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Foi a duras penas que a sociedade conseguiu instituir certos princípios do sistema de justiça que, aparentemente, “protegem os bandidos”. Na verdade, eles apenas contrariam as tendências humanas naturais, visando a garantir um ambiente onde o julgamento será equilibrado.
Foi a duras penas que a sociedade conseguiu instituir certos princípios do sistema de justiça que, aparentemente, “protegem os bandidos”. Na verdade, eles apenas contrariam as tendências humanas naturais, visando a garantir um ambiente onde o julgamento será equilibrado.| Foto: Bigstock

Uma queixa recorrente é a de que o sistema de justiça é centrado demais no bandido e se preocupa de menos com a vítima. Mal sabem esses críticos que isso não é um acidente; é de propósito. É um princípio do liberalismo do século XVIII que vale não só no Brasil, mas em todos os países ocidentais. E digo mais: é um ótimo princípio. Que está sob ataque hoje como nunca, com uma novidade: hoje, numa grande reversão histórica, os ataques vêm principalmente do campo progressista. Tanto no Brasil como em outros países.

É óbvio que as vítimas precisam de atenção, mas um sistema processual centrado na vítima seria, no limite, o sistema processual alexandrino — neologismo que poderíamos usar para designar o processo onde a pessoa que figura como vítima faz também o papel de acusador e de juiz.

Vieses cognitivos

Todos entendemos que a vítima não é a pessoa mais isenta para avaliar se há provas suficientes do crime, ou se há provas suficientes de que o acusado é culpado; que dirá avaliar a gravidade da ofensa para decidir a pena merecida.

Isto é porque as pessoas têm vieses cognitivos. E a causa remota disto é que a cognição humana (o grande diferencial da nossa espécie) foi construída pelo processo descrito pela teoria da evolução; isto é, desenvolveu-se pela seleção dos traços que conferiam mais vantagem individual ao espécime possuidor — e não dos traços que produziam o melhor pensador ou juiz.

Só por acaso é que será de ajuda ao espécime ter capacidades mentais que o ajudam a acessar “a verdade” objetiva. Em muitos outros casos, o que o favorecerá vai ser a capacidade de iludir os outros — ou até mesmo a si próprio — a acreditarem no que mais lhe favorece. Por isso é que se observa que as pessoas tendem a puxar a brasa para a sua sardinha, como diz a expressão popular. Às vezes, inclusive, como crença sincera — às vezes, insincera.

Por isso mesmo, o psicólogo Roy Baumeister, citando estudos empíricos, observou que, ao contrário do que diz o senso comum, as vítimas mentem e distorcem tanto quanto os seus agressores (e não menos), quando narram os fatos delituosos. Isso é porque todos — vítimas, agressores, observadores — nascemos com um “advogado interior” ou um “assessor de imprensa interior”, como diz Jonathan Haidt.

As vítimas querem projetar a melhor imagem possível de si mesmas perante a comunidade (inclusive omitindo malfeitos que partiram dela, num contexto de agressões bilaterais, as quais Baumeister afirma, também ao contrário do senso comum, serem uma situação estatisticamente mais frequente que a da vítima completamente inocente). Ao mesmo tempo, têm interesse em projetar a pior imagem possível do seu agressor, para vingar-se convencendo o resto da comunidade a ficar contra ele — algo que qualquer pessoa pode atestar conversando individualmente com alguém que brigou com um amigo em comum.

Richard Posner também observou: a evolução desenvolveu os indivíduos para terem um forte instinto de retaliação — porque aquele a quem não se pode agredir impunemente será menos agredido, logo sobreviverá mais e terá mais recursos —, mas, ao mesmo tempo, a evolução não tem interesse algum em limitar esse instinto apenas à retaliação suficiente. Afinal, uma reação desproporcional em excesso é tão eficaz para o fim descrito quanto a reação proporcional.

Por isso, historicamente, é que precisou surgir a regra “Olho por olho, dente por dente”: se hoje é considerada cruel, ela originalmente precisou ser expressa e escrita justamente para limitar a sanha punitiva. O sentido da regra era impedir que as pessoas pretendessem arrancar um olho em retaliação por um dente perdido, como soía acontecer.

O que reflete a natureza de todo o direito penal: são normas destinadas, antes de tudo, a limitar quem pune. Por isso a impressão de que é um direito que protege os bandidos.

E também serve de advertência histórica: deixar que a própria vítima dose a pena, como no sistema alexandrino, seria temerário.

Mudança de mentalidade

Todos esses problemas em se confiar na vítima, mesmo conhecidos, são ignorados por uma força de viés moralista, talvez mais vinda da sociedade do que do indivíduo: o imperativo de “ficar do lado da vítima”. Duvidar da palavra dela, ou fazer menção aos atos precedentes pouco elogiáveis que dela partiram, é visto como um pecado em si, e equivalente a “ficar do lado do agressor” – ou seja, ser tão ruim quanto ele, aos olhos dos outros. E, como foi brilhantemente retratado no conto “A roupa nova do imperador”, as pessoas estão dispostas a sacrificar quase qualquer coisa para salvar a sua reputação.

Com todas essas forças contrárias, na história e no presente, foi a duras penas que a sociedade conseguiu instituir certos princípios do sistema de justiça que, aparentemente, “protegem os bandidos”. Na verdade, eles apenas contrariam as tendências humanas naturais, visando a garantir um ambiente onde o julgamento será equilibrado.

Por isso, os progressistas — com destaque, hoje, para a corrente feminista — acham que estão sendo inovadores com suas críticas ao sistema de justiça, quando, na verdade, estão apenas repetindo críticas muito antigas, antes vindas sobretudo do campo conservador. A diferença é que, como os progressistas detêm a hegemonia no campo cultural, estão conseguindo impor as suas pautas na prática.

E as vitórias não se restringem ao campo cultural. Nos dias atuais, não param de ser aprovadas leis concretas neste sentido. Esta vitória política — que, diga-se, quase não encontra oposição parlamentar, mesmo entre parlamentares do dito campo conservador — foi precedida de uma transformação na cultura, mudando-se a mentalidade dos operadores do direito desde a faculdade.

Um exemplo anedótico foi um debate entre chapas de eleição de centro acadêmico que testemunhei em 2015, ano por vezes descrito como um marco da atual ascensão do progressismo identitário na sociedade.

Uma das graves “acusações” desferidas por uma chapa contra a rival foi terem dito, em algum momento, que, se eleitos, em casos de acusação de ismofobia (machismo, racismo, homofobia, etc.) que ocorressem na faculdade, antes de mobilizarem o aparato do centro acadêmico contra o acusado, conversariam com ele em particular e ouviriam a sua versão. Algo que, em outros tempos, seria chamado honrosamente de “direito ao contraditório”. A outra chapa retorquiu em tom de superioridade moral, dizendo que, se fosse eleita, aplicaria a sua concepção, muito diferente, de que, em suas palavras, “as vítimas devem protagonizar” as campanhas de ostracismo. Ou seja, presunção de veracidade da acusação até prova em contrário. Isso numa faculdade de direito.

Devido processo legal, ônus da prova pesando contra a vítima acusadora (sim, contra a vítima!) e não contra o acusado, direito ao contraditório. Os progressistas denunciam tudo isso como imoral, porque oneram a vítima, forçando-a, por exemplo, a ter que depor em juízo para ter a sua versão dos fatos contraditada.

É um processo sem dúvida, potencialmente, muito desagradável – mas absolutamente necessário para proteger o inocente e combater os vieses da vítima, já descritos. Os progressistas chegam a se referir a isso pelo disfemismo “revitimização”, equiparando o direito básico do contraditório a um crime perpetrado pelo Estado – concepção absurda que foi concretizada pela promulgação da Lei Mariana Ferrer em 2021.

Pouco importa que a alternativa a isso seja o Estado perpetrar “crime” pior, a máxima violência que lhe é legalmente permitida, que é a prisão por anos a fio, contra um inocente que não teve direito de se defender. Este desconforto ou “vitimização” não é levado em conta, já que a vítima em questão está fora do estreitíssimo rol de vítimas aceitáveis do progressismo.

Trata-se, aliás, de um padrão recorrente no progressismo: o que se vende como “empatia” e cuidado com o ser humano é, na realidade, a tirania ditatorial dos caprichos de uns sobre os outros, a quem não se concede nenhuma misericórdia.

A verdadeira máxima distribuição de empatia, se fosse possível, ao contrário da empatia seletiva, seria forçada a lidar com os trade-offs inerentes à possibilidade de se beneficiar um prejudicando o outro. A solução desse trade-off resultaria justamente no... sistema de direitos iguais e imparciais, inspirados no princípio da justiça (e não na “empatia”), que é justamente o que inspira o sistema de justiça liberal que o progressismo tenta destruir.

Por isso, quando alguém se proclamar defensor das vítimas, pergunte qual.

Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais

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