Urbanismo

Ascensão e queda da São Francisco: por que revitalização da rua histórica falhou?

Carlos Coelho
22/05/2018 12:00
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Fotos: Lineu Filho/Gazeta do Povo

Dois homens conversam na porta de um bar enquanto dividem uma garrafa de cerveja no fim de tarde de terça-feira. Um deles é de Corumbá, Mato Grosso do Sul, e está ali aparentemente em busca de alguma diversão. O outro, um morador local, faz o papel de guia informal e dita o funcionamento da velha São Francisco. “Você não deu sorte. Isso aqui enchia. Começava umas 4 da tarde e ia embora”, eu escuto de pé-de-ouvido o lamento do solicito anfitrião. Ele não precisa se estender. O cenário por si só já é melancólico o suficiente, quase um filme de Spike Jonze. Divide espaço com a dupla apenas dois ou três grupos de jovens que fumam e bebem cerveja de garrafa ou Fontana – um filtrado alcóolico de morango daqueles vendidos em garrafa de plástico. O que era há pouco tempo a rua mais cheia de vida da cidade é agora um esqueleto agonizante de grafites e portas fechadas. À frente, em uma delas, se lê ‘para toda la gente’. O bar que ostenta a frase se foi. Assim como toda la gente.
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Em meados de 2016, a Rua São Francisco era o lugar certo para estar em uma cidade na qual a gastronomia na calçada começava a pegar. Uma série de ações de revitalização – que começou de fato em idos de 2010, ainda no fim da gestão de Beto Richa na prefeitura da cidade, com obras no entorno do Paço Municipal, e ganhou força em 2012, quando a prefeitura trocou calçadas, postes e lâmpadas –, a via mudou sua vocação. Se antes aquele era o roteiro da tarde dos curitibanos, onde se escapulia nos almoços para provar uma parmegiana do Nonna Giovanni, um pastel no Mikado e pegar um doce na Confeitaria Blumenau, com a renovação passou a ser point noturno. Os bares descolados começaram a chegar e logo foram abraçados pelos hipsters, jovens alternativos altamente antenados em cultura, cervejas artesanais e bicicletas. Funcionou bem. Muito bem. Se por alguns anos a São Francisco era uma rua escura evitada a qualquer preço após o por-do-sol, tornou-se um espaço para curtir com os amigos notívagos. Tudo isso em um cenário inspirador, meio Brooklyn, meio Berlim, com grafites adornando os bonitos prédios históricos.
Pauta sobre a decadência do comércio na rua são francisco
Pauta sobre a decadência do comércio na rua são francisco
Mas foi de repente. Um clima soturno começou a tomar conta do espaço festeiro. Se durante o dia o movimento permanece quase intacto – Nonna Giovanni e Restaurante São Francisco seguem firmes e fortes –, nas noites, tudo mudou. Portas fechadas ocupam os espaços antes abarrotados de grupinhos, sobretudo no primeiro trecho da via, entre a Rua Riachuelo e a Presidente Faria. Em uma das noites em que a reportagem circulava no local, uma empresária local baixava as portas. O movimento estava muito fraco. Não era nem 20 horas. “Comprei aqui há quatro meses. O movimento está muito ruim”, lamentava. Naquela semana, dois endereços anunciavam seu fechamento definitivo naquela mesma quadra: Negrita (da inscrição citada no começo do texto) e Samba, Pastel & Birita. Eram mais dois em uma lista de casas que bateram em retirada de um ano para cá.
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Como justificativa do fechamento, o Negrita citou em uma publicação que faltou apoio do poder público. “Nunca foi lorota. Sempre acreditamos que poderíamos contribuir para uma renovação da forma de uso desta parte da cidade! Sonhamos com uma transformação que vai além da comodidade dos shopping centres e seus estacionamentos, sonhamos com a ocupação do espaço público, com o uso da calçada mais do que do que do asfalto, fazendo do centro da cidade o nosso bairro”, dizia o desabafo postado no Facebook. “Sempre houve muitos obstáculos: a falta de apoio do poder público, a alta criminalidade, questões financeiras, a intransigência de quem não quer que nada mude nunca”, seguia a nota.
Em tom um pouco mais leve, o Samba Pastel & Birita também lamentava o que se subentende por omissão do poder público. “Infelizmente, ainda falta muita política pública para resolver os problemas de segurança da nossa região. Tentamos, nos vimos como um ponto de resistência. Batalhamos, corremos atrás e conseguimos erguer o movimento da rua mesmo quando ela estava tão “abandonada”. Vencemos em ser esse ponto de encontro e ficamos extremamente agradecidos por vocês acreditarem. Nossa missão foi cumprida”, disseram os sócios também pelo Facebook.
Os empresários das duas casas se recusaram a dar entrevistas alegando ser “assunto delicado”.  O sinal estava claro: a revitalização da Rua São Francisco falhou.
De fato a falta de segurança foi um dos pontos primordiais para afastar os frequentadores dos bares daquela rua. É uma reclamação não só de consumidores e empresários, mas que se estendia, compreensivelmente, aos moradores. E é fácil observar. Basta uma circulada de poucos minutos para um dos jovens encostados nas paredes grafitadas logo venham oferecer uma variedade de drogas que não se encontra nem na Wikipedia. “Desde o começo não estávamos otimistas [com a revitalização]. O bairro era mais seguro antes dela”, critica Christian Bove, da Associação de Moradores do Bairro São Francisco. “É que não antes não tinha os bares, não tinha tanta circulação de pessoas. Tinha furto de veículos, mas eram situações pontuais. Na época em que o prefeito [Luciano Ducci] nos chamou para conversar, falamos que não queríamos nada disso. Não existia tráfico de droga aqui no bairro, agora tem de sobra”, critica o morador da região há 53 anos.
Para Bove, há policiamento, mas ele não é efetivo. “A polícia não tem um atendimento de chamada [quando se liga para a central solicitando uma viatura]. O policiamento ocorre quando tem tiroteio, algo mais sério. Mas no geral o papel é só de fiscalização. É mais de dizer: a gente está aqui”, aponta Bove.
Ele não está só. Cidionil de Almeida, dono da hamburgueria Chico Burgers, conta que a situação afastou seus clientes de dois anos para cá. “Gostaria de mais policiais caminhando por aqui. Polícia preventiva, mas fardada. Duas ou três pessoas descendo e subindo. Carro de polícia passa 50 vezes. Mas se eles ficassem aqui, aí sim iria impor respeito”, sugere. Almeida é um dos empresários que não pretende sair do local, mas ainda assim fala da região com certo desapontamento. Pudera, ele viu suas vendas caírem 30% de 2016 para cá. E faz a relação direta com o tráfico. “As famílias não vêm mais. Elas vinham aqui para frequentar uma hamburgueria com ambiente aconchegante, mas acabaram sumindo”, relata.
Claro que o tráfico em regiões de grande aglomeração não é exclusividade da São Francisco. Vicente Machado, Shopping Hauer e Trajano Reis – três pontos com características bem semelhantes de público e vocação da velha “Sanfra” – sofrem com problema semelhante. Mas ali é um cenário mais inóspito. “A prefeitura precisa observar melhor estes imóveis abandonados. Tem que achar uma função para eles”, defende Bove. São nestas casas inabitadas, antigas e fáceis de invadir que traficantes e criminosos escondem drogas e objetos de furto, conta em condição de off um empresário da região.

Rosto curitibano

É um mea-culpa do poder público. Mauro Magnabosco, coordenador de projetos do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), não admite a falha na revitalização do Centro Histórico. “A [Rua] Riachuelo deu supercerto e vem se modernizado, mudando seu comércio. Já estamos com as obras do Cine Passeio encaminhadas”, compara. Ainda assim, diz que as coisas “precisam mudar” na via que a cruza. “Estamos criando alguns programas. O setor histórico [especialmente a Rua São Francisco] vai passar por um projeto chamado Rosto da Cidade. O objetivo é cuidar das coisas, do patrimônio cultural, das áreas em que as pessoas circulam. Vamos pintar as fachadas, criar acessibilidade, acabar com as condições de abandono dos imóveis, que geram um efeito negativo na cidade”, diz.
O coordenador aponta que o projeto  já começou, com o mapeamento dos imóveis vacantes e de quem são seus responsáveis, por exemplo. “Existe uma determinação muito forte do prefeito [Rafael Greca, PMN] de desapropriar os imóveis em que os donos não têm condição de manter para um uso efetivo”, indica.
O Rosto da Cidade será tocado em parceria com a comunidade e iniciativa privada, indica Magnabosco. É, aliás, essa união que ele prega como solução. “Um exemplo. Um grupo de ciclistas pediu um espaço para a cultura da bicicleta. Aí surgiu a Praça do Bolso do Ciclista [em 2014], feita dentro de um esforço coletivo brutal. Foi feita por um mutirão de cicloativistas. Quando se formatou o espaço, os próprios ciclistas abandonaram. Não tem mais o grupo. Estavam programados eventos para utilização desse novo modal, feiras explicando quais as vantagens da bicicleta, espaço para levar o filho, fazer o pessoal pedalar. Só que isso não saiu do pensamento. Os próprios idealizadores desse espaço caíram fora”, critica.
A falta de compromisso de todos os lados também é a justificativa para o fracasso, aponta Bove. “Acho que o pessoal não previu nestes estabelecimentos de pequeno porte a questão de banheiro. Com isso as pessoas estavam urinando na rua. Isso é um problema tanto para nós moradores quanto para o comércio, porque espanta cliente. Faltou uma questão estrutural dos negócios”, dispara.
Bove acompanhou de perto o surgimento e debatou com todos os lados a instalação dos bares na região. É só um dos pontos que ele critica. “As pessoas criaram um modelo de negócio que era de uma gastronomia a baixo custo, de ocupação da rua, afim de dar uma nova cara para o bairro. Eu acho que faltou planejar melhor essa proposta. O tipo de público que começou a frequentar era muito bom no começo. De repente veio muito usuário de droga e muito traficante. O centro da cidade sempre foi muito marcado pelo tráfico. O público bom acabou indo embora e ficou o público ruim, que não interessava para estes estabelecimentos. Quem frequentava atrás da proposta original do negócio acabou fugindo. Isso mostrou para eles que essa prática da forma que foi feita não deu sustentabilidade. O proprietário abria a porta do estabelecimento e dizia: ‘eu tenho problema com o vizinho, sobe o som, vem polícia; tenho problema com os traficantes; problema com o usuário de droga; o público que vinha para gastar não vem mais’. Eles foram vítimas do próprio modelo”, aponta.
Os empresários, claro, discordam. “Não me arrependo [de abrir uma casa na região], mas digo que é difícil manter isso em pé”, admite Cidionil de Almeida. “As vezes penso em mudar, vender bebidas baratas. Mas isso vai aumentar uma galera diferente do que quer para rua. Nós três [Chico Burgers, seu empreendimento, Bar do Fogo e Pizza, seus vizinhos próximos] temos um conceito diferente. Eu imagina outra coisa”, conta o empresário. Ele abriu uma loja ali imaginando que se tornaria um boulevard gastronômico, em uma linha quase europeia. “Não foi no que aconteceu de fato”, aponta.
Além dos três estabelecimentos, o Joker’s também continua funcionando.
Se a ocupação da rua, objetivo de todo o movimento dos bares, poder público, cicloativistas e entusiastas da São Francisco, ocorreu, trouxe um efeito colateral inesperado. A dificuldade de convivência. O texto original de despedida do Negrita dizia que “nenhum obstáculo foi maior que a incapacidade de convivência entre as diferentes classes sociais”. “Sem hipocrisia, o grande problema aqui nunca foi dividir calçada com traficante, mas certamente com os adolescentes da periferia. É uma triste constatação da nossa própria limitação social”, escreveram os proprietários no Facebook. O texto mais tarde foi apagado e o bar emitiu uma nota de esclarecimento. Em entrevista ao Bom Gourmet, no entanto, Patrícia Bandeira, proprietária do Negrita Bar  reafirmou a posição. “Estávamos em um espaço que não era nosso e houve um retorno, uma repulsa. O ideal era uma convivência amigável, cada um com seu público, mas isso não existiu. Houve muito embate e dificuldade. O público consumidor acabou se afastando, não queria conviver com alguns grupos sociais”, disse.
É um item relevante na conta. “São efeitos colaterais do próprio planejamento e do comportamento social na utilização de espaços públicos. Há que se existir um equilíbrio”, indica Magnabosco. Mas não houve. “A cidade é muito jovem nesta questão de dividir o espaço público com grupos de diferentes classes. O curitibano era fechado, vivia em seu grupo. De repente ele vai para a rua e encontra outros grupos. Não é uma acomodação fácil e a tendência natural no primeiro momento são os grupos procurarem novos espaços. É cultural e não se muda da noite para o dia. Nem sem desejo de mudar”, analisa a socióloga Maria Helena Dias, doutora pela UFRJ.
É preciso tempo. Por enquanto, a equação não fechou. De certo, apenas que nem Negrita e nem Samba Pastel & Birita cogitam voltar atrás e permanecer na via. Como último ato apenas mais uma festa na programação: uma despedida que aconteceu no último domingo (20). Foi o clímax festeiro para um final melancólico.
Pauta sobre a decadência do comércio na rua são francisco
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