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Banquete para os bárbaros: o jantar que celebrou a aliança entre o nazismo e o fascismo

Em“M, os Últimos dias da Europa”, Antonio Scurati reconstitui a aproximação entre Mussolini e Hitler.
Em“M, os Últimos dias da Europa”, Antonio Scurati reconstitui a aproximação entre Mussolini e Hitler. (Foto: EFE/Wide World Photo)

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No terceiro volume de sua tetralogia sobre Benito Mussolini — intitulado “M, os Últimos dias da Europa” (editora Intrínseca) —, o escritor italiano Antonio Scurati reconstitui o momento em que o fascismo se curvou de vez ao nazismo.

O romance histórico cobre o triênio de 1938 a 1940, período em que a Itália se retira da Liga das Nações, prepara a promulgação de leis raciais severas e, mesmo ciente de seu despreparo militar, decide entrar na Segunda Guerra Mundial ao lado da Alemanha.

No trecho a seguir, Scurati descreve um jantar formal oferecido pela corte italiana a Hitler em maio de 1938, no Palácio Real do Quirinal. A narrativa revela as tensões e contrastes entre a velha aristocracia europeia e a emergente elite nazista.

O jantar na corte segue um protocolo rigidíssimo. A etiqueta real prevê que, em uma rigorosa alternância entre homem e mulher, o convidado de honra e a consorte se sentem ao lado do rei e da rainha. O problema, nesse caso, é que o chanceler alemão não tem esposa: não existe uma sra. Hitler.

Comenta-se que a srta. Braun, escondida no denso séquito de secretárias, é a amiga afetuosa do Führer. Comenta-se também, todavia, que a doce Eva põe na cama todas as noites o comandante com ternura maternal, nada mais (ou nada menos, se olharmos para o fato de outro ponto de vista).

De todo modo, os cerimonialistas supriram a falta de uma sra. Hitler posicionando o guia dos povos germânicos entre Sua Majestade, a rainha imperatriz — à esquerda —, e Sua Alteza Real, a princesa Mafalda de Hesse — à direita. Ao lado do rei, puseram a sra. Ribbentrop. Afinal, mesmo sendo casado de maneira regular e cristã, o Duce também não quis ser acompanhado pela esposa grosseirona em uma ocasião tão solene.

Sua Excelência, o honrado cavaleiro Benito Mussolini, encontra-se, portanto, sentado ao lado da princesa Mafalda, de um lado, e da sra. Thaon de Revel, consorte do almirante herói da Grande Guerra.

São 200 os convidados do jantar na corte em 4 de maio de 1938. Estão dispostos nas duas faces — interna e externa — dos lados compridos de uma mesa retangular à qual falta um lado curto. Excetuando-se dois antigermânicos fervorosos como Italo Balbo e Dino Grandi, que o Duce preferiu que não estivessem presentes, todos os personagens importantes da Itália estão jantando com o nazismo.

Na cabeceira, obviamente, está Sua Majestade, o rei e imperador, com seus convidados de honra. Os olhares dos 200 cortesãos, de autoridades e hierarcas fascistas, sempre acompanhados das respectivas senhoras, estão magnetizados por Herr Hitler e também pelos sinistros homens do séquito dele.

Quase na quina da cabeceira, entre Sua Excelência a marquesa Imperiali di Francavilla e Sua Excelência Luisa Federzoni, esposa do presidente do Senado, está sentado Rudolf Hess, terceira autoridade do Partido Nazista, fidelíssimo a Hitler desde os tempos do fracassado Putsch de Munique, o homem a quem, em 1924, o futuro Führer dos alemães ditou as delirantes e verbosíssimas páginas de seu manifesto político-espiritual, “Minha Luta”, enquanto dava voltas na cela de uma prisão como um animal enjaulado.

A pouca distância está Wilhelm Keitel, o novo chefe do comando supremo da Wehrmacht, extremamente devoto ao Führer — por isso nos círculos militares há quem o apelide, com desprezo, de General Jawohl, “General Sim, Senhor”, ou lhe deturpe o nome chamando-o de Lakaitel, “lacaio”.

Arianização da Europa

Três cadeiras adiante foi colocada Sua Excelência, o dr. Joseph Goebbels. Filho de um operário de fábrica, coxo por causa de uma deformidade congênita conhecida como “pé equino”, dispensado do alistamento militar e, portanto, formado em literatura com uma tese sobre o romantismo alemão, na qualidade de ministro da Educação do Povo e da Propaganda do Reich Goebbels promoveu os famigerados incêndios de livros, proibiu a arte supostamente “degenerada”, obrigou ao exílio centenas de artistas, intelectuais e cientistas judeus e, sobretudo, assumiu o controle total e capilar da informação, da vida cultural alemã, bem como da vida espiritual dos alemães.

Agora fala de arianização da Europa com uma perplexa condessa Maria Bruschi Falgari, posicionada à direita dele pelo chefe do cerimonial. À frente de Goebbels está o sr. Himmler. Comandante-geral da SS (e da polícia do Reich), Heinrich Himmler, que só fala alemão, não conversa com ninguém.

O Reichsführer da facção armada nazista fica calado, come, fita o vazio e aterroriza, com o olhar aquoso de seus olhinhos cerúleos e o silêncio amorfo, tanto a condessa Maria Teresa Orti Manara di Busolo, sentada à direita dele, quanto a princesa Borghese del Vivaro, à esquerda. Ao lado da princesa, amável ao entreter a bela marquesa Guglielmi di Vulci, está o sr. Hans Frank, consultor jurídico pessoal de Hitler, ex-ministro da Justiça da Baviera, pai de quatro filhos, homem de muitas amantes, antissemita feroz, propenso ao extermínio de toda a população judaica do Reich.

Atrás deles, poucas cadeiras mais adiante, do lado direito da mesa real, no lugar de número 10, diante da duquesa de Roccapiemonte, que parece apreciar muito aquele belo jovem empomadado, está sentado o sr. Bouhler.

Com Philipp Bouhler, chefe da chancelaria particular do Führer, e outros médicos e oficiais do Reich, Hitler discutira havia pouco tempo os termos de um plano eugenista, com o qual o arianismo nazista cogita conceder “uma morte piedosa” aos milhares de cidadãos alemães, sobretudo crianças, acometidos por deficiências físicas ou psíquicas

O dr. Karl Brandt, médico acompanhante de Hitler, também convidado de Sua Majestade Vítor Emanuel III à mesa real, já estuda uma mistura de venenos para assassinar em larga escala, com uma injeção letal, deficientes, pessoas psiquicamente instáveis, ciganos e judeus.

Cerca de 20 lugares mais ao fundo, na posição de número 30, do lado esquerdo interno, distante demais para dirigir a palavra ao soberano da Itália, mas não o suficiente para que se possa fugir do olhar dele, um outro homem maciço e barulhento devora um prato após outro.

Trata-se do sr. Josef Dietrich, vulgo Sepp, comandante da Leibstandarte, chefe da unidade especial dedicada à segurança pessoal de Hitler, a protagonista absoluta da chamada Noite dos Longos Punhais — quando, em 30 de junho de 1934, a SS exterminou a cúpula das Tropas de Assalto, as principais aliadas, e, portanto, rivais das milícias paramilitares formadas pelos nazistas.

É quase certo que Sepp Dietrich tenha liderado a invasão da casa do general Kurt von Schleicher, ex-chanceler da República de Weimar, e assassinado, além dele, a esposa e até os dois bassês que latiam de maneira incômoda.

Enfim, apesar de alguns embaraços, a etiqueta é escrupulosamente respeitada. A observância das boas maneiras não impede, todavia, que o gelo tome conta do jantar real, e não porque Sua Majestade despreze programas eugenistas, assassinatos de rivais políticos ou extermínios de judeus, mas porque ele e a respectiva corte notam no séquito de Hitler as grosserias da gentalha plebeia, sem berço e mal-educada.

Em contrapartida, a condescendência é retribuída com o desprezo dos nacional-socialistas, que acham que o Quirinal parece uma “melancólica loja de antiguidades” e veem na ociosa, arrogante, putrescente corja principesca sentada ao lado a representação do “velho mundo podre”. Um mundo que — calam-se, mas não o escondem — será purificado com fogo pela revolução que farão.

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Conteúdo editado por: Omar Godoy

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