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Gleici e Ana Clara vencem prova do líder | PAULO BELOTE/Globo
Gleici e Ana Clara vencem prova do líder| Foto: PAULO BELOTE/Globo

Para alguns, o Big Brother Brasil, que teve sua 19ª edição confirmada para 2019, é mais uma prova da decadência moral e estética da TV brasileira. Para outros, é tão-somente uma diversão a mais para depois de um dia de trabalho. Há ainda quem veja o jogo como o que ele realmente é: um jogo, digno de análises táticas e, claro, muita torcida. E, por fim, há quem veja no programa matéria-prima para estudos antropológicos, filosóficos e psicológicos. 

Quase duas décadas depois de estrear no horário mais nobre da maior emissora do Brasil, o Big Brother evidentemente passou por muitas mudanças – tantas quantas foram vistas na própria sociedade. São evidentes as diferenças entre os fatores que levaram à vitória do rousseauniano Kléber Bambam na primeira edição do programa e os motivos – nem sempre subjetivos – que levaram à vitória recente da acriana Gleici. 

A começar pela própria fascinação do “cárcere”. Nas primeiras edições, o Big Brother atraía espectadores com a promessa de exibir pessoas reais, espontâneas, submetidas ao isolamento e às pressões de uma convivência forçada. Aos poucos, contudo, os participantes parecem ter se adaptado às preferências do público, evitando, tanto quanto possível, comportamentos que veem como prejudiciais ao objetivo final: a fama e o prêmio milionário. 

Afabilidade e rejeição

Nem sempre. Uma das características constantes das dezoito edições do Big Brother Brasil é a rejeição enfrentada por participantes com discursos assertivos ou agressivos demais, ou com táticas de jogo baseadas na racionalidade pura e simples. Foi o caso, na edição mais recente, de Nayara e Patrícia, ambas eliminadas com rejeição recorde de 92% e 94%, respectivamente. A explicação para isso pode ser encontrada, primeiro, na obra clássica de Sérgio Buarque de Hollanda, Raízes do Brasil, apesar de o autor ter se arrependido de cunhar a fatídica imagem do brasileiro como “homem cordial”. Outra explicação passa pela obra do intelectual mais famoso do mundo na atualidade, Jordan Peterson

No primeiro dos ensaios que compõem o livro 12 Rules for Life: an Antidote to Chaos (12 Regras para a Vida. Um Antídoto para o Caos, em pré-venda no Brasil), Peterson fala dessa que é uma das cinco dimensões da estrutura psicológica: a afabilidade, isto é, a “capacidade de ser gostado”. Para Peterson, “é preciso um esforço consciente para ser aceito” – e este esforço é maior ou menor de acordo com o nível de afabilidade da pessoa. 

No cotidiano, mesmo no cotidiano algo artificial e confinado do Big Brother, expressamos a afabilidade por meio da assertividade, isto é, aquele “tom” agradável ou não que usamos para dar um simples bom-dia. Nayara e Patrícia, na ânsia de se tornarem “lagostas dominantes” (para usar a alegoria de Peterson), deram pouca atenção a essa característica fundamental para os espectadores. Daí uma explicação possível para os níveis recordes de rejeição. 

O mundo em preto e branco 

Só a afabilidade, porém, não explica a atração ou rejeição do público por este ou aquele participante. De um lado temos, sim, Patrícia, uma espécie de abelha-rainha expulsa da colmeia pelos zangões e operárias, a despeito de sua inegável “mentalidade de enxadrista”. De outro, temos Gleici, a vencedora que instintivamente usou seu alto nível de afabilidade para apelar não a seus colegas de confinamento, e sim ao público. 

E o que o público quer num reality show como o Big Brother é um universo que de alguma reforma reduza as complexidades da convivência a um binômio simplíssimo: o bem contra o mal. Sem nuances nem tons de cinza. 

O psiquiatra britânico Theodoro Dalrymple explica a estratégia vencedora de Gleici ao apelar ao sentimentalismo do público no brilhante livro “Podres de Mimados - As consequências do sentimentalismo tóxico” (É Realizações, 2015). Ao opor sua condição sócio-econômica, sua simplicidade intelectual e sua passividade (alto nível de afabilidade) à articulação “sofisticada”, estratégia agressiva e até mesmo as roupas de marca de Patrícia, Gleici criou dois polos distintos que o público entendeu como bem versus mal. 

Dalrymple habilmente relaciona a tática vencedora de Gleici à obsessão contemporânea pelo Grande Mal do passado, isto é, a escravidão e o Holocausto, a fim de criar uma espécie de referência universal do que são o bem e o mal absolutos. 

“É óbvio que a única lição que uma mentalidade incompleta pode tirar do estudo – se é que se pode chamar de estudo – do genocídio, isolado de quase todo o conhecimento (...), é a de que o mundo é composto por pessoas boas e más; e, como a maioria dos ex-alunos jamais voltará a estudar ou pensar na história, assim eles verão todas as questões públicas (...)”, escreve Dalrymple. 

Ao se colocar, portanto, na condição de “detentora da virtude”, Gleici usou o sentimentalismo do público a seu favor e se transformou no clichê moral ambulante que é a marca do “homem bom”. 

O fim do indivíduo

Outra característica marcante do Big Brother Brasil 18 foi a subserviência identitária dos participantes – motivo até de reclamação por parte do apresentador Tiago Leifert. Estudiosos das edições passadas e em concordância com o Zeitgeist (o “espírito do tempo”), os “brothers” deixaram de ser indivíduos complexos, contraditórios, muitas vezes inacessíveis e por isso mesmo interessantes, para se tornarem representantes de uma causa. 

O público rejeitou este comportamento. Nayara, eliminada com 92% de rejeição, não era uma mulher negra de 33 anos, jornalista de cabelos encaracolados e volumosos; ela era tão-somente a representante de uma etnia, de uma classe social, de uma condição. Da mesma forma, o sexólogo Mahmoud abandonou a individualidade para se tornar representante da comunidade homossexual do norte do Brasil. 

Neste caso, por mais afável que se seja e por mais que se apele ao sentimentalismo do espectador, a anulação do indivíduo em nome de uma causa provoca uma rejeição quase instintiva no público. 

Aqui quem nos oferece uma explicação para o fenômeno é ninguém menos do que Karl Marx, que desprezava o indivíduo que se submetia às pressões do grupo – e que, por consequência, se alienava – para sobreviver. A anulação do indivíduo em nome de uma causa também é tema da obra de Hannah Arendt, Kierkegaard e, claro, Freud, que via nessa estratégia uma forma de defesa. Ao que tudo indica, o Big Brother não recompensa esse tipo de “retranca existencial”.

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