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Crise ideolológica

A esquerda acabou? Estes intelectuais esquerdistas dizem que sim

Pela primeira vez em duas décadas, o partido Movimento ao Socialismo (MAS), de Evo Morales, não disputará o primeiro segundo turno da sucessão presidencial na Bolívia
Pela primeira vez em duas décadas, o partido Movimento ao Socialismo (MAS), de Evo Morales, não disputará o primeiro segundo turno da sucessão presidencial na Bolívia (Foto: EFE/ Esteban Biba)

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A esquerda não enfrenta apenas uma crise: vive o fim de um ciclo histórico. Acomodada ao sistema, dividida e incapaz de acompanhar as transformações sociais, a corrente progressista atravessa um esgotamento — e, para alguns analistas, já está morta. 

Esse diagnóstico apocalíptico, acreditem, não foi formulado por conservadores. Ele é sustentado por filósofos, sociólogos e historiadores alinhados ao próprio campo esquerdista, e vem ganhando força a cada nova derrota eleitoral ou fracasso político do socialismo mundo afora. 

A tese deles é que, apesar de partidos e movimentos políticos continuarem se identificando como de esquerda, eles já não são capazes de articular uma visão consistente de sociedade para substituir o capitalismo. A emergência da agenda “woke” e suas obsessão com raça e sexualidade seria um sintoma disso.

Em outras palavras: a esquerda anticapitalista (o único tipo de esquerda legítima, segundo alguns desses autores) morreu. 

Um exemplo recente, porém bastante emblemático, dessa implosão vem da Bolívia. Pela primeira vez em duas décadas, o partido Movimento ao Socialismo (MAS) foi eliminado no primeiro turno da sucessão presidencial (ocorrido em agosto).

A disputa final, marcada para outubro, será entre dois candidatos abertamente alinhados à direita: o senador Rodrigo Paz Pereira e o ex-presidente Jorge “Tuto” Quiroga. Ambos representam a oposição a um projeto responsável por afundar o país numa crise econômica devastadora, com inflação de quase 25% ao ano (a maior das últimas três décadas), escassez de dólares e desabastecimento de combustíveis. 

Mas a lista de motivos por trás do revés “vermelho” na Bolívia não inclui apenas erros de planejamento e visões atrasadas da realidade típicas do partido criado ainda nos anos 1990 pelos cocaleiros liderados por Evo Morales. A esquerda local foi vítima do que os especialistas chamam de “autofagia política”, causada por rachas internos e brigas entre ex-aliados.

Tudo porque o próprio Morales pediu para sua base eleitoral votar nulo ou em branco, como um protesto por seu impedimento de concorrer a mais uma eleição, após uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral. Ou seja: Evo preferiu destruir a estrutura de poder que construiu a vê-la nas mãos de outros políticos. 

“Neoliberalismo” e “extrema direita”: duas obsessões 

O colapso boliviano só reforça uma espécie de questionamento existencial da esquerda, iniciado após a queda do Muro de Berlim (1989) e a dissolução da União Soviética (1991). 

Já no começo deste século, intelectuais como o filósofo alemão Robert Kurz lamentavam a incapacidade dos socialistas de reformular sua crítica ao capitalismo. Segundo ele, a “vasta sepultura da esquerda” abriu a “vaga neoliberal”. 

Conhecido por seu trabalho de reinterpretação da obra de Karl Marx, Kurz também destaca que a crise financeira global de 2008-2009 expôs as falhas do neoliberalismo — mas, ainda assim, a o bloco da esquerda não ofereceu uma alternativa ao modelo vigente. 

O historiador britânico Eric Hobsbawm compartilhava dessa preocupação, especialmente com relação à falta de renovação acadêmica e teórica. Para Hobsbawm, essa lacuna deixou o campo socialista órfão de “instrumentos analíticos” adequados para enfrentar as transformações do capitalismo contemporâneo. 

Na França, o filósofo Alain Badiou aponta para uma suposta falência da democracia parlamentar. Segundo ele, esse contexto de instabilidade beneficia, sistematicamente, a “extrema direita” (expressão que se tornou um mantra obsessivo dos progressistas e simboliza, para eles, todos os males do mundo contemporâneo). 

Agenda woke: um problema também para a esquerda 

O popstar da filosofia Slavoj Žižek costuma abordar outro tema bastante atual: a cultura woke. Na visão do pensador esloveno, comunista assumido, as pautas identitárias são “enganadoras”, porque apenas administram os problemas sem atacar suas raízes. 

Quem também critica duramente essa agenda é o historiador britânico Perry Anderson. Para ele, o foco excessivo nas lutas dos grupos minoritários fragmentou a esquerda e enfraqueceu a capacidade de se construir um projeto político unificado. 

A americana Nancy Fraser ataca outro ponto: para a filósofa, a busca por representatividade apenas diversifica a pirâmide social estabelecida, em vez de acabar com ela. O objetivo, diz Fraser, passa a ser colocar alguns “indivíduos merecedores” de grupos minoritários no topo, ao lado dos “homens brancos ricos”. 

Outra objeção desses intelectuais com relação à agenda woke é sua tendência a “reproduzir a dinâmica neoliberal”. Traduzindo: para eles, essa corrente acaba sendo facilmente cooptada e integrada à lógica do mercado — basta observar como as empresas exploram as bandeiras de movimentos sociais para conquistar novos nichos de consumidores. 

O profeta do apocalipse 

No debate brasileiro, o maior arauto da morte da esquerda é o filósofo Vladimir Safatle, professor da Universidade de São Paulo (USP) e autor de livros como “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”, “Neoliberalismo como Gestão do Sofrimento Psíquico” e “A Esquerda que Não Teme Dizer Seu Nome”.

Para Safatle, “a esquerda brasileira morreu como esquerda” porque abandonou suas ideias de "igualdade radical, soberania popular, autogestão da classe trabalhadora e transformação estrutural da sociedade”. O que restou, na visão dele, foi uma “gestora de crises do capitalismo” — um campo político que apenas administra o sistema que um dia prometeu superar. 

Em seus artigos e entrevistas para a imprensa, o filósofo costuma dizer que outro pecado do progressismo contemporâneo é o seu foco em políticas de curto prazo e de gerenciamento. Um exemplo, ele afirma, é a tentativa de regular o agronegócio, em vez de impor um novo modelo de ocupação da terra. 

Nesse contexto, a vitória de Lula em 2022 é vista por Safatle apenas como um alívio temporário, que na prática representa continuidade das políticas de Michel Temer e Jair Bolsonaro. 

O professor também destaca uma “desconexão brutal” do progressismo com a periferia e os chamados “trabalhadores precarizados”. “O que a esquerda hoje tem a dizer para o motorista de Uber?", questiona, apontando para a incapacidade do setor de se comunicar com o povo. 

Por fim, Vladimir Safatle afirma que “processo insurrecionalmudou de lado. Segundo ele, no mundo atual, é a extrema-direita que está organizada como força revolucionária — no sentido de apresentar um discurso coerente, radical e mais capaz de prometer uma alternativa à sociedade. 

Convite à radicalização 

Safatle não está sozinho em seu choro. Roberto Mangabeira Unger, filósofo, professor de Harvard e ex-ministro de governos petistas, oferece uma análise mais comportamental. Segundo Unger, “a maioria dos chamados progressistas na verdade são conservadores”, que se contentam em "humanizar o mundo" em vez de transformá-lo. 

O historiador, youtuber e comunista de carteirinha Jones Manoel argumenta que, “ao abandonar uma saída real para as crises sociais, a esquerda perdeu sua “força transformadora, antissistêmica e disruptiva” e “deixou espaço para o fascismo”. O problema central, ele diz, é a rendição e a falta de luta contra a burguesia e seus interesses.

Já o sociólogo Rudá Ricci identifica uma divisão no campo progressista. De um lado, está a “esquerda social", ligada aos movimentos populares e à “luta”. Do outro, a “esquerda institucional” que prioriza as eleições e acordos para se manter no poder.

Esta última, de acordo com Ricci, tornou-se hegemônica, virou uma força "social-liberal” e perdeu credibilidade em sua retórica antissistema. 

O economista Paulo Nogueira Batista Jr. traz para a realidade brasileira a já citada questão do identitarismo — que, ele afirma, “não conta com a atenção ou a simpatia da grande maioria dos trabalhadores", mais preocupados com "emprego, renda e injustiça social". 

Alguns desses intelectuais reconhecem que parte desse discurso carrega uma dose de alarmismo e até de certo sensacionalismo, usada para tentar “acordar” a militância da acomodação. Mas, a julgar por seus textos e falas públicos, todos convergem em um ponto central: a saída para a crise — ou a chance de “ressuscitar” a esquerda — passa pela radicalização. 

Nostalgia pós-queda do Muro de Berlim 

O professor de Filosofia Francisco Razzo, colunista da Gazeta do Povo, considera “bem plausível” a tese de Vladimir Safatle de que “a esquerda morreu como esquerda” por se tornar uma “gestora de crises do capitalismo”. 

“A esquerda progressista atual parece ter aceitado a derrota no campo da economia e da globalização, que hoje é hegemônica sob a democracia liberal e o liberalismo. Em vez de um projeto econômico, ela se inclinou para um discurso identitário moralista, focado na gestão de afetos e em experiências de subjetividade", afirma Razzo, autor dos livros “Contra o Aborto” e “A Imaginação Totalitária”.

O professor, no entanto, considera a leitura de Safatle um “diagnóstico de lamento”, marcado por uma nostalgia pós-queda do Muro de Berlim e um tanto de ressentimento. Ele lembra que o “uspiano” é ligado ao PSOL, e chama a atenção para uma ironia: o acadêmico critica a esquerda por ter abandonado a pauta da igualdade radical, quando seu próprio partido foi "totalmente a vanguarda brasileira do progressismo identitário”. 

Questionado sobre o fato de a direita dialogar melhor com os setores populares, Razzo esclarece que não se trata apenas de um sedutor discurso de empreendedorismo e salvação individual — como muitos dos intelectuais de esquerda gostam de afirmar. 

“Existe, sim, esse discurso. Mas existe também um outro apelo, que é um apelo religioso mesmo", diz. Para ele, o conservadorismo compreendeu melhor o senso de comunidade e tradição histórica. “Há um vínculo com as nossas tradições que é real. Não com essas tradições fake da cultura nostálgica de um país idílico, mas de uma cultura realmente popular”.

A linguagem conservadora, segundo Franciso Razzo, “nunca se tornou hermética com relação aos anseios do senso comum” porque se apoia nas escrituras e na fala cotidiana. A esquerda, por outro lado “perdeu completamente a capacidade de dialogar com a gente da gente, com o brasileiro comum”

“O comunismo nunca vai realizar suas promessas” 

Sobre a institucionalização da esquerda, Razzo cita uma passagem do clássico “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell. “Quando os comunistas tomam o poder, eles pactuam com os humanos, a ponto de você não distinguir mais quem é porco e quem é humano”.

Para ele, trata-se de "uma falha de caráter do agente de esquerda e do próprio comunismo, que nunca vai conseguir realizar suas promessas” 

Mas o professor não decreta o fim da esquerda. “Nossa capacidade humana de se reinventar é natural. A morte desta esquerda woke também vai passar, são pequenas modas”. O que preocupa o professor é a tentativa, cada vez mais enfática, desse campo político de “domesticar a democracia”. 

“Sabe aquele pessoal que fala: ‘Eu estou salvando a democracia’? Salvando de quem? De quem tem discursos de ódio? Isso já é antidemocrático. Todo discurso precisa ter lugar no espaço democrático. Claro que devemos ter cuidado, mas não dá para excluir vozes”, afirma.

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