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Litografia de Bartolomeu de las Casa batizando prisioneiros indígenas em 1511, J. J. Martinez (1854), História da Marinha Real Espanhola
Litografia de Bartolomeu de las Casa batizando prisioneiros indígenas em 1511, J. J. Martinez (1854), História da Marinha Real Espanhola| Foto: Wikipedia

Existe uma constante entre os povos, seja qual for seu tamanho ou localização geográfica, que consiste em preservar em sua própria cultura ideias forjadas deliberadamente para satisfazer suas necessidades existenciais. É o caso de países como Alemanha, Inglaterra, Holanda, Itália, França ou Estados Unidos, para citar apenas os principais. Com o denominador comum – como sabemos – de que a história é escrita pelos vencedores. E, no entanto, a Espanha foge a essa regra, com uma particularidade inquietante: o seu passado está maculado por faltas abomináveis ​​e isso desde a Descoberta do Novo Mundo, e seu povo está condenado a arrastar consigo um fardo do qual em vão procurará se libertar. Assim foi julgado por uma espécie de Tribunal da Humanidade, no qual se instalaram as nações mencionadas.

A autossacralização como uma comunidade superior é particularmente marcante para as nações que se encontravam em competição com a Espanha, desde a aurora do século XVI. O modo de operação delas era, portanto, o recurso simultâneo à difamação social e econômica, racial e cultural e, é claro, religiosa. Na verdade, esse tipo de processo já vinha sendo aplicado há muito tempo; a Roma Imperial já havia sido alvo de seus detratores. No século 18, também os envaidecidos filósofos franceses classificaram o Império Russo como bárbaro, à margem da civilização, assim como seus sucessores recobriram os norte-americanos com o manto de rudes no século seguinte, numa tradição anti-imperial muito atual, tanto na forma quanto no conteúdo. Essas criações de opiniões ad imperium, portanto, aderem ao fundo cultural das nações que as emitem e podem, sem dúvida, receber o nome de Lenda Negra. O termo, em gestação no século XIX, só veio a ser utilizado pela primeira vez para se referir à propaganda antiespanhola em 1899, durante uma conferência em Paris. Os Estados Unidos da América haviam acabado de conquistar Cuba e as Filipinas, e fizeram uso extensivo dela.

No entanto, convém desde já sublinhar as diferenças essenciais das Lendas Negras fabricadas especificamente para a Espanha, face às que se referem a outros impérios. Sua temática, antes de tudo, é sistematicamente utilizada e incitada, e sua persistência deliberadamente mantida (se a soubermos detectar) na opinião pública, pelos meios de comunicação, produções documentais e cinematográficas, mas também em escolas e universidades. O que coloca em evidência que, se o tempo desconstrói outras lendas, não consegue frear a Lenda Negra espanhola.

A chave de entrada – ainda atual – dessa formatação cultural, é personificada por um personagem que ocupa um lugar especial nos livros didáticos: chamado Bartolomeu de Las Casas. Graças a ele teremos notícia de que a aventura espanhola na Nova Espanha (México) é um empreendimento abominável, levado a cabo por bárbaros que cometeram inúmeras atrocidades, assassinatos, violações e massacres, genocídio até, que ele mesmo diz ter visto e que descreve com um luxo sem precedentes de detalhes. Ele é proclamado como um grande defensor dos índios americanos e, como tal, é coroado com o título de precursor dos direitos humanos, nada menos.

No entanto, as queixas expostas por Bartolomeu de Las Casas são uma curiosa mistura de atrocidades sem que ele especifique onde, quando ou quem são os autores. O famoso dominicano de fato levanta mais do que questionamentos: do que ele diz, o que tem fundamento, quando e por que, e, acima de tudo, o que é essencial, mas largamente ocultado: por que e como ele obteve tamanha notoriedade?

Temática 

Vamos mergulhar novamente no contexto das Grandes Navegações. Os reis católicos Fernando de Aragão e Isabel de Castela percebem de imediato a extensão das suas consequências em nível religioso e humanista, moral e jurídico, geopolítico e comercial. Nada será como antes, a começar pelo último tratado com os portugueses e datado de 1480, já obsoleto, e que estabelecia as respectivas zonas de direitos ultramarinos dos dois reinos. Além disso, estabelecer a base da autoridade moral para governar as novas terras está no centro de suas preocupações.

Até então, o direito de conquista baseava-se no direito romano, na jurisprudência medieval e no direito pontifício. O Papa Alexandre VI concedeu, em 1493, o poder sobre as terras descobertas e por descobrir ‒ Dominus Orbis ‒ tanto no domínio espiritual como no temporal, subordinando este àquele. São as “Bulas Alexandrinas”, que estabelecem os termos da repartição do mundo com a coroa portuguesa. Mas este “dom pontifício” não é absoluto: coloca-se aí uma condição essencial, que é a obrigação dos soberanos de evangelizar os habitantes destas terras na fé católica, e de enviar para lá missionários com esse fim. A Espanha vive um momento de excepcional intensidade em sua história: forjada por um ideal heróico ao longo de oito séculos de guerra religiosa e fortalecida pelo fim da reunificação, assinalado pela queda de Granada, tendo em seu bojo elites militares e atividades culturais imbuídas de uma autêntica dimensão humanista. Os espanhóis saberão como ninguém – nem mesmo os portugueses – enfrentar este desafio coletivo com entusiasmo e com um sentido de extraordinária realização individual.

E, no entanto, a assimilação acrítica da Lenda Negra, que fez dos textos de Las Casas seu negócio fundamental, oblitera forçosamente todos os aspectos contextuais. A primeira, e menor, tange o ambiente cultural que prenuncia a Brevísima relación de la destruyción de las Indias, sua obra, digamos, mais “midiática”, já que é impossível fazer uma leitura crítica dela sem levar em conta a tradição secular de discussões polêmicas e apaixonadas, que remonta à Idade Média, e que permeia também os homens da Igreja. O texto de Las Casas pertence, de fato, a um gênero literário que não se incomoda com exageros, e cujas hipérboles muitas vezes beiram os limites da difamação. Nos povos mediterrânicos, as crianças não são educadas no silêncio e na reserva; é assim. Isso, sob outros céus, pode ser mal interpretado.

O sermão proferido em 1511 pelo dominicano Antonio Montesino no púlpito da igreja de Santo Domingo (atual Haiti e República Dominicana) é desse tipo: “Vós todos estais em estado de pecado mortal”, lança aos encomenderos e autoridades presentes. Ele próprio e os pregadores puderam observar e denunciar os abusos praticados na ilha nas lavouras e nas minas. E prosseguem sua afirmação até o fim: a absolvição é negada a quem mantém índios em regime de exploração. Ninguém lhe escapa, nem mesmo um certo Bartolomeu de las Casas, então instalado como encomendero desde 1502.

Em outros lugares e em outras épocas isso não teria consequências, mas não na Espanha católica renascentista. A denúncia chega aos ouvidos do rei D. Fernando (viúvo de Isabel desde 1504), que toma as rédeas da situação. Porque a legitimidade da presença espanhola repousa no mandato evangelizador. Ele reuniu os melhores teólogos e juristas do reino e fez decretos com base em um conceito verdadeiramente revolucionário para a época: o de que o índio, como ser humano pleno, é, portanto, titular de direitos. Isso se traduz nas Leyes de Burgos (1512) que estabelecem as regras de trabalho, remuneração, propriedade, acesso à cultura e educação. Em resumo, a escravidão e a segregação são proibidas, uma regra completamente heterodoxa para a época.

Foi com Francisco de Vitória, também dominicano, principal representante da Escola de Salamanca, que a revolução moral da conquista avançou, acompanhada também por uma reflexão totalmente inovadora sobre a economia. A sua obra intitulada “Relectio de Indis”, de 1532, estabeleceu pela primeira vez uma distinção entre sociedade civil e religiosa, lançando as bases do Estado moderno. Ele funda o direito internacional por sua concepção do mundo como uma comunidade de povos organizada politicamente e baseada no Direito Natural. É sobre essa premissa que se inicia o exame da conquista e que o imperador o consulta. Disso surgiram as Novas Leis de 1542, claramente intituladas: “Leis e Ordenações Feitas por Sua Majestade para Governança e Proteção dos Índios”. A imposição de condições drásticas aos conquistadores, o reconhecimento aos índios de novos direitos e liberdades de escolha são o resumo do seu conteúdo. Não é pouco: doravante a conquista estará sujeita a um novo marco legal, um Ius Gentium, que será ampliado posteriormente, e contará com a ajuda da Igreja e de uma administração civil para aplicá-la.

O segundo aspecto contextual que nos permite um olhar crítico sobre as acusações de Las Casas é o da realidade social do momento. Ela nos revela uma sociedade em pleno desenvolvimento humano sob o impulso evangelizador de um humanismo católico integral, em que o cuidado do corpo e da alma andam lado a lado, e se traduz no desenvolvimento da inteligência, das artes, das ciências e da prosperidade econômica.

Ademais, a honestidade histórica exige uma análise justa e uma apreciação serena dos elementos constitutivos da Lenda Negra, em suas dimensões ocultas por uma guerra de subordinação ideológica e cultural que precede à sua construção mítica, e nas suas variantes operacionais.

O fim de um paraíso? 

Quando os conquistadores chegaram, as vastas terras americanas eram povoadas por um mosaico de grupos étnicos indígenas, separados pela cultura e pelo idioma. Oitenta e dois são registradas no México, mais de novecentos dialetos apenas para a Amazônia. Além das tentativas de unificação linguística dos impérios asteca e inca para com seus vassalos, a situação é de incomunicabilidade entre esses povos em um contexto bélico quase permanente. No Vale do México, onde o poder asteca mantinha nada menos que 371 tribos em escravidão, o tributo a ser pago ao imperador Moctezuma consistia em uma cota de seres humanos. Porque a frequência e a quantidade dos sacrifícios humanos que o calendário religioso asteca exigia ultrapassa o imaginável: cada mês tinha suas festas e cada festa exigia seu lote de vítimas para apaziguar com sangue divindades nunca saciadas, inclusive crianças, como as descobertas arqueológicas de pirâmides de caveiras e locais de sacrifício vêm regularmente ilustrar, em confirmação dos testemunhos escritos da época – por muito tempo contestados, e muitas vezes minimizados ou justificados hoje em dia, segundo a solicitação de objetivos ideológicos. Com “picos” de festividades aproximando-se de 1.000 sacrifícios diários, o sistema imperial asteca montou uma rede de abastecimento das populações circundantes, que o produtor Mel Gibson ilustrou à perfeição no seu filme “Apocalypto” de 2006.

O que é menos conhecido são os costumes antropófagos dos astecas, bem como de muitos grupos étnicos indígenas da Mesoamérica. O termo "Nahuatl" também significa “milho de homem”, em referência à carne humana dos guerreiros cativos consumidos com milho, cujos “melhores pedaços” eram distribuídos de acordo com a posição social. Assim, querendo homenagear seu anfitrião em sua primeira visita a Tenochtitlán, Moctezuma ofereceu a Hernán Cortés a coxa direita de uma criança, iguaria normalmente reservada a ele por prerrogativa.

Nesse cenário, compreende-se, reinava contra os mexicanos entre os povos dessa forma maltratados um ódio feroz, para dizer o mínimo. A derrota do forte exército asteca de 200.000 homens não se deveu, portanto, a um milagre militar espanhol. Com apenas quinhentos soldados acompanhando Cortés, 32 cavalos e dez canhões, o empreendimento estava condenado. A balança pendeu apenas graças à aliança com os guerreiros zapotecas, totonacas, tlaxcaltecas, tlaplanecas, huexotzincas, atlixcas, tizauhcoacs, texcocotecas e, sem dúvida, outros. Assim, para a maioria dos povos indígenas, a invasão espanhola significou nem mais nem menos que a oportunidade de se libertarem, na Mesoamérica, de um império canibal e, nos Andes, da escravidão do império inca. E, portanto, não é exagero afirmar que a Conquista foi uma libertação em que os próprios índios foram os atores.

De tudo isso, porém, Bartolomeu de las Casas nunca diz uma palavra.

Rumo a uma nova sociedade 

A Espanha foi, e por muito tempo, o único país do mundo que promulgou leis específicas para proteger os vencidos na conquista. Nada como isso havia sido feito antes. A obrigação evangelizadora das “Bulas Alexandrinas” para com os índios, como vimos, os tornava sujeitos de direitos. Na Ordenança Real de 19 de outubro de 1514 do rei Fernando, então viúvo há dez anos, encontramos a mesma delicada solicitude expressa por Isabel a Católica por “suas índias”, imortalizada em seu testamento:

“É nosso desejo que os índios tenham, como se deve, plena liberdade para casar com quem quiserem, tanto para os índios, como para os originários de nossos reinos, ou para os espanhóis nascidos nas Índias, e que nisso nenhum impedimento seja colocado sobre eles. E ordenamos que nenhuma ordem que tenhamos dado, ou que de nós possa emanar, possa impedir, nem impeça o casamento entre índios ou índios com espanhóis, ou espanholas, e que todos tenham total liberdade para casar com quem quiserem, e que as nossas Administrações assegurem que assim seja feito e respeitado.” (Tradução do autor)

A mestiçagem entre espanhóis e índios é de fato a pedra angular da política de Estado, tão extraordinariamente singular, sobre a qual repousa toda a epopeia das conquistas e a história posterior do Império espanhol, sem interrupção desde os Reis Católicos, o Cardeal Cisneros, Carlos V, Filipe II e os descendentes da linha Habsburgo da Áustria. Isso mudaria gradualmente durante o século XVIII, com o advento da dinastia Bourbon e a influência dos filósofos do Iluminismo.

Qualquer império em expansão se depara com a questão de integrar a diversidade de seus habitantes. A resposta dada varia, basta um exemplo: o da colonização inglesa da Austrália. Tão logo desembarcou em 1788, James Cook declarou-a Terra nullius, isto é, de ninguém, desabitada. Embora cerca de novecentos mil aborígenes serão contados lá, nenhum dilema moral sofisticado surgirá quanto à natureza dos aborígenes; virá em seu apoio o supremacismo de Charles Darwin. Para o colono inglês, o aborígine não é um ser humano e, como um animal bizarro, será exterminado por uma vontade política sistemática. Em um século, o número de aborígenes será reduzido em 90%. E embora os próprios australianos já não contestem o genocídio cometido – não mais que os holandeses com o deles na Indonésia, nem os alemães na África austral – digamos de passagem – basta constatar que sua história colonial e carcerária não pode colocar um único grande nome da comunidade indígena em sua lista: o exato oposto do império espanhol.

Ousemos mais uma questão hipotética: teria a Rainha Vitória de Inglaterra (com mais de três séculos de distância) conseguido, em Hong Kong por exemplo, ter encorajado o casamento de ingleses com chinesas ou de inglesas com chineses? Para fazer um balanço da ideia humanista dos Reis Católicos, lembre-se que os casamentos inter-raciais foram proibidos nos Estados Unidos até 1967. E que as primeiras leis penalizando casamentos – e relações sexuais – com pessoas “de cor” vieram todas das colônias inglesas, e isso desde sua origem.

Que autoridade moral os anglo-saxões podem reivindicar para se estabelecerem como juízes da história? Ou a França? E, a propósito, outros países coloniais são flagelados com uma lenda negra?

Assim, esta mistura nova no florescente império espanhol, absolutamente resoluta, preside a criação de uma sociedade onde o racismo é inconcebível. Os casamentos mistos e os filhos deles resultantes, inclusive entre as mais altas dignidades sociais, não deixam espaço para a segregação. Isto é particularmente evidenciado por dois dos indicadores mais reveladores da obra imperial espanhola, nomeadamente a educação e os cuidados de saúde.

Escolas, colégios, universidades 

O desejo de educar os nativos materializou-se com uma rapidez desconcertante: em 1523 - Cortés tomara Tenochtitlan apenas dois anos antes - Pierre de Gand, parente próximo de Carlos V, desembarcou no México com outros missionários para se dedicar os últimos quarenta anos de sua vida à criação de escolas para crianças, meninas e meninos, de todas as condições sociais, de famílias espanholas, mestiças ou da nobreza asteca. Foi à Igreja que coube o imenso desígnio de elevar a população indígena, em uma ou duas gerações, a um patamar cultural semelhante ao dos europeus. Nas instituições que então surgiram, as pessoas aprenderam o nahuatl, o castelhano e o latim, mas também o ensino de artes e ofícios como pintura, escultura e música, ou carpintaria, ferraria e ourivesaria.

Dez anos serão suficientes para que surjam os primeiros mestres mestiços, eles próprios muitas vezes missionários, poliglotas e letrados. Note-se que quando, em 1536, começou a instituição de ensino preparatório para a universidade, a primeira na América, no Colegio Imperial de la Santa Cruz (México), ela não se destinava aos filhos dos espanhóis, mas dos indígenas. Ali ensinava-se latim, gramática, retórica, lógica, aritmética e geometria, astronomia, medicina, teologia e religião.

O passo seguinte foi dado em 1538 com a criação da primeira universidade em Santo Domingo, depois em México e em Lima em 1551, seguidas de outras vinte e nove até o alvorecer do século XIX. Delas sairão cerca de 150.000 diplomados. Para chegar a um total comparável, seria necessário somar todas as universidades coloniais criadas pela Bélgica, Inglaterra, Alemanha, França e Itália… Quanto aos portugueses e holandeses, a observação é ainda mais rápida, eles não abrirão uma única universidade em seus respectivos impérios.

À medida que surgem as universidades, surgem também as faculdades de línguas indígenas, logo tornadas obrigatórias por Filipe II. Ali serão desenvolvidos os glossários dessas línguas, as primeiras traduções de livros sagrados, como a dos Evangelhos em náhuatl, datada de 1544. Três anos depois apareceu no México “Arte de la lengua Mexicana”, a primeira gramática do náhuatl, tornando-se a primeira língua indígena a ter uma gramática, e isso antes mesmo do francês. No alvorecer do século XVII, 109 obras em línguas indígenas terão sido publicadas, incluindo em quíchua, aimara, guarani, totonac, otomi, purépecha, zapoteca, mixteca, maia, mapuche, etc. Esta enumeração a modo de conclusão deveria ser suficiente para destruir uma das mentiras mais propagadas pela Lenda Negra: relativa ao desaparecimento das culturas indo-americanas no império espanhol.

Saúde pública 

O outro pilar do empreendimento imperial é, sem dúvida, a preocupação com o cuidado dos enfermos. Os reis católicos Isabel e Fernando dão instruções contundentes: “Façam nas aldeias onde forem necessários hospitais para receber e cuidar tanto de cristãos como de índios”. Assim, a partir de uma política de profissionalização da medicina iniciada nas décadas anteriores, somente na primeira metade do século XVI foram construídos na Índias cerca de vinte e cinco grandes hospitais, como o primeiro denominado San Nicolas de Bari, fundado em 1503, na ilha de Guanahani (San Salvador). Onze anos apenas após o desembarque de Colombo! Além disso, acrescentam-se um número muito maior de pequenos hospitais e instituições de caridade com capacidade menor. Todo atendimento é totalmente gratuito e para todos, com especial atenção para os índios, atingidos por novas doenças importadas do Velho Mundo, como sarampo, catapora, caxumba ou gripe, e contra as quais os nativos não tinham imunidade. Foram criados estabelecimentos especializados no tratamento da sífilis e dos leprosos. É para eles que o próprio Hernan Cortés lançará a construção do hospital San Lázaro da Cidade do México, entre 1521 e 1524.

Em breve serão raros os povoados e vilas com mais de 500 habitantes que não possuam estabelecimento hospitalar, não sem destacar o caso marcante de Lima, no Peru, que oferecerá capacidade para quinze leitos por 1.000 habitantes, índice bem superior ‒ diga-se de passagem ‒ que muitas cidades contemporâneas.

Seguindo esta mesma política imperial, e em paralelo com o desenvolvimento das universidades, nasceu em 1551 a primeira faculdade de medicina. Fora das terras mexicanas, a mesma observação pode ser feita para as regiões do Vice-Reino do Peru, conquistadas posteriormente. Em Lima, por exemplo, o primeiro hospital foi inaugurado em 1533 e a primeira universidade em 1551.

Este rápido panorama do desenvolvimento sem precedentes da saúde pública ficaria incompleto se omitíssemos a farmacopeia dos hospitais de todo o império, onde a tradição europeia foi enriquecida pela cultura andina para se tornar a referência de vanguarda, oferecendo aos índios a melhor medicina do mundo, muito antes dos próprios países europeus. A contribuição das plantas medicinais indígenas é em si mesma uma lista extensa, onde destacaremos em particular a importância salvadora da coca e da quinina [O médico índio peruano Pedro Leiva descobriu suas propriedades, a partir de 1630, e desenvolveu o primeiro tratamento contra a malária].

Terminado este panorama dos pilares mais representativos da obra imperial nas Índias americanas, ousemos fazer uma rápida comparação com os territórios ingleses da América do Norte: notemos apenas que o primeiro hospital não veria a luz do dia até 1664, cinquenta e sete anos após a chegada dos primeiros colonizadores, ou seja, cento e quarenta e três anos após a fundação do Hospital da Cidade do México por Hernán Cortés. E mesmo assim destinava-se apenas a receber soldados e marinheiros. Quanto à primeira escola de medicina britânica, ela não foi criada até 1765.

Existe outro exemplo na história em que os conquistadores levaram tão a sério as necessidades e a saúde dos povos conquistados? Bartolomeu de la Casas não podia ignorá-lo: autorizou em 1534 a transformação do Hospital da Misericórdia (Guatemala), fundado em 1527. Não é razoável que os fatos concretos da obra imperial espanhola em relação aos índios não sejam ponderados em relação ao anátema lascasiano? Dessa forma, e se quisermos fazer “um balanço geral” – como diríamos hoje – da sociedade mexicana em meados do século XVI, por meio dos setores mais reveladores de seu desenvolvimento humano, somos forçados a concluir que nos encontramos no exato oposto da descrição dantesca feita pelo dominicano Las Casas quando encontrou uma editora para sua obra em Sevilha em 1552. La Brevísima relación de la destruyción de las Indias retoma e desenvolve textos escritos dez anos antes. Ele poderia tê-los corrigido, mas não o fez. A agitação doentia do dominicano, nomeado bispo de Chiapas (México) em 1543, atrai a atenção régia e leva à organização da famosa Controvérsia de Valladolid, em 1550. Ela se estenderá por seis anos, mas não se concentra em determinar se os índios têm alma ou não. A evangelização per se é uma prova contundente que isso é absurdo, mas no entanto se repete há gerações nos livros didáticos. Tratava-se de um debate filosófico e teológico, lançado por iniciativa do imperador Carlos V, em torno da forma de evangelizar os índios. Mas, em si, é a própria natureza da disputa teológica sobre a legalidade das conquistas da Índia que é verdadeiramente fascinante. Pois o contexto é essencial: em um império em crescimento, o imperador mais poderoso da Europa, no auge de sua glória, decide pausar a conquista para examinar se a Espanha está cumprindo sua missão moral! Devemos insistir nisso, porque nunca antes, nem depois, nenhuma potência em ascensão – e menos ainda uma potência colonial – se fez esse tipo de pergunta. Alguém já viu um rei da Inglaterra, França, Holanda ou um imperador alemão infligir tal dilema a si mesmo? As conquistas espanholas recomeçarão a partir de 1556, não sem terem sido promulgadas novas disposições que as regerão, devendo cada iniciativa ser previamente aprovada, sob vigilância dos vice-reis e do próprio imperador.

Neste ínterim, muitos contemporâneos de Las Casas se insurgiram contra suas afirmações. Mas convenhamos: se outros clérigos se pronunciaram nas Índias contra o abuso onde os viram, o que não passa batido é a insuportável arrogância narcisista da personagem, suas acusações generalizadas e suas condenações ultrajantes, gratuitas e preconceituosas: ele demoniza a conquista em sua totalidade, atribuindo-lhe até um genocídio. Eles o acusam – como o não menos famoso evangelista franciscano Toribio de Benavente –, em outros termos, de ser injusto ao difamar todo um povo e mentir com pleno conhecimento de causa. Autores modernos como a renomada historiadora María Elvira Roca Barea analisaram criticamente seus escritos. Cito-a: “Duvido que muita gente tenha lido a Brevísima; basta lê-lo para desacreditá-lo como documento confiável e sem que seja necessário desenvolver qualquer tipo de argumentação. Ele produz espanto e pena em partes iguais. Ninguém com um pouco de serenidade intelectual ou bom senso defende uma causa, por mais nobre que seja, como fez o dominicano. Foi somente nas mãos da propaganda que ela conseguiu fazer do Padre Bartolomé um apóstolo dos direitos humanos” (Tradução do autor).

Porque os exageros verbais são também acompanhados de aberrações difíceis de sustentar: desde a justificação dos sacrifícios humanos pelos índios – que ele compara ao da missa – até a proposta de substituí-los no trabalho por escravos negros, os quais não têm alma... Tais excessos, impregnados pela ideia do “índio” sem culpas, vindo de uma espécie de Éden primitivo – e do qual Rousseau saberá tirar proveito – também podem ser explicados pelo fato, denunciado por seu contemporâneos, que Las Casas não conhecia os índios, assim como não participou pessoalmente da pregação para eles. E não é um argumento menor sublinhar que Las Casas nunca se preocupou em aprender nenhuma das 300 línguas indígenas das regiões da Nova Espanha, tarefa absolutamente indispensável para evangelizadores dominicanos, franciscanos, jeronimitas, agostinianos ou jesuítas. Um leitor distraído pode pensar: provavelmente Las Casas exagerou e mentiu para proteger os índios. Mas esta ideia é duplamente incoerente: do ponto de vista da moral católica, primeiro, porque o fim nunca pode justificar os meios; e depois porque o bom Bartolomeu mentiu mesmo sem nenhuma necessidade. Quanto às suas próprias tentativas de comunidades indígenas em Cumaná na Venezuela, em seu bispado de Chiapas no México, e seu projeto de Verapaz na Guatemala, na aplicação de seus princípios utópicos, elas terminaram em fracasso sem paliativo, deixando seu bispado no caos, aumentando seu descrédito perante as autoridades civis e religiosas, e motivando seu retorno definitivo para a Espanha em 1547. Para um homem credenciado urbi et orbi com o título de defensor dos índios, deve-se dizer que ele se saiu muito mal.

Em resumo, verdade seja dita, os escritos lascasianos têm apenas um propósito de propaganda e, como examinamos, nenhum valor histórico. Mas então, que interesse eles podem ter e para quem? Com que artimanha Bartolomeu de las Casas se tornou uma referência universal válida para julgar (e condenar) o Império espanhol, um "arauto" dos direitos indígenas e precursor dos direitos humanos?

Foi na Inglaterra que o anticatolicismo e a propaganda antiespanhola começaram “oficialmente”, quando Henrique VIII se proclamou chefe da Igreja Anglicana em 1534. Recordemos que Catarina de Aragão, sua repudiada esposa, é filha dos reis católicos Isabel e Fernando. Ele encontra nas teses de Lutero seu maior aliado. Contra os espanhóis, qualificados de “corrompidos” pelo preconceito italiano já em curso, o monge alemão impele o argumento ao limite e os assimila ao Demônio e ao Anticristo. Esse amálgama não é secundário: a desumanização é a premissa necessária para o nascimento do nacionalismo inglês: o verdadeiro inglês deve ser anticatólico e antiespanhol. O "Livro dos Mártires" de John Fox, de 1559, foi fundamental para o estabelecimento do protestantismo na Inglaterra, exacerbado pela propaganda de Estado da Rainha Elizabeth I. Ele alcançou o status de manual de doutrinação, de leitura obrigatória para os jovens ingleses, porque forjava a ideia de que a Inglaterra é a nova nação escolhida para cumprir a vontade divina na terra. Pois se “Deus é inglês”, qualquer inimigo da Inglaterra é inimigo de Deus. Foi neste contexto de ódio anticatólico, e portanto hispanofóbico, que surgiu em 1583 a primeira edição inglesa da Brevísima de B. de Las Casas. Motivado pelo mito da nação eleita, e autojustificado para se apropriar das riquezas espanholas, o poder inglês montou o maior empreendimento de pirataria da história. A historiografia atual e a indústria cinematográfica popularizaram-nos em termos simpáticos, mas Francis Drake, Noble, Barker, Oxenham ou John Hawkins foram na realidade saqueadores sanguinários cujo “dever sagrado” consistia em semear morte e destruição nas cidades costeiras do Caribe, o que fizeram entre 1585 e 1596. Este foi também o objetivo da enorme expedição naval inglesa de 1589, liderada por Drake, destinada ao saque dos portos peninsulares espanhóis, mas como esta última terminou em um amargo fracasso, a reescrita vitoriana da história britânica não fala disso, e tampouco Hollywood. A Lenda Negra Espanhola servirá ao longo dos séculos seguintes para credenciar a necessidade de arrancar as “imerecidas” posses de um povo “ímpio e lascivo”. As tentativas militares britânicas de ocupar a Argentina em 1806 foram apenas um precursor da vassalagem econômica e bancária dos estados procedentes do império espanhol em decomposição. A Guerra das Ilhas Malvinas de 1982 nos fornece um exemplo mais recente do cínico desprezo britânico para com um povo hispano-americano: Margaret Thatcher permitiu que, se a Marinha Real falhasse, mísseis nucleares fossem lançados na cidade Argentina de Córdoba, em retaliação.

Voltemos agora às províncias alemãs do século XVI, que viram nascer as teses luteranas. Habilmente adaptado às circunstâncias, Lutero soube fornecer aos príncipes novas bases de caráter divino para o seu poder, na forma da total subordinação do povo à nobreza. Nas regiões sob influência reformista, a regressão ao domínio feudal provocou uma série de convulsões e guerras civis cíclicas, que duraram um século, e uma recessão sem precedentes. Terreno fértil, também, para receber de braços abertos os escritos lascasianos, traduzidos para o alemão em 1569, e sobre os quais se apoiou a propaganda protestante para construir um nacionalismo germânico até então inexistente, expressa em termos de hispano-católicos, nomeadamente estrangeiros, contra os alemães-protestantes, em total negação da realidade. O romantismo alemão de Schiller e Goethe explorará tanto quanto possível os mitos do perverso inquisidor e do preguiçoso espanhol. Ser católico na Alemanha, até o final do século XIX, significava pertencer a uma subclasse da sociedade: após a proibição do culto, proibição do acesso às universidades, às profissões superiores e aos cargos na administração pública. Os nazistas souberam jogar com o sentimento reformista: a Lutero foi dedicada à infame “Noite do Cristal” de 9 a 10 de novembro de 1938.

Na Holanda, o príncipe de Orange, vassalo de Filipe II, travara uma queda de braço contra o poder espanhol, não na forma de rebeliões populares, mas de reivindicações aristocráticas de caráter feudal. Com base em uma transição gradual para o calvinismo nas províncias holandesas, essa dinâmica de solapamento culminará em uma guerra civil de oitenta anos, na qual intervirão jogos de alianças, em particular com a França de Richelieu. Por conseguinte, por motivos geopolíticos particularistas, o objetivo comum era a destruição do Império Espanhol. Nas mãos do partido de Orange, a Brevísima, traduzida para o holandês em 1579, será explorada com uma habilidade inigualável, destinada sobretudo a escandalizar e a suscitar reações passionais, na ausência de uma argumentação bem desenvolvida, e a reduzir a nada os esforços de pacificação do imperador. A fé católica, tornada ilegal pelos Estados Gerais em 1584, só recuperou seu lugar de direito em 1853. O termo sul-africano “apartheid”, que significa marginalização, é de origem holandesa.

Havia um triângulo de propaganda fértil entre Holanda, Inglaterra e os huguenotes franceses apoiados pelo Príncipe de Orange. Os panfletos antiespanhóis eram geralmente produzidos primeiro em francês e holandês, antes de serem imediatamente traduzidos para o inglês, acompanhados pelas terríveis gravuras inspiradas nas descrições de Las Casas. É uma verdadeira indústria editorial, um gênero à parte, beneficiando de financiamentos à altura das apostas políticas, e envolvendo artistas da dimensão de Hans Holbein, Lucas Cranach o Velho, Albrecht Dürer ou Johann Wierix. Um tema que ocupa o Olimpo desse mito é, claro, a Inquisição, mas apenas a espanhola, embora nunca se tenha estabelecido na Holanda, enquanto esteve presente em outros países europeus, inclusive na França.

A “Très brève relation de la destruction des Indes”, título da tradução de 1578, difundiu-se, portanto, na França, somando-se às dezenas de edições em outras línguas que já circulavam pelos meios protestantes. E, embora a França tenha sido a última a seguir massivamente as pegadas da propaganda antiespanhola, o final do século XVII viu florescer os primeiros panfletos, motivados pela necessidade de levantar uma autoestima nacional afligida por um século de hegemonia espanhola e oito cruéis guerras civis de religião. Michel de Montaigne, num capítulo dos Ensaios, discorre sobre os crimes perpetrados na América pelos espanhóis, agora relatados por eles: “pois não se contentam em confessá-los, gabam-se deles, e os publicam” . (“Eles”, leia-se: Las Casas). Sob o disfarce de argumento religioso, a acusação é de fato geopolítica: os espanhóis são “bárbaros”, piores do que os próprios “selvagens” (que são muito poucos) e, portanto, nada de bom pode resultar de seus negócios junto deles. Entenda-se: tal privilégio civilizador deve ser conferido a outros. Sem surpresa, os textos de Montaigne foram imediatamente traduzidos para o inglês.

No contexto das guerras franco-espanholas, a condessa d'Aulnoy iniciou um novo e próspero filão, descrevendo a Espanha como “exótica”, ignorante e supersticiosa, ou seja, à margem do cânone europeu. Esta ideia literária de “anormalidade”, descoberta por meio de viagens, reais ou imaginárias, chegará bem a tempo de servir aos desígnios expansionistas de Luís XIV, instala-se e não partirá jamais.

O ano de 1700 inaugurou a dinastia Bourbon, na pessoa de Filipe V ‒ aliás neto do Rei Sol ‒ no trono de Espanha, após uma longa luta sucessória.

Uma reviravolta decisiva vai ocorrer: os políticos e órgãos administrativos implantados pelos Habsburgos são desmantelados em favor de uma centralização ao modelo de Estado francês, acompanhada de uma colonização cultural na corte de Madri e nas elites espanholas. Na França, a adaptação a esse acontecimento não elimina os temores inspirados por esse colosso que ainda é o império espanhol; a propaganda de pensadores “iluminados” superará os clichês anteriores, mas o estilo panfletário dará lugar a obras eruditas e prestigiosas. Diderot, Raynal ou Montesquieu (nas “Lettres persanes”) despejarão no rígido molde da historiografia oficial da Espanha as mentiras amplificadas em modo erudito: a Inquisição e a intolerância, os maus-tratos às minorias, o extermínio dos índios por Filipe II, uma sociedade atrasada e uma economia arruinada, a incapacidade para a ciência e para o pensamento, etc. Desta generosa fonte hão de beber os autores da ópera-balé e do teatro, de Jean-Philippe Rameau a Marmontel passando por Voltaire. O mais curioso, aliás, é que a maioria dessas obras foi proibida na França e teve de ser publicada no exterior ou impressa clandestinamente, enquanto circulava livremente no “tirânico” império espanhol. Note-se que o obsessivo discurso anti-imperial francês não aponta apenas para a Espanha, mas também para a Rússia, a potência em ascensão do momento, enquanto, ao mesmo tempo, a empreitada imperial francesa na América do Norte termina em desastre absoluto, sobre o qual cai um silêncio espesso, e do qual nenhum autor ilustre, nem Montesquieu, tão prolífico em suas “Considérations sur les richesses de l’Espagne” [Considerações sobre a Riqueza da Espanha], desejará analisar as causas.

Então chega o momento da ideia da degeneração das espécies sob a pena do naturalista Buffon em sua “Histoire Naturelle”. Segundo ele, as condições ambientais tornariam as terras do Novo Mundo impróprias para a civilização. E como a “demonstração” disso foi fornecida para as possessões espanholas, isso também se aplica à América do Norte. A teoria da degeneração não é um detalhe na história da “Ilustração”: ela fornece a ideologia para a organização ideal do mundo, em dominantes e dominados: da predisposição natural dos índios à servidão, defendida por Montesquieu em “De l'esprit des lois”, Buffon decreta a inferioridade do nativo americano. Cornelius De Pauw, em sua “Recherches philosophiques sur les Américains” vai além, pois detecta nos indígenas uma debilidade nativa tanto física quanto intelectual, que os impede definitivamente de progredir, evoluir e aprender. Está aberto o caminho para o “racismo científico” do superior europeu – nórdico, é claro. Esses preconceitos presidirão todos os empreendimentos coloniais, como vimos.

Os fundamentos do liberalismo norte-americano serão impregnados de desprezo racial e cobiça em relação aos nativos hispânicos. Os temas lascasianos e hispanofóbicos contribuirão para as revoluções burguesas sul-americanas para então serem retransmitidas pelo marxismo europeu, soviético e hispano-americano. Em meados do século passado, o indigenismo ressurgiu como reivindicação de direitos “historicamente pisoteados”, retomando a Lenda Negra eternamente renascente, mas ensinada de outra forma na história oficial, do México à Patagônia. No entanto, a ideia de “povos originários” reivindicando sua soberania ‒ numa lógica de balcanização que é um dos objetivos do Foro de São Paulo ‒ é baseada em um mito, já que a população hispano-americana é 95% mestiça. A ideologia indigenista encontrou no wokismo atual um amplificador ideal.

Las Casas não foi, nem de longe, o primeiro a defender os índios, nem seu sensacionalismo o mais eficaz para esse fim. Quanto ao reconhecimento dos direitos, teórico em primeiro lugar, e sua concretização progressiva, muito pouco de fato se deve ao dominicano. Foi apenas a propaganda europeia que fez dele o apóstolo que ele não era, mas aspirava ser. A sociedade contemporânea adora “denunciantes” e “precursores”, de modo que a maioria das publicações dedicadas a Las Casas repete continuamente os mesmos clichês, cujas origens e objetivos agora conhecemos. Os sites da Internet oferecem uma coletânea disso.

“A Lenda Negra sobre a Espanha é a maior alucinação coletiva do Ocidente” [Assim expressa o historiador sueco Sverker Arnoldsson em sua obra Las origenes de la Leyenda Negra. (Ed. El Paso, 2018)]. Baseia-se essencialmente na obra escrita do dominicano Las Casas, cuja fértil descendência dá vertigem, e que os artesãos do politicamente útil primeiro, e os guardiões do politicamente correto depois, empenharam-se para elevar à categoria de mito intocável. Dessa elaboração primeiramente anticatólica, mais amplamente anticristã em seguida, emergiu uma distopia histórica verdadeiramente única – porque global – que distorce, se não eclipsa, um dos períodos mais importantes da nossa história europeia comum. A obliteração cultural imposta nos priva, por consequência, de uma de suas mais ilustres joias, senão, talvez, a maior.

© 2023 La Nef. Publicado com permissão. Original em francês: “Bartolomé de Las Casas et la Légende Noire : histoire d’une hallucination collective”.

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