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Vanderlei durante a conquista do bronze em Atenas, há dez anos, e em evento comemorativo em São Paulo, ontem | Ivo Gonzalez/ Agência O Globo
Vanderlei durante a conquista do bronze em Atenas, há dez anos, e em evento comemorativo em São Paulo, ontem| Foto: Ivo Gonzalez/ Agência O Globo

Opinião

Um legítimo herói

Leonardo Mendes Júnior, enviado especial da Gazeta do Povo à Olimpíada de Atenas, em 2004

A sensação ao deixar o Ginásio da Paz e da Amizade, no início da tarde de 29 de agosto de 2004, era de missão cumprida. O grande evento do dia, o ouro do vôlei masculino, tinha acabado. O Edson Militão tinha ido a Marathon acompanhar a largada da maratona e estaria também no Panathinaikon, o estádio de mármore, para ver a chegada. Pegaria algumas declarações dos paranaenses e eu faria o registro da prova. Com sorte, até daria para relaxar e curtir a cerimônia de encerramento…

"O Vanderlei está em primeiro!". A informação veio do Brasil por telefone. Foi dividida rapidamente pelo Adalberto Leister Filho, da Folha de S. Paulo, com a meia dúzia de jornalistas que se encaminhava para o ônibus de imprensa. Atravessamos o estacionamento sob o inclemente sol do verão grego e fomos até uma estação de metrô ali perto, de onde seria possível seguir até o centro. De poucos em poucos minutos vinham novas informações do Brasil. "Vanderlei continua em primeiro", "Está abrindo vantagem", "Já passou de 75% da prova", "Um grego vestido de padre bateu no Vanderlei"... O quê?

Os telefonemas seguintes deram um pouco mais de lógica à mais ilógica passagem da história olímpica. No km 36 da prova, Vanderlei Cordeiro de Lima foi agarrado por um padre irlandês e salvo por um torcedor anônimo. "É o Cornelius Horan! O maluco que invadiu a pista em Silverstone", disse o Fabio Seixas, também da Folha, com a facilidade de quem cobria F1 há anos.

Difícil era chegar ao Panathinaikon. As estreitas calçadas estavam cheias de gente. Sem espaço, furamos o já furado cordão de isolamento e fomos para a pista. Como maratonistas, corremos alguns metros e apontamos na reta do lendário estádio de mármore até encontrar uma barreira de voluntários e policiais. Alguns furaram o bloqueio mesmo assim. Eu corri para a arquibancada e atravessei por lá até chegar à área de imprensa. Consegui apenas esticar o gravador e registrar as palavras de um Vanderlei inacreditavelmente feliz. Vi colegas chorando, outros se abraçando.

No berço das Olimpíadas, na prova mais emblemática do mais nobre esporte, estávamos diante da melhor tradução possível do espírito olímpico. O domingo só foi acabar às 4 da manhã da segunda-feira, quando mandei o último texto para a redação (eram 22 horas no Brasil). Ainda não conseguia entender a reação de Vanderlei ao crime cometido contra ele.

Entendi no dia seguinte. Levamos Vanderlei para uma foto abaixo da escultura de Fidípedes, o mensageiro que correu de Marathon a Atenas para anunciar a vitória dos atenienses sobre os persas e morreu logo em seguida. Antes de todos nós, Vanderlei já sabia que era um herói olímpico daqueles que só se produz na Grécia.

Vanderlei Cordeiro de Lima é daquelas pessoas que guardam seus tesouros em um cofre, que só é aberto em ocasiões especiais. "Levei as duas para passear", conta, orgulhoso, o ex-maratonista paranaen­se de 45 anos. "As duas" são as medalhas de bronze olímpica e a Pierre de Coubertin. Relíquias preservadas na sede da BM&F Bovespa, em São Paulo, que, excepcionalmente nesta semana, passam a maior parte do tempo penduradas no pescoço do dono.

Há exatos dez anos, Van­derlei foi terceiro colocado na maratona dos Jogos Olímpicos de Atenas-2004. A exclusivíssima Pierre de Coubertin – entregue a 17 atletas no mundo todo – veio em consequên­cia da conquista do bronze. O paranaense de Cruzeiro do Oeste liderava a prova até o quilômetro 36, quando foi agarrado pelo ex-padre irlandês Cornelius Horan, conhecido por, dois anos antes, invadir a pista durante o GP da Inglaterra de F1. Vanderlei contou com a ajuda de um espectador, o grego Polyvios Kossivas, para se livrar do agressor e concluir a corrida. Não em primeiro, mas em terceiro.

"Quando eu comecei, não tinha nem um gato para puxar o rabo, como diz o ditado, mas tinha um sonho. Muita gana, determinação e, principalmente, vontade de vencer. Fui mais longe do que imaginava, e por isso estou aqui hoje. Só tenho a agradecer", disse ontem, em São Paulo, em uma entrevista coletiva interrompida algumas vezes por lágrimas. "Desculpa, prometi que não ia mais chorar".

Cerca de uma hora e meia depois, sem lágrimas, mas eufórico pela festiva semana dos dez anos da medalha olímpica, atendeu a Gazeta do Povo, por telefone. Estava no carro, a caminho de Campinas, para mais uma homenagem e mais uma comemoração pelo episódio que marcou sua vida.

Quanto aquela maratona ficou marcada para você?

Mudou tudo, principalmente em termos de reconhecimento. Deus colocou daquela forma para que eu pudesse ser mais valorizado, pois na cultura do brasileiro só importa o ouro. Sou o Vanderlei do padre, não o do bronze. Você se pergunta o que teria acontecido na prova sem o ataque do padre?

Não tem como avaliar. Eu preferia que nada tivesse acontecido e ganhar a medalha de ouro. Mas nem tudo acontece como a gente planeja e aquele dia acabou mudando a minha vida. Especialmente por ter sido na maratona, em Atenas, 108 anos depois da primeira Olimpíada lá. O mundo estava assistindo à prova.

Onde você guarda as medalhas?

Em um cofre da BM&F, mas estão sempre comigo. Levei as duas para passear hoje. Viraram dois filhos pelos quais criei muito carinho. Guardo tudo de Atenas. Tênis, short, camiseta, número, credencial... Fica em casa, convivo direto com as lembranças. Na medida do possível treino um pouco, pensando em qualidade de vida, não mais em competição. Hoje sou padrinho de clube, participo de um programa da Confederação Brasileira de Atletismo, tenho o meu instituto, sou padrinho de um projeto em Campo Mourão. Faço eventos particulares de empresas. O esporte transformou minha vida. Como você vê as chances de o Brasil entregar uma boa Olimpíada em 2016?

Estamos no caminho. O fun­­da­men­tal é que as coisas não terminem em 2016. O investimento feito precisa deixar um legado para 2020, 2024. E o esporte no Paraná?

Da última vez que comentei algo, acabei arrumando uma briga com as pessoas que estavam à frente do esporte no estado. Então prefiro não dar mais opinião. A gente procura dar uma opinião verdadeira e acaba ofendendo gente que às vezes quer usar o esporte em benefício próprio.

Você fala da pista de atletismo em Cascavel?

Então… Estamos esperando todo aquele projeto até hoje. Não falei nada mais que a verdade.

[Nota da Redação: em agosto de 2013, Vanderlei, em entrevista à Gazeta do Povo, criticou o projeto do secretário estadual de Esporte, Evandro Rogério Roman, de criar um centro de excelência em atletismo em Cascavel, seu reduto político. Ele defendia um centro em Campo Mourão ou Paranavaí, cidades com tradição no atletismo.]

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