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Especialistas dizem que falhas humanas são comuns, mas tendem a se anular nas pesquisas eleitorais
Especialistas dizem que falhas humanas são comuns, mas tendem a se anular nas pesquisas eleitorais| Foto: Alex Green/Pexels

No dia 1º de abril, uma entrevistadora contratada pelo instituto de pesquisas Quaest foi gravada, na cidade de Nova Porteirinha (MG), defendendo seu direito de expressar voto no pré-candidato do PT à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, enquanto aplicava questionários de intenção de voto. O vídeo viralizou nas redes sociais. “Moço, eu dei minha opinião. Eu não tenho liberdade de expressar meu voto, não?”, disse ela, tentando se defender, a um cidadão que a questionou, enquanto fazia a gravação de seu celular.

Diante da repercussão negativa, na noite do dia seguinte, a Quaest informou, em nota, que a entrevistadora foi dispensada, e que as cinco entrevistas que havia realizado foram descartadas e refeitas por outro profissional da empresa. As afirmações dela, diz a nota, “não estão de acordo com as normas de isenção e neutralidade que norteiam as pesquisas conduzidas pela Quaest” – no final, divulgou um e-mail para denunciar “condutas inadequadas em relação ao nosso compromisso com a isenção e a imparcialidade”.

O vídeo e a admissão do erro pela empresa despertaram críticas e dúvidas, principalmente entre apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, em relação aos procedimentos da Quaest.

A Gazeta do Povo entrou em contato com a empresa, por telefone e e-mail, para obter mais esclarecimentos sobre como ela atua para mitigar a possibilidade de enviesamento dos resultados. Em nota (íntegra abaixo), a empresa respondeu que é independente e apartidária, que reporta apenas o que afere e mede, e que adota “critérios absolutos absolutos de checagem e verificação”.

“Todas as entrevistas e áudios são gravadas seguindo critérios da lei de LGPD e 100% passam por um rigoroso processo de consistência. Todo desvio ou viés eventualmente produzido por inconsistência ou má condução da entrevista é descartado imediatamente. Além do rigor na construção da amostra, na checagem e na consistência dos dados, também re-entrevistamos 25% das pesquisas para conferir a correção das respostas e se as entrevistas foram feitas corretamente. Auditamos tudo para que nossas estimativas finais sejam reais representações da realidade”, afirmou a empresa na nota.

Procurada, a Associação Brasileiras das Empresas de Pesquisa (Abep), afirmou, por meio de nota, que o episódio envolvendo a entrevistadora da Quaest “foi pontual e de impacto pouco significativo”. “Como a Quaest tomou providências imediatas para corrigir a falha e preservar as regras de isenção e neutralidade do estudo de opinião pública (cinco entrevistas descartadas e refeitas por outro profissional no dia seguinte dentro da mesma amostra) – medidas aprovadas pela ABEP –, avaliamos que o assunto está resolvido e não cabe qualquer penalização por parte da associação”, disse, na nota, o presidente da Abep, Duilio Novaes.

Para entender melhor o que pode acontecer com institutos que falham na aferição das intenções de voto, a Gazeta do Povo consultou a legislação, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), especialistas no tema e também normas de autorregulação da própria Abep. A conclusão é que há pouco controle sobre a qualidade das pesquisas, que depende muito da seriedade e da tradição dos institutos que a realizam.

O que diz a lei eleitoral e a jurisprudência do TSE

A Lei das Eleições diz basicamente que, no ano das eleições, as pesquisas eleitorais a serem divulgadas devem ser registradas na Justiça Eleitoral.

Não se exige muito para isso: as empresas só precisam informar, num sistema oficial, o contratante da pesquisa, valor e origem dos recursos para a realização do levantamento, metodologia e período das entrevistas, o plano amostral (no qual a empresa informa quantas pessoas pretende questionar em determinado local, baseando-se numa porção representativa de seu respectivo eleitorado, seguindo critérios de gênero, idade, grau de instrução, nível econômico, segundo dados oficiais), bem como nível de confiança e margem de erro.

Também deve apresentar o questionário que vai usar nas entrevistas e informar o nome do profissional de estatística que irá tabular e sistematizar os dados coletados.

Para especialistas, são requisitos formais que não dão à Justiça Eleitoral, por si só, condições de aferir se a pesquisa será bem feita ou não. Se essas informações forem apresentadas, o registro é efetivado e permite-se que, cinco dias depois, a pesquisa seja divulgada ao público.

“Não tem como fazer avaliação objetiva da qualidade da pesquisa de antemão para saber se o TSE pode autorizar ou não a empresa a fazer pesquisa”, diz Fernando Neisser, presidente da comissão de direito eleitoral do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

Essa análise, no entanto, pode ser feita pelos partidos, candidatos e coligações que participam da disputa. No período de cinco dias entre o registro e a divulgação, é permitido a eles verificar se há indícios, com base nessas informações, de que a pesquisa pode ser manipulada. Se isso for comprovado, a Justiça Eleitoral pode então bloquear a divulgação do levantamento.

Segundo Hélio Maldonado, advogado membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), é possível descobrir fraudes, por exemplo, quando os valores pagos são muito baixos, se a empresa que faz a pesquisa é ligada a algum candidato, se o estatístico apontado não tem registro ou não é efetivamente responsável pela análise dos dados, se o plano amostral, o questionário ou a metodologia levam a resultados enviesados.

“A gente judicializa pra caramba. Já encontramos casos, por exemplo, de uma empresa de marketing, que faz assessoria para um candidato, ser a mesma que faz a pesquisa. Isso denota ocorrência de fraude e afasta a publicação”, diz Maldonado.

Em geral, os partidos que desconfiam das pesquisas, com base no registro, contentam-se em bloquear a divulgação, para evitar que resultados manipulados possam enganar o público, induzindo-o a votar num candidato que falsamente é apresentado como favorito.

Mas é possível também aos partidos, após a divulgação, requerer junto à Justiça os questionários preenchidos no levantamento para aferir se de fato há uma fraude. Um bom estatístico consegue, com base neles, verificar se há entrevistas fabricadas, por exemplo.

Numa situação dessas, o partido pode pedir ao Ministério Público que investigue a empresa e, se for constatado dolo (intenção) de fraudar os resultados, os responsáveis pela pesquisa e quem a divulgou podem ser processados por crime eleitoral. A punição é de detenção de seis meses a um ano e multa de R$ 50 mil a R$ 100 mil.

Como o setor busca corrigir falhas em pesquisas

Fora os casos de fraude – isto é, uma atuação deliberada para enviesar os resultados – é comum que possam ocorrer falhas durante a coleta e o tratamento dos dados. E daí os alertas que os institutos são obrigados a apresentar sobre a margem de erro e o nível de confiança.

Uma pesquisa com nível de confiança de 95% significa, por exemplo, que se ela fosse realizada 20 vezes, seguindo os mesmos critérios, em uma vez (5%) os resultados poderiam ser bem discrepantes, acima da margem de erro.

Fernando Neisser, do Iasp, diz que, em geral, os erros tendem a se anular, em razão da maior quantidade de dados coletados numa pesquisa bem feita. “Sempre que você coletar com mãos humanas 2 mil questionários, vai ter gente fazendo besteira, de propósito ou sem querer. No mais das vezes isso é irrelevante. Porque erros tendem a se anular. Um erro para um lado anula outro para outro lado”, diz o advogado, habituado a analisar pesquisas.

Para ele, o caso da Quaest pode se enquadrar nesse tipo de falha, que é sanável. “Em geral, os institutos não fazem um treino intensivo com os entrevistadores. Não são pessoas contratadas como num concurso, para ganharem 15 mil reais por mês. Estamos falando de uma pessoa fazendo bico que recebe 100 reais por dia para aplicar questionários. Se em todas as pesquisas, me fosse dito que 1% faz esse tipo de coisa, eu acreditaria”, diz.

Também é prática entre os institutos de pesquisa fazer uma checagem de, no mínimo, 20% dos questionários aplicados. A Quaest afirma que faz essa verificação. No registro de suas pesquisas junto ao TSE, a empresa declara que "ao longo e após os trabalhos de campo, é realizada uma fiscalização que consiste na checagem de uma amostra de 20% dos questionários aplicados para verificação das respostas e da adequação dos entrevistados aos parâmetros amostrais".

Para certificarem o mercado da qualidade e confiabilidade de suas pesquisas, as empresas buscam seguir uma autorregulamentação baseada em práticas internacionais. A Abep, por exemplo, tem um código de conduta com uma série de orientações para os pesquisadores.

Entre elas, estão a de “atuar de forma que não possa trazer descrédito à profissão de pesquisa de mercado ou conduzi-la a uma perda de confiança do público, seja por ação, seja por omissão”, “manter o comportamento ético e o zelo pela reputação da atividade de pesquisa” e “compreender que a cooperação dos entrevistados é voluntária e deve ser baseada em informação adequada e não induzida”.

A associação congrega atualmente mais de 130 institutos de pesquisa e pode punir com advertência, suspensão ou exclusão aqueles que infringirem essas e outras normas de qualidade. A Abep ainda costuma trabalhar junto ao TSE para aprimorar os regulamentos da Justiça em relação às pesquisas.

Numa audiência pública realizada pelo tribunal em novembro do ano passado, a associação pediu várias alterações na resolução sobre as pesquisas para afastar a possibilidade de fraudes. Um dos pedidos é que as próprias empresas de pesquisa fossem registradas junto aos Conselhos Regionais de Estatística, algo que hoje é opcional, bastando a empresa indicar um estatístico registrado responsável pelo levantamento.

“A alteração na resolução para exigir o registro da empresa no conselho é importante, porque as empresas que não possuem entre as suas atividades principais a pesquisa de opinião pública podem não ter as expertises necessárias para realizar esse tipo de trabalho, que é complexo e possui regramento rígido na legislação justamente pela importância que representa no processo eleitoral”, disse, na audiência, a advogada Natallia Lima Souza, representante da Abep.

O presidente do Conselho Regional de Estatística da 4ª Região (que reúne a classe na região sul), Gabriel Afonso Marchesi Lopes, fez o mesmo pedido. Lembrou que, em 2020, a própria Abep denunciou ao Ministério Público empresas de outros ramos – por exemplo, uma de vans escolares e outra de filmagem de casamentos – que realizavam pesquisas.

“Essa é uma fábrica de fake news, que opera sob suposta chancela do TSE, pois, para a população, pesquisa publicada é pesquisa validada pelo tribunal. Isso é perigoso. Pessoas mal-intencionadas podem utilizar essa brecha para registrarem pesquisas fraudulentas”, alertou.

Apesar disso, a mudança não foi acatada pelo TSE no texto final da resolução.

Leia a íntegra da nota da Quaest

Em resposta aos questionamentos da reportagem sobre seus métodos para impedir enviesamento das pesquisas, a Quaest enviou a seguinte nota como resposta:

“A Quaest tem como missão produzir dados e insights para enriquecer o debate público e apoiar a tomada de decisões estratégicas. Somos independentes e apartidários, guiados por rigor, ética e metodologias científicas comprovadas.

Nossos mais de 1.000 entrevistadores são treinados para extrair respostas sinceras e isentas, sem viés ou interferência, aplicando os questionários seguindo todas as recomendações científicas.

Acreditamos que o papel de um Instituto é ser um termômetro da sociedade. Apenas reportamos aquilo que aferimos e medimos.

Adotamos critérios absolutos de checagem e verificação. Todas as entrevistas e áudios são gravadas seguindo critérios da lei de LGPD e 100% passam por um rigoroso processo de consistência. Todo desvio ou viés eventualmente produzido por inconsistência ou má condução da entrevista é descartado imediatamente.

Além do rigor na construção da amostra, na checagem e na consistência dos dados, também re-entrevistamos 25% das pesquisas para conferir a correção das respostas e se as entrevistas foram feitas corretamente. Auditamos tudo para que nossas estimativas finais sejam reais representações da realidade. Não nos interessa o resultado, se positivo ou negativo para alguém. Só nos interessa que o resultado tenha sido medido corretamente.”

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