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Literatura

A questão racial em Anjo Negro

Veja a análise do livro, que está na lista de obras de leitura obrigatória da Universidade Federal do Paraná

Vista de modo superficial, a peça de Nelson Rodrigues é uma história de horror: Virgínia é órfã e branca, vive com a tia e as primas, aos quinze anos é assediada pelo noivo da prima caçula. Descoberto o assédio a prima se mata; a tia entrega Virgínia a Ismael, negro, que a estupra e casa com ela. Ismael é médico, tem ódio de ser negro, se isola em casa com Virgínia, estupra-a diariamente; têm três filhos; Virgínia mata os filhos, um por um, com a concordância tácita de Ismael. No dia do velório do terceiro filho chega Elias, irmão de criação de Ismael, que sempre o maltratou e acabou cegando-o com raiva dele ser branco. Virgínia atrai Elias e engravida dele. Ismael mata Elias. A filha de Virgínia e Elias chama-se Ana Maria, é cegada ainda bebê por Ismael que lhe conta ser branco. Ismael estupra Ana Maria.

Quando Ana Maria tem dezesseis anos Virgínia a encerra em um túmulo de vidro (como na história infantil). Ismael e Virgínia ficam juntos. As senhoras do coro vaticinam: "Em vosso ventre existe um novo filho! Ainda não é carne, ainda não tem cor! Futuro anjo negro que morrerá como os outros!".

É repugnante. Quase chegamos a compreender as pessoas que pediram a interdição desta peça.

Mas Nelson Rodrigues era um gênio. Nada em sua obra é superficial, mas sim densos e intrincados jogos de espelhos em que, às vezes, enxergamos até nosso próprio reflexo, e geralmente não gostamos muito do que vemos. Anjo Negro constitui-se em libelo devastador contra o preconceito, o racismo e a hipocrisia. Escrita quando os crimes do nazismo eram muito recentes, aborda a questão da "superioridade racial" de um ângulo importante: o discriminado que assume os valores dos que o discriminam.

Ismael não consegue ver-se como é de fato, um homem de sucesso. Em tempos em que isso era muito difícil para a maioria dos brancos e virtualmente impossível para negros, fez um curso superior, formou-se médico e obteve notoriedade e fortuna na profissão. Não se aceita como pessoa, despreza-se porque a sociedade despreza a sua cor; adota a visão das pessoas da classe social a que pertence por mérito, e quase todas essas pessoas são brancas. Em sua contradição, odeia brancos, odeia pretos, odeia a si mesmo.

A relação de Virgínia e Ismael é de grande paixão física, mas ocorre sempre como violência e violação; uma mulher branca somente fará sexo com um homem negro se forçada a isso, um homem negro somente fará sexo com uma mulher branca se a estuprar. Absurdo? Sem dúvida, mas era pensamento corrente. Virgínia mata os filhos por saber que Ismael não quer filhos negros, relaciona-se com Elias para ter um filho branco.

Anjo Negro é peça teatral construída como paródia: há os coveiros de crianças emulando os cantos dos "pretos do Mississipi que aparecem no cinema"; a cegueira de Elias e Ana Maria (Tirésias? Édipo?); o túmulo da Branca de Neve. E o coro de mulheres ulula, evocando os coros do teatro grego: "O preto desejou a branca! _Oh! Deus mata todos os desejos! A branca também desejou o preto! Maldita seja a vida, maldito seja o amor!". É sombria, não deixa nenhuma esperança, como se nós, seres humanos, não tivéssemos salvação.

A esperança viria em gerações posteriores de negros orgulhosos de sua cor, de sua cultura, de seus valores; certamente esta obra, colocada entre as "míticas" de Nelson Rodrigues, é uma das auxiliares na reflexão necessária para a mudança.

* Presidente da Comissão do Processo Seletivo das Faculdades Integradas do Brasil – UniBrasil.

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