas de basquete para as crianças.

Controle Para limitar abusos, instituições organizam a recepção dos alunos

Além de proibir formalmente o trote violento dentro dos câmpus universitários, as instituições de ensino superior têm investido em eventos para recepcionar os calouros. Em algumas universidades, o que antes ficava a cargo apenas dos veteranos, facilitando as ocorrências de abusos, passou a ser dirigido pela própria instituição.

A semana de recepção aos calouros foi regulamentada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 2009, e, desde então, uma comissão formada por estudantes, professores e funcionários é que define as atividades a serem propostas aos recém-chegados. "É o modo que encontramos para trabalhar com o trote de forma humanizada", diz a coordenadora de Apoio às Entidades Estudantis da UFPR, Adélia Alves.

As atividades são divididas por setores acadêmicos, não necessariamente por cursos, e geralmente envolvem palestras, ações solidárias e passeios guiados pelos câmpus da instituição. Ela admite, no entanto, que situações de constrangimento ainda ocorrem fora do espaço da universidade, o que é bem mais difícil de coibir.

Lei

Em Ponta Grossa, o trote violento é proibido por lei municipal desde 2010, fato lembrado pela UEPG no evento de acolhida dos calouros e nas campanhas de conscientização promovidas no início de cada ano letivo. Um projeto de lei que torna crime o trote violento em todo o país está em tramitação no Congresso Nacional desde 1995. Ele foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 2009 e aguarda por uma votação no Senado. (JDL)

Origem

De acordo com o professor Jorge Antônio Vieira, a origem do trote remonta à Idade Média, quando as primeiras universidades surgiram na Europa. A recepção de novos alunos era precedida por uma série de práticas sanitárias e de higiene que evitavam a proliferação de doenças no ambiente acadêmico. Uma das mais comuns era a raspagem dos cabelos, uma precaução contra piolhos.

Embora diversos setores da sociedade, incluindo as próprias universidades, mostrem-se avessos aos trotes constrangedores aplicados a calouros, a adesão dos estudantes a esse tipo de brincadeira é grande. Pesquisas acadêmicas comprovaram o que a simples observação pode deduzir: a cultura do trote universitário se perpetua, não importando quantos digam que a prática é ruim. A psicologia, a antropologia e outras ciências humanas tentam explicar o porquê.

O professor da Universidade Paranaense (Unipar) Jorge Antônio Vieira, doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, é um estudioso do assunto e publicou, em 2012, uma extensa pesquisa sobre o tema. Para ele, há duas razões fundamentais que justificam a aceitação do trote, tanto por parte dos veteranos como dos calouros: a relação de poder gerada por essa cultura e o sentimento de pertença a um grupo.

Segundo Vieira, calouros tendem a aceitar o trote porque o veem como um rito de passagem, um ato que marca a chegada à vida adulta, na qual eles poderão desfrutar de novos privilégios. "É como se fosse uma promoção social. Os jovens que passam pelo trote estariam sendo promovidos a um novo patamar, por isso se alegram e até fazem questão de aparecerem sujos ou raspados", diz.

No caso dos veteranos, a motivação é mais evidente. "O sentido de poder está presente a tal ponto que significa superioridade. Eles se sentem no direito de exigir a submissão dos calouros", explica Vieira. Parte dessa suposta superioridade viria da própria experiência do trote, vivida no passado pelos veteranos. Entre eles, a ideia de "dar o troco" é constantemente mencionada em pesquisas sobre o tema.

Pertencimento

O trote enquanto ritual, no entanto, não seria benéfico o suficiente, por si só, para obter adesão dos calouros. Quem acaba de chegar à universidade espera receber alguma ajuda para se integrar ao novo ambiente. Assim, as "brincadeiras" seriam o preço a ser pago em troca da aceitação e amizade dos veteranos. "Há a necessidade de se sentirem pertencentes a este novo mundo, onde o ciclo de amizades já não é mais o mesmo, onde os professores já não são os mesmos e onde o método de ensino passa a ser outro", diz Vieira.

O uso do trote como atalho na conquista de novos amigos é comprovado pela professora Gislaine Martinelli Baniski, coordenadora de Auxílio e Orientação ao Estudante da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). "Em nossa instituição, os calouros gostam e buscam participar de ações que signifiquem que eles fazem parte de um grupo. Assim, pintam o nome do curso no rosto ou pagam bebidas aos veteranos para ‘patrocinar a amizade’", conta.

Represália

Quem se nega a passar pelo trote sofre as consequências

Se a adesão ao trote como instrumento de integração pode estreitar as relações entre calouros e veteranos, aqueles que se recusam a participar de brincadeiras constrangedoras podem acabar sofrendo consequências por parte de quem leva a tradição a extremos nada saudáveis.

O professor Jorge Antônio Vieira conta que durante sua pesquisa recebeu respostas que denunciavam as represálias adotadas pelos veteranos contra calouros que não aceitaram o trote. "Aqueles que não obedeciam eram colocados em uma ‘lista roxa’, na qual eles ficariam marcados e, quando precisassem de qualquer tipo de ajuda, essa lhes seria negada", conta o pesquisador.

Esse aspecto excludente do trote é uma das razões que leva o doutor em Educação Antonio Alvaro Soares Zuin a ser enfaticamente contrário à prática. "Acredita-se que o trote seja a única forma de integrar o calouro na vida universitária, mas não é. Deve-se, na verdade, promover práticas de integração que não se baseiem na violência sadomasoquista que caracteriza o trote." Zuin é professor da Universidade Federal de São Carlos e autor do livro O Trote na Universidade: Passagens de um Rito de Iniciação, no qual aborda a prática universitária como um instrumento de violência promovida para gerar espetáculo.

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