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Panfletos

As santinhas do orelhão

Kassandras, Palomas, Brunas e Valescas invadem os orelhões da XV de Novembro com seus anúncios de serviços. Por trás do novo uso dos telefones públicos funciona uma rede de informalidade capaz de despertar, na mesma medida, a ira e a paixão

Não faz muito tempo. Muitos jovens de 20 a 25 anos lembram os primeiros "tijolos" que circulavam nas mãos de curitibanos no Centro da cidade. Surgia um novo fenômeno da vida moderna – o celular. O equipamento era visto estranhamente, já que as pessoas falavam com elas mesmas caminhando pelas ruas. Hoje é um item indispensável, quase vital para a comunicação.

Levantamento da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), de 2010, aponta haver um celular habilitado para cada morador do país. A capital do Paraná ultrapassara então essa barreira com quase 1,3 telefones móveis por habitante. Sem dúvida, a relação celular/habitante deve ter aumentado, já que muitos, não satisfeitos, possuem dois ou até três aparelhos.

A popularização dessa ferramenta de comunicação deu origem a outro fenômeno moderno – a marginalização dos telefones públicos, os conhecidos orelhões. Antigamente, era possível ver filas se formarem atrás das cabines. Apesar do uso do celular ser cada dia mais comum, os orelhões ainda representam um bom número. No Paraná, são 1,2 milhão de equipamentos, pouco mais de 12 mil instalados só na capital.

Objeto da paisagem urbana, dele surgiu a expressão "cair a ficha" que não faz sentido algum, já que as moedinhas foram substituídas pelos cartões de empresas telefônicas. Hoje, o aparelho só é utilizado pelos "marginais", aqueles que não possuem um telefone móvel, e mesmo os engraçadinhos que insistem em passar trotes. Ainda servem como válvula de escape quando o celular "apaga" ou insiste em não pegar o sinal. Assim, os famosos orelhões, mesmo aqueles que representam uma paisagem antiga – como as cabines de formato diferente na Rua XV de Novembro – foram perdendo sua função original.

A exemplo de muitos aposentados, o telefone público ganhou uma profissão alternativa: o de balcão de anúncios de prostituição. Quem passeia pelo Centro de Curitiba já se acostumou com os "papeizinhos" encaixados nos pequenos vãos do orelhão com fotos impróprias para menores de 18 anos, nomes de guerra de prostitutas e números de telefone que prometem prazer imediato por um preço acessível. Os interessados no serviço utilizam a própria cabine para entrar em contato com as acompanhantes, seja para manter o anonimato do número de telefone particular ou do rosto que fica escondido na orelha gigante. São vestígios de privacidade em meio ao centro conturbado.

Zeladores da moralidade

Parte da população anda na contramão desse novo uso do instrumento público. Muitas são as senhoras que o deixam de usar, ou mesmo recolhem e jogam no lixo os anúncios para poder telefonar. Nem a prefeitura de Curitiba nem as empresas responsáveis pelas linhas respondem pelo recolhimento desse material. Alega-se que a Guarda Municipal a os fiscais não conseguem dar conta das dezenas de homens ágeis que andam com mochilas repletas de anúncios e, de hora em hora, entopem os quase 2 mil telefones do Centro com propagandas de casas de prostituição.

A assessoria do governo municipal afirma que os garis recolhem os papéis quando são encontrados no chão como qualquer lixo, sem distinção. A Oi também se manifestou informando que vários orelhões são danificados com a colaboração dos panfleteiros e que mantém um programa de limpeza constantes das cabines. Porém, é difícil controlar os anunciantes que recebem de R$ 30 a R$ 50 por dia de trabalho.

"Nós também já desistimos desse serviço", afirma Deisi Fonseca, coordenadora de projetos da Associação dos Condomínios Garantidos do Brasil (ACGB). "Os marqueteiros fazem questão de dizer que tudo que retiramos é colocado de volta, em dobro, no telefone", completa. A ONG é responsável pelo projeto "Zeladores da Vizinhança" que faz a limpeza e conservação do ambiente urbano. "A minha orientação é para que os trabalhadores não retirem mais os anúncios porque esse problema aumentou muito nos últimos tempos. Contratam menores de idade para a distribuição do material, intimidam e ameaçam os zeladores", alega.

Para Deisi, que se sente envergonhada quando se depara com os anúncios no telefone, principalmente quando está acompanhada da filha de 11 anos, os minipanfletos prejudicam toda a cidade. "Não vejo o orelhão como o local adequado para esse tipo de propaganda", defende. Segundo ela, Curitiba é considerada referência em qualidade de vida e vem decaindo nesse conceito. "Turistas do mundo todo visitam a cidade procurando paisagens bonitas, mas as coisas mudaram muito. Esse tipo de vandalismo prejudica todos nós", finaliza.

Vendendo o peixe

Na defesa das mulheres com vários nomes e identidades está a enfermeira e ex-prostituta Carmem Costa, coordenadora do grupo Liberdade, ONG de apoio às um dia chamadas "mulheres da vida". "O problema não está nos panfletos, está no preconceito da sociedade", afirma. Para ela, que já enfrentou o neto, de 7 anos, perguntando o objetivo dos anúncios, os reality shows, as novelas ou os comerciais de cremes são tão ou mais abusivos que as propagandas de sexo. "Acredito que todos os profissionais têm o direito de vender seu peixe, seja por meio da poluição visual ou sonora", defende.

Durante a entrevista na organização – que funciona no Centro Velho de Cuiritiba –, Carmem foi interrompida várias vezes por moradores de rua pedindo roupas, prostitutas atrás de camisinhas e uma travesti procurando ajuda para tirar os pontos ocasionados por facadas nas costas. Carmem afirma que conhece todos os donos das "casas de massagem" ou "saunas", como ela chama. "É uma rede. São lugares bem organizados, com regras específicas, que logo se tornarão cooperativas de trabalho", garante. A ordem e sigilo são comprovados pelo fato das garotas não concederem entrevistas quando insistentemente procuradas pela reportagem.

Para a coordenadora, que trabalhou durante 27 anos nas ruas de Curitiba, além de ser um serviço essencial para a sociedade, a prostituição movimenta o comércio local. "Os homens vêm para o centro da cidade para usufruir desse bem e almoçam, adquirem roupas, abastecem o carro, compram passagem de ônibus, ou seja, gastam dinheiro", defende.

Com o mesmo argumento, ela sai em defesa do trabalho dos panfleteiros. "Eles poderiam estar roubando, mas estão ganhando dinheiro de outra maneira", afirma. "Não sei sobre a versão legal ou jurídica, não me diz respeito, mas se não fosse o anúncio, a mulher ficaria ao lado do telefone procurando um programa, o que incomodaria muito mais", complementa.

Opiniões divididas, só resta uma certeza: muito papel ainda vai voar.

* * * * *Pelo telefone"Oi amor, pode falar!"

Conversar com as moças que têm seus anúncios disponibilizados nos orelhões da Rua XV é uma operação comum. Quem atende possui uma voz sedutora e carinhosa, pronta para satisfazer qualquer desejo de quem liga. Uma característica comum dos discursos é a introdução: "Oi amor, pode falar!", uma intimidade rara entre duas pessoas que nunca se viram.

A voz suave muda o tom quando a moça do outro lado é interrogada sobre suas histórias particulares. Muitas são as formas que as atendentes utilizam para recusar a falar do assunto. A maioria desliga o telefone no ato, outras preferem recorrer às respostas mais elaboradas.

GABI

- Olha, para dar entrevista a gente também cobra, 40 reais meia hora e 60 por uma hora.

BABALU

- Não posso falar porque todos os telefones daqui são grampeados.

MEL

- Olha, primeiramente, nós não trabalhamos com orelhão. São outras pessoas que colocam isso lá. E segundo, se você quer saber como é a vida de uma dessas meninas, entra em uma zona e trabalha como prostituta que você vai aprender direitinho.

SILVIA

- Passa aqui na segunda-feira que vou falar com as meninas. No dia combinado, pessoalmente:

- Nenhuma menina tem interesse em participar, pois não querem expor suas vidas. Muitas são casadas e têm filhos. Nós já concedemos entrevistas, mas hoje ninguém quer falar e não posso forçá-las.

ANA PAULA

- Esse tipo de entrevista não interessa ao nosso trabalho, só prejudica.

DOMINIQUE

- Olha, eu não posso falar por vários motivos. O primeiro é que eu não quero!

ARIANE

- Qual o valor do cachê? Nós cobramos R$ 150.

ANNY (voz da mesma pessoa que atendeu por Ariane):

- Acabei de falar com você. Quando você tiver o dinheiro pode ligar de novo. E outra coisa, em todos os números que você ligar a partir de agora sou eu quem vai atender, obrigada. (KB e PA)

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