Planejamento urbano aliado à natureza

Arquitetura

Com 30 dias de chuva por ano, sistema de irrigação de província argentina abastece a cidade e 1 mil vinhedos

Luciane Belin, especial para HAUS
13/01/2023 16:32
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O município de Mendoza, na Argentina, é - literalmente - um oásis. Ele e todos os demais centros urbanos da província de mesmo nome são construídos em uma região desértica em que chove apenas 200 milímetros por ano -- ou seja, menos do que em um mês de janeiro na cidade de São Paulo, por exemplo.
Em geral, são cerca de 35 dias de chuva anualmente, e esse volume se concentra em alguns dias, com frequentes tempestades de granizo. Ainda assim, são cidades de vegetação verde exuberante no verão e na primavera e onde são cultivados parreirais que produzem alguns dos mais bem avaliados vinhos do mundo.
Como uma província sem chuva logrou ser não apenas habitável, mas também se tornar uma das mais bem sucedidas produtoras de uvas de qualidade e vinhos concorridos em todo o mundo? O segredo não é chuva, mas vem do céu: a neve, aliada a um planejamento urbano exemplar. Assim como a formiga da fábula, Mendoza passa alguns meses estocando, para consumir nos seguintes.
Rios têm cores definidas pelos minerais da montanha. No entorno do Rio Atuel, um verdadeiro oásis com as montanhas desérticas ao fundo.
Rios têm cores definidas pelos minerais da montanha. No entorno do Rio Atuel, um verdadeiro oásis com as montanhas desérticas ao fundo.
“As nevascas ocorrem no inverno, na Cordilheira [dos Andes], na fronteira com o Chile, produzidas por um fenômeno regional conhecido como vento Zonda, entre os meses de abril a outubro. Dependendo das altas temperaturas da montanha, os degelos drenam pelos principais rios da Província de Mendoza -- rios Mendoza, Tunuyán, Diamante e Atuel -- e atingem os reservatórios”, explica o engenheiro Rubén Villodas, Diretor de Gestão da Água de Irrigação de Mendoza.
Ele explica que os reservatórios abastecidos ao final do inverno precisam durar o ano inteiro. Caso contrário, a província inteira ficará desabastecida nos meses seguintes. “Na primavera, quando as culturas começam a ter folhas e frutos, as temperaturas da montanha são muito baixas e não há escoamentos significativos, então toda a província se abastece de irrigação das reservas”. Em anos nos quais os volumes de neve registrados entre junho e setembro são baixos, o desabastecimento se torna um problema sério na cidade.
Dique de Potrerillos, em Mendoza, que armazena parte da água do degelo da Cordilheira dos Andes, ao fundo.
Dique de Potrerillos, em Mendoza, que armazena parte da água do degelo da Cordilheira dos Andes, ao fundo.
Villodas explica que o degelo é tão protagonista que as chuvas são responsáveis por apenas 5% das necessidades de irrigação da província. Segundo ele, a maneira como as precipitações acontecem, todas de uma vez em três ou quatro tempestades curtas e intensas, com muito pouca cobertura espacial, faz com que se torne muito difícil e pouco econômico tentar coletar água da chuva.
Em um ano inteiro, chove em Mendoza o equivalente a um janeiro chuvoso qualquer de São Paulo.
Em um ano inteiro, chove em Mendoza o equivalente a um janeiro chuvoso qualquer de São Paulo.
Não é incomum, por exemplo, visitar a cidade em um dia de chuva e se deparar com as torneiras sem água. Isso acontece porque, como chove pouco, a tempestade suja e desregula os sistemas de distribuição. “Tentar coletar água da chuva geralmente traz mais desvantagens do que vantagens. Portanto, o que se faz é não irrigar nas áreas onde as chuvas ocorreram e armazenar esse volume de água nos reservatórios, para utilizá-los posteriormente”, elucida o engenheiro.

Las acéquias, uma atração à parte

Ironicamente, nas cidades construídas em regiões desérticas, a água se transforma em atração turísticas. Primeiro, porque os diques que armazenam água permanecem à vista o ano inteiro, gerando paisagens de tirar o fôlego. Segundo, pela forma com que a água dos reservatórios chega até os centros urbanos: valas cavadas nas ruas que são conhecidas como acéquias. 
Acéquias das ruas de Mendoza
Acéquias das ruas de Mendoza
Elas estão em todas as ruas de Mendoza Capital e demandam atenção redobrada aos turistas desavisados que passeiam a pé -- especialmente em uma cidade onde se consome tanto vinho! São canais que servem tanto para o escoamento ou a drenagem da chuva, nestas raras ocasiões de tempestades, quanto para distribuir a água que veio do degelo, quando não chove.
Porém, diferente da maioria das cidades do mundo, as acéquias mendocinas são canais abertos, destampados, que já se tornaram marca registrada desta área. “As acéquias são muito características em nossa região, principalmente nas cidades, pois formam o sistema de drenagem pluvial das mesmas, a céu aberto, não dentro de tubulações como na maioria das cidades do mundo”.
Canais abertos permanecem maior parte do tempo secos, exceto quando a água é distribuída. Mas, o tempo é tão seco que a água evapora rapidamente.
Canais abertos permanecem maior parte do tempo secos, exceto quando a água é distribuída. Mas, o tempo é tão seco que a água evapora rapidamente.
Como Mendoza é uma área desértica, é essencial ter árvores ao longo de todas as ruas, o que melhora significativamente as condições de vida durante o verão. Boa parte da vegetação que hoje ornamenta a cidade não é natural dessa região, já que ali só crescem sozinhos os cactos e plantas e arbustos rasteiros. “ Essas árvores inevitavelmente precisam de um sistema de irrigação para sobreviver, que também é formado pelas acéquias”.
Mas, diferente das árvores, o sistema de irrigação tem história e é bem latino. “É certo que o sistema de irrigação com canais e ventosas já era utilizado pelas comunidades nativas Huarpes de toda esta região, sendo amplamente empregado na época colonial, especialmente pelo General San Martín, que foi governador de Mendoza no século 19”, ensina Villodas.
Embalse de Valle Grande, em San Rafael, na província de Mendoza.
Embalse de Valle Grande, em San Rafael, na província de Mendoza.
As acéquias também são uma forma de evitar enchentes e alagamentos, como a que acometeu a cidade em 1861 e que é, até hoje,  um dos grandes fantasmas na história da Argentina. Na ocasião, mais de 4 mil pessoas -- então um terço da cidade -- faleceram em consequência do sismo e dos alagamentos que resultaram do mesmo, já que a zona não tinha um sistema eficiente de drenagem.
A Lei de Águas de Mendoza foi criada em 1864, três anos depois, e é uma das mais antigas da América Latina, tornando-se referência internacional e sendo considerada possível candidata a patrimônio cultural argentino.

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