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Política internacional

A guerra na Síria levanta a questão: para que serve a ONU em pleno século XXI?

Fundada com princípios ambiciosos, a Organização das Nações Unidas hoje é vista por críticos como um fracasso

Plenário da ONU: incapaz de impedir grandes desastres humanitários como a guerra civil síria | Roberto Stuckert Filho/PR/Fotos Públicas
Plenário da ONU: incapaz de impedir grandes desastres humanitários como a guerra civil síria (Foto: Roberto Stuckert Filho/PR/Fotos Públicas)

Fundada com princípios ambiciosos, a ONU hoje é vista por críticos como um fracasso. Na última semana, pouco antes de os Estados Unidos bombardearem uma base militar síria em resposta ao uso de armas químicas atribuído ao ditador Bashar Al-Assad, a embaixadora americana nas Nações Unidas, Nikki Haley, foi enfática: “quando a ONU falha consistentemente, há momentos na vida dos Estados em que precisamos agir por conta própria”. A resposta foi praticamente imediata. No dia seguinte, os americanos dispararam seus mísseis. Assim como havia falhado em conter Al-Assad, a ONU não teve qualquer papel em autorizar ou negar o ataque ordenado por Trump.

Em 1995, no cinquentenário da organização, o jornalista britânico Neal Ascherson, especializado em relações internacionais da Guerra Fria, formulou uma crítica que permanece atual: “as Nações Unidas permanecem fracas porque os grandes poderes a mantêm dessa forma”, escreveu, na época, ao jornal inglês The Independent. “Se quisermos reinventar a ONU para ser mais do que um teatro, o controle do Conselho de Segurança precisa ser esmagado primeiro. A ONU precisaria de uma renda segura, um Comitê Militar de verdade, uma licença para agir por conta própria em assuntos urgentes”, dizia Ascherson.

“Já é difícil para os membros reagirem às atrocidades, que dirá preveni-las. Os Estados têm a ONU que eles merecem”, completa Thomas Weiss, professor da City University of New York e especializado em estudos internacionais, em entrevista à Gazeta do Povo.

Princípios

A ONU nasceu em 1945, ao final da Segunda Guerra Mundial, e em sua carta de fundação insistia na sua determinação em “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra”. Não era a primeira vez que esses ideais originavam uma instituição internacional: poucas décadas antes, ao final da Primeira Guerra em 1919, a Liga das Nações tinha surgido com objetivos semelhantes. Porém, como o expansionismo de Hitler mostraria anos depois, a Liga foi incapaz de impedir que as grandes potências do Hemisfério Norte embarcassem em um novo conflito global, no intervalo de apenas uma geração.

Embora não tenha voltado a ver algo como a mortandade da década de 40, a ONU jamais conseguiu evitar que o mundo seguisse seu histórico de tentar resolver impasses políticos com armas na mão. A Guerra Fria passou a ser um fato consumado imediatamente após a fundação das Nações Unidas, gerando guerras reais que estendiam a batalha ideológica de americanos e soviéticos para países como a Coreia e o Vietnã.

Na década de 1960, conflitos de independência na África marcariam uma nova fase de violências – e, após obtida a soberania, essas novas nações empobrecidas pelo passado colonial mergulhariam em guerras civis e genocídios internos. Na virada do século, a chamada Guerra ao Terror transformaria o já conturbado Oriente Médio numa fonte inesgotável de conflitos.

Clubinho de boas intenções

Mais de 20 anos após o diagnóstico de Ascherson, pouco mudou. A ONU segue sem autonomia para intervir em questões urgentes, e o Conselho de Segurança continua com a mesma composição que possuía em 1945, ocupado pelas potências vencedoras da Segunda Guerra: Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, China e Rússia (que substituiu a União Soviética após o colapso do comunismo) atualmente dividem espaço com outros dez membros “temporários”, que não detêm o mesmo poder e são alterados anualmente.

Com o tempo, uma longa lista de fracassos foi sendo construída pela ONU – se o projeto inicial de impedir guerras caiu por terra ainda na década de 1950, outra bandeira herdada da época da fundação (a prevenção de novos genocídios, como o sofrido pelos judeus) seria definitivamente enterrada após o massacre da etnia tutsi pelos hutus em Ruanda, em 1994. Na ocasião, as Nações Unidas foram acusadas de negligência e de se esconder atrás de brechas legais para não intervir no país, recusando-se a classificar o que acontecia em Ruanda como um “genocídio” – conforme os acordos firmados após a Segunda Guerra em países como os Estados Unidos, reconhecer a existência de um novo genocídio deveria provocar uma imediata resposta militar.

Autoridade questionada

Ao mesmo tempo, o próprio Conselho de Segurança teria sua autoridade questionada: em 2003, os Estados Unidos autorizaram a invasão ao Iraque mesmo sem o consentimento explícito dos outros países-membros do grupo. “O Ocidente não deveria subestimar a confiança que o resto do mundo tem na ONU”, defendeu Kishore Mahbubani, ex-diplomata de Cingapura e um dos críticos ao modelo atual da organização. “Mas a ONU só pode manter essa confiança se estiver claro que ela atua em nome de interesses globais, e não apenas ocidentais”.

Para Mahbubani, que presidiu o Conselho de Segurança duas vezes entre 2001 e 2002, as nações desenvolvidas com frequência lamentam a pouca efetividade da ONU, mas não reconhecem que esta é uma política deliberada para manter seu próprio poder: “Mesmo durante a Guerra Fria, quando Moscou e Washington discordavam em quase tudo, as duas nações estavam unidas em um aspecto: elas conspiravam ativamente para manter a ONU fraca”.

Segundo Karen Mingst, professora da Universidade de Kentucky (EUA) e autora de ‘Princípios de Relações Internacionais’, um dos livros clássicos da área, nenhum dos países-membros do Conselho de Segurança deseja mudar a situação atual, pois isso colocaria em xeque o seu próprio poder. Enquanto não houver vontade política para alterar o status quo, “a ONU vai continuar a contornar de forma informal as limitações legais” impostas pelas potências, argumenta. Mas, na leitura da especialista, isso é insuficiente: “a ONU não conseguirá exercer um impacto maior para evitar guerras a menos que os cinco membros do Conselho com poder de veto entrem em acordo. Do contrário, tudo o que eles fazem é falar, oferecer-se para negociar e fazer uso de bons escritórios”, ironiza.

Alternativas

Frente aos problemas comumente apontados, especialistas em governança global têm buscado apontar alternativas que permitam contornar a falta de poder direto da ONU. Thomas Weiss defende a necessidade de fortalecer uma noção que chama de “right to protect” (direito a proteger, em inglês): “é um princípio segundo o qual as nações não podem se esconder atrás do escudo de que a soberania lhes dá licença para cometer assassinatos em massa”, diz. “Se um Estado não quer ou não consegue proteger seus cidadãos – ou se é o próprio perpetrador da violência contra eles –, sua soberania é temporariamente suspensa e a comunidade de Estados tem a responsabilidade de vir ao resgate de seus cidadãos”.

Essa noção, que defende os direitos humanos como mais elementares do que a própria autoridade de determinado Estado, é o princípio por trás das chamadas intervenções humanitárias – caso, segundo os EUA, do seu recente ataque à Síria. Para o professor, a fraqueza das Nações Unidas é reflexo daquilo que seus próprios membros plantaram: “O objetivo fundamental expresso na carta de fundação da ONU (prevenir guerras) foi fruto de uma euforia que rapidamente se desapontou, porque o Secretariado-Geral da ONU não era, e ainda não é, equipado para ações militares sérias”.

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