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Pessoas visitam o local onde está sepultado o juiz Giovanni Falcone, na Igreja de San Domenico, em Palermo, na Itália
Pessoas visitam o local onde está sepultado o juiz Giovanni Falcone, na Igreja de San Domenico, em Palermo, na Itália| Foto: EFE/ Álvaro Padilla

Ao longo de mais de uma década, desde o início dos anos 1980, o procurador italiano Giovanni Falcone assumiu para si uma rotina marcada por restrições severas. Evitava restaurantes, lojas, bares ou situações sociais em que pudesse ser visto e fotografado ao lado de possíveis membros da máfia. Cada movimentação sua era estudada junto a uma equipe de segurança. Caminhar despreocupadamente na rua era impossível, ou mesmo tirar férias tranquilas.

Certa vez, os seguranças que o acompanhavam para todo lugar encontraram uma bolsa esportiva contendo uma bomba na praia do vilarejo de Addaura (na costa norte da Sicília), onde ele e a esposa haviam alugado uma casa – apenas alguns poucos policiais sabiam da tentativa de descanso, e ainda assim a informação vazou. O dispositivo era composto por dois mecanismos. Um deles seria ativado se alguém tivesse movido a mala de lugar.

Enquanto finalizava o texto do famoso maxi-julgamento, o processo de 8.607 páginas, divididas em 40 volumes, apresentado à Justiça italiana em novembro de 1985, Falcone chegou a viver por um mês e meio num apartamento improvisado dentro da prisão da ilha de Asinara. Seu colega, o magistrado Paolo Borsellino, o acompanhou. Levou a esposa e as três crianças. Falcone optara por não ter filhos. Dizia que não sabia se continuaria vivo para criá-los. A filha mais velha de Borsellino sofreu problemas psicológicos sérios em função do medo que rondava sua vida.

Mas, em 23 de maio de 1992, Falcone cometeu um pequeno gesto de liberdade: assumiu a direção de seu Fiat Croma blindado. Ele e a esposa, Francesca Morvillo, deixaram Roma em um avião do governo às 4h40, pousaram no aeroporto de Punta Raisi, em Palermo, pouco mais de uma hora depois, e pegaram a estrada a caminho de casa. O monitoramento da estrada por helicóptero, comum até o final dos anos 1980, não vinha mais sendo realizado. De forma que ninguém percebeu a movimentação estranha que acontecera na madrugada.

“Uma equipe de ‘homens de honra’, vestidos como operários da construção civil, havia finalizado os últimos detalhes de um enorme estoque de quinhentos quilos de explosivos plásticos, instalados em um grande cano de drenagem de metal que passava por debaixo da rodovia”, relata Alexander Stille, na biografia Morte a vossa excelência. “Um grupo de homens se aglomerava em uma pequena cabana a cem metros da beira da estrada, onde um detonador de controle remoto estava escondido, examinando o movimento do tráfego do aeroporto em direção à cidade.”

Francesca sentou-se no banco da frente, ao lado dele, enquanto o motorista, Giuseppe Costanza, foi para o banco de trás, prossegue o livro. “Quando a caravana passou por Capaci, a estrada inteira foi destruída por uma explosão gigantesca que parecia o epicentro de um terremoto. Todos os três carros foram engolidos, dobrados e torcidos pela explosão que criou uma cratera imensa, rasgando um quarto de milha de estrada”. Sismógrafos da região registraram o abalo.

Uma testemunha, um motorista que vinha logo atrás, viu Falcone preso nas ferragens, ainda se movendo, o rosto coberto por sangue. “Os três guarda-costas do último carro escaparam com ferimentos relativamente pequenos, enquanto Falcone, Francesca e seu motorista ficaram gravemente feridos, mas estavam vivos quando as ambulâncias chegaram. O motorista, no banco de trás, sobreviveu; Falcone foi declarado morto logo após chegar ao hospital. Se Falcone não tivesse insistido em dirigir, ele poderia ter sobrevivido”, relata o biógrafo. O procurador, ou magistrado investigador, como se denominava na Itália, faleceu aos 53 anos. Francesca, que também era magistrada, tinha 46. Não resistiu depois de duas cirurgias. Num breve momento de consciência, perguntou: “Onde está Giovanni?”.

Borsellino também seria assassinado, logo no ano seguinte. Era o fim de uma era. Apenas em 2021 a Itália realizaria um novo grande julgamento contra a máfia. Ele ainda não acabou. Até agora, mais de 300 suspeitos depuseram e 70 foram condenados. O procurador Nicola Gratteri, que lidera o novo esforço em conter o crime organizado no país, sabe que tem a cabeça a prêmio e vive uma rotina muito semelhante à experimentada por Falcone, três décadas antes.

Revolução nas investigações 

É compreensível que Falcone tenha incomodado tanto. Seu trabalho transformou para sempre a forma como as operações da máfia são investigadas, não apenas na Itália. Ao longo de viagens para dezenas de países, de Suíça a Tailândia, passando por Estados Unidos e Brasil, o magistrado conseguiu conciliar esforços e agregar informações que antes permaneciam dispersas. Mais do que isso: ele criou um método para gerar evidências e provas que pudessem, de fato, levar os criminosos à prisão.

“Falcone inaugurou uma revolução silenciosa nas investigações de casos da máfia. Ele fez uso de sua experiência nos tribunais de falências e aplicou-a ao mundo financeiro da máfia”, relata o biógrafo. Seguindo o caminho do dinheiro, ele começou a encontrar conexões que antes não eram evidentes para os investigadores, apesar de décadas de tentativas de investigar as ações dos grupos criminosos organizados. O esforço foi recompensado no momento em que ele conquistou a confiança de Tommaso Buscetta, o mafioso que vivia em exílio no Brasil

“As confissões de Buscetta revolucionaram os processos contra a máfia nos dois lados do Atlântico. Ele não apenas deu os nomes de centenas de mafiosos operando na Sicília, nos Estados Unidos e na América do Sul, como também possibilitou compreender a Cosa Nostra como um todo, conectando inúmeros crimes em um padrão inteligível”, descreve Stille, que cita um depoimento escrito do próprio Falcone: “Antes dele, eu tinha, nós tínhamos, apenas uma compreensão superficial do fenômeno da máfia. Com ele, foi possível entrar na estrutura. Ele explicou para nós inúmeros detalhes sobre a estrutura, as técnicas de recrutamento e as funções da Cosa Nostra. Acima de tudo, ele nos deu uma visão ampla e global do fenômeno. Ele nos deu uma chave interpretativa, a linguagem e o código”.

Falcone e Borsellino pagaram com a vida, assim como outras dezenas de agentes e investigadores. Mas, em 1992, seu legado tinha prosseguimento, em outra esfera, com a Operação Mãos Limpas, que duraria quatro anos e exporia toda a corrupção entre lideranças políticas e grandes corporações italianas.

Casos semelhantes 

Ao longo de quatro anos, investigadores italianos desenrolaram um novelo, que começou a ser puxado às 17 horas de 17 de fevereiro de 1992, com a prisão em flagrante de Mario Chiesa por crime de extorsão praticada por funcionário público. Coordenada pelo procurador da República Antonio Di Pietro e apoiada no modus operandi de Falcone, assim como nas lições sobre a máfia aprendidas com os depoimentos de Tommaso Buscetta, a operação gerou números expressivos: mais de 6 mil investigados, quase 3 mil mandados de prisão expedidos, 438 parlamentares acusados, incluindo quatro ex-primeiros-ministros.

Os paralelos com o Brasil, e com a Operação Lava Jato, são evidentes, como lembra Rodrigo Chemim, procurador do Ministério Público do Paraná, no livro Mãos Limpas e Lava Jato. “Não há como não notar as incríveis semelhanças entre Brasil e Itália quando se trata de política, futebol, paixão popular, preconceitos regionais, afrouxamento ético, corrupção institucionalizada, descuido no trato privado da coisa pública e também da legislação penal e processual penal benevolente com a criminalidade do colarinho-branco”, ele descreve. Não por acaso, o senador Sergio Moro já declarou, em diferentes ocasiões, que atuou tendo em Falcone um guia. O ex-juiz sabia que os paralelos poderiam trazer lições importantes para o caso do Brasil.

Publicado pela primeira vez em 2017, o livro de Rodrigo Chemim ganhou um posfácio em 2018, que terminava com a seguinte frase: “Em paralelo, é preciso acompanhar como se desdobrarão os outros seis processos e três investigações a que Lula responde. O tempo dirá se a Lava Jato terá destino similar ao da Mãos Limpas”.

Em entrevista à Gazeta do Povo, Chemim comentou os acontecimentos dos últimos cinco anos. “O que aconteceu no Brasil foi uma reação muito mais forte do que a observada na Itália. Lá, a Operação Mãos Limpas e seus desdobramentos acabaram contidos pelo Poder Legislativo, que alterou uma série de leis para favorecer a corrupção, facilitando, principalmente, a prescrição dos casos, com base na possiblidade de interpor uma série de recursos. Aqui, a reação veio pelo Judiciário, pelo Executivo, pelo Legislativo, pela imprensa. Vimos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) mudar o discurso de forma radical, e até mesmo ofender diversas vezes os investigadores, como fez Gilmar Mendes”.

Chemim entende que há um momento claro para a inflexão. “No início, havia um ambiente favorável ao trabalho dos procuradores. Mas, a partir de 2016, já havia suspeitas sobre quase todos os partidos e quase todos os presidentes do Brasil desde a redemocratização. Aconteceu da mesma forma na Itália: o momento de contenção aconteceu quando quase toda a classe política se viu a perigo”.

Há alguma lição a aprender com a forma como a Mãos Limpas e a Lava Jato foram contidas? “Talvez, no futuro, seja mais produtivo evitar grandes operações unificadas, distribuindo os casos”, ele recomenda. “Mas, de toda forma dificilmente vamos ver no Brasil uma investigação do porte da Lava Jato por pelo menos 20 anos. Não teremos outro procurador dando a cara a tapa da forma como o Deltan Dallagnol deu. Nem veremos mais punições severas para crimes de colarinho branco.”

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