"A Semana que não acabou"

Arquitetura

Semana de Arte Moderna completa cem anos com valores que ainda ressoam no imaginário popular

Sharon Abdalla
11/02/2022 12:15
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O Theatro Municipal de São Paulo abrigou os eventos da Semana de Arte Moderna. | Eli Kazuyuki Hayasaka

“Pensar que esse ano toda semana é uma semana de 22”. Brincadeiras à parte, o post publicado em um perfil em uma rede social resume o sentimento que a celebração dos 100 anos da Semana de Arte Moderna evoca. Isso porque, mais do que a coincidência numérica referente ao ano vigente, vivenciamos tempos nos quais os valores propostos e o legado da Semana ressoam no imaginário popular.
Realizados nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no Theatro Municipal de São Paulo, os eventos, trabalhos e mensagens foram referenciadas à época e entraram para a história como a “Semana de 22”, não sem antes chocar o público, provocar burburinho na imprensa - que noticiava o evento como algo estranho e até conflitante à mentalidade vigente -, e mudar para sempre o cenário das artes no Brasil.
“Considero que toda proposta artística é também social e política. E sem dúvidas estava no centro da proposta estética dos modernistas daquele momento uma arte alinhada com o tempo nascente da indústria, do automóvel, do crescimento urbano e da presença dos imigrantes, que chacoalhavam a cidade desde o fim do século 19. Em uma visão mais ampliada, era uma busca por alinhamento com as vanguardas europeias, em um primeiro momento mais com o futurismo, mas sobretudo era um projeto para se pensar uma arte própria do Brasil, baseada na construção de uma identidade nacional e, ao mesmo tempo, na necessidade do país alcançar progresso material e industrial. Ou seja, era uma proposta que transcendia os limites da arte e constituía um projeto de decolonização cultural, questão atualmente tão em voga”, aponta Ivo Giroto, professor do departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
O movimento modernista começou antes mesmo da Semana de 22, com nomes como Anita Mafaltti. Na foto, a obra "O Farol".
O movimento modernista começou antes mesmo da Semana de 22, com nomes como Anita Mafaltti. Na foto, a obra "O Farol".
Entre estes artistas estavam nomes como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti, Heitor Villa-Lobo e Anita Malfatti, uma das precursoras do modernismo no Brasil, que já havia realizado duas exposições individuais em 1914 e 1917. Assim como Anita, outros artistas não apenas de São Paulo, mas também de outras cidades do país (Rio de Janeiro, Belém e Recife, por exemplo), já haviam assinado obras tidas como modernas anteriores a 1922, o que faz com que o movimento, no Brasil, não comece, de fato, com a Semana de Arte Moderna, como lembra Luiz Armando Bagolin, professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e curador da exposição “Era Uma Vez o Moderno [1910-1944]”, em cartaz no Centro Cultural Fiesp, em São Paulo.
“O modernismo brasileiro é um conjunto de iniciativas, tanto individuais como coletivas, que têm em comum o intuito de renovar a cultura das artes e a cultura do país. Mas essas iniciativas antecedem muito a Semana. Ela foi um [marcante] episódio nessa história de se construir arte moderna no Brasil. E podemos vê-la mais como um desejo de atualização do que de ruptura. Ela valeu mais como carta de intenções, mas não teve proposição do ponto de vista social, político e econômico”, completa o professor, ao discordar de seu colega de instituição.
A Semana de 22 influenciou uma geração de artistas, como Tarsila do Amaral. Na foto, o célebre "Abaporu", de 1928.
A Semana de 22 influenciou uma geração de artistas, como Tarsila do Amaral. Na foto, o célebre "Abaporu", de 1928.

O moderno e a arquitetura 

Assim como nas artes plásticas e na literatura, as proposições e até mesmo a assimilação do que foi apresentado na Semana de 22 repercutiu na arquitetura nos anos seguintes à sua realização. Outro fato que contribuiu para isso, como lembra o professor Ivo Giroto, foi a inexpressividade dos trabalhos apresentados por seus representantes, entre eles os arquitetos Georg Przyrembel e Antônio Garcia Moya, que “passavam ao largo da questão de pensar um modernismo de raiz nacional” e não acompanharam com a mesma “intensidade os debates iconoclastas dos outros campos artísticos” que integraram o evento.
Cerca de seis anos depois, o imigrante russo Gregori Warchavchik foi o primeiro arquiteto a dialogar de forma mais direta com o pensamento modernista a partir do projeto da casa que assinou na Vila Mariana (SP). Mas a maturidade de uma arquitetura de ares modernos, sustentada pelas “raízes brasileiras do universo”, como dizia Lúcio Costa, dá-se na década de 1930, durante o Estado Novo, com as obras do arquiteto e do grupo composto por Oscar Niemeyer, Affonso Reidy e os irmãos Marcelo, Milton e Maurício Roberto, no Rio de Janeiro.
Nas décadas seguintes, o que se viu foi o auge do estilo arquitetônico a partir de trabalhos assinados por estes profissionais e por outros nomes estelares, como Lina Bo Bardi e Paulo Mendes da Rocha, tendo seu apogeu marcado pela construção e inauguração de Brasília, fundada na década de 1960 e listada como Patrimônio da Humanidade pela Unesco.

A semana cem anos depois 

A repercussão posterior da busca por uma arte brasileira proposta pela Semana de Arte Moderna perdura ainda hoje, em parte pela força que o movimento ganhou no fim da década de 1960 e início dos anos 1970, quando da celebração de seu cinquentenário e do início de seu ensino nas escolas. Além disso, não é exagero dizer que a Semana de 22 e os artistas que participaram ou foram discípulos dela, como Tarsila do Amaral, um dos nomes mais referenciados quando o assunto é modernismo brasileiro, habitam o imaginário popular, assim como muitos de seus temas ainda estão na pauta nacional.
Cartaz  da Semana de Arte Moderna de1922 feito pelo artista Di Cavalcanti.
Cartaz da Semana de Arte Moderna de1922 feito pelo artista Di Cavalcanti.
“Os temas colocados durante a Semana tocam no âmago da constituição social brasileira, e por isso não perdem vigência. Refiro-me às questões relacionadas à identidade nacional, que por mais que já não se sustentem de um ponto de vista monolítico e homogêneo atualmente, não deixam de seguir como pontos constitutivos da sociedade brasileira, como as heranças indígenas, negras e a mestiçagem, a convivência de progresso e atraso, urbano e rural etc.”, aponta Giroto. “Seu principal legado é a constituição de uma radical proposta de decolonização cultural, sendo nacionalista sem ser chauvinista. Ou seja, de enxergar o Brasil e sua cultura como resultado do cruzamento, da sobreposição, nem sempre harmoniosa, de povos e culturas”, completa.
Mesmo atuais, tais temáticas, por si só, não seriam suficientes para uma nova Semana de 22, desta vez no século 21, segundo os especialistas. “Temos muitas semelhanças entre aquela época e a nossa, especialmente em relação à conjuntura social e política. Mas não teríamos elementos para a efervescência de um novo movimento”, reforça Bagolin. Isso porque a atualização e o consumo das artes e seus movimentos se dá quase em tempo real no ambiente digital e seu contexto se move não mais pelas estratégias de contraposição que davam o tom dos manifestos artísticos do começo do século passado, como reforça Giroto. “O cenário contemporâneo é muito mais complexo, acho que dificilmente um movimento só, em bloco, teria repercussão e adesão tão amplas. As questões são outras, não estamos mais preocupados com a construção de uma identidade nacional homogênea, mas em como conviver e extrair o melhor da nossa complexa diversidade”, finaliza.

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