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As “bolhas” da fama: por que alguns ídolos desaparecem e outros atravessam gerações

Para o jurista e professor de Harvard Cass R. Sunstein, a fama é fruto de uma delicada mistura entre talento, sorte e contexto
Para o jurista e professor de Harvard Cass R. Sunstein, a fama é fruto de uma delicada mistura entre talento, sorte e contexto (Foto: Imagem criada com a IA do Google/Gazeta do Povo)

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A fama é uma força que intriga e desafia nossa compreensão. Afinal, por que alguns nomes atravessam gerações enquanto outros, igualmente talentosos, caem no esquecimento?

É a essa pergunta que se dedica, há anos, o jurista Cass R. Sunstein, professor de Harvard e profundo estudioso das ciências comportamentais. Em “Como Ser Famoso” (selo Vestígio), ele mescla histórias fascinantes, pesquisa rigorosa e um olhar atento sobre as engrenagens do acaso para investigar por que os Beatles, Shakespeare ou Star Wars se tornaram ícones universais — enquanto outros artistas e obras, de igual brilho, foram ignorados.

No recorte do livro que você lê a seguir, Sunstein reflete sobre como se constrói, ou se perde, um lugar na História — mostrando que a fama não é inevitável, mas fruto de uma delicada mistura entre talento, sorte e contexto.

Em meados do século XVIII, Samuel Johnson, autor do primeiro dicionário de língua inglesa e de The Lives of the Poets [“A Vida dos Poetas], teve muito a dizer sobre raios, fama e paixão passageira. Ele enfatizou que as pessoas são ocupadas e que é difícil despertar sua atenção.

Por essa razão, “nenhum homem pode ser formidável, a não ser para uma pequena parte de seus semelhantes”. Para piorar, quase todo mundo é esquecido rapidamente, mesmo que se torne famoso ainda em vida.

Falando de escritores em particular, Johnson afirmou: “Se olhamos para tempos idos, encontramos inúmeros nomes de autores outrora altamente reputados, lidos talvez pelos belos, citados pelos espirituosos e comentados pelos sábios, mas dos quais agora sabemos apenas que um dia existiram”.

Johnson estava certo, mas subestimou a questão. Talvez nem saibamos que existiram. Johnson fez uma distinção nítida entre a fama em vida e a fama duradoura.

Quanto ao renome de curto prazo, aconselhou ceticismo. Ele apontou para as “bolhas de fama artificial, que são sustentadas durante um tempo por um sopro da moda e depois estouram e se extinguem”.

Johnson acreditava que não ficaríamos impressionados se pudéssemos recuperar as obras de escritores antigos, famosos em sua época e agora perdidos. Perguntaríamos: por que alguém achou que eles eram especiais? Como ficaram famosos?

Na opinião de Johnson, “nos perguntaríamos por qual paixão passageira ou capricho eles poderiam ser notados”.

A paixão passageira e o capricho definem a fama durante a vida. O veredicto a longo prazo é, na opinião de Johnson, muito mais confiável.

O exemplo favorito do escritor? William Shakespeare, por ter sido um gênio incomparável e por sua obra abordar questões atemporais, relevantes não apenas para seu tempo e lugar, mas para nossa espécie.

Em paralelo, Johnson reconheceu que mesmo a fama duradoura é algo complexo. Falando de Shakespeare, ele escreveu: “Ainda assim, deve-se confessar, por fim, que, assim como devemos tudo a ele, ele deve algo a nós; se grande parte de sua apreciação se dá por meio de percepção e julgamento, grande parte também se dá por costume e veneração”.

Johnson continuou: “Fixamos nossos olhos em suas graças e os desviamos de suas deformidades, tolerando nele o que deveríamos odiar e desprezar em outro”. Isso é um pouco como estar apaixonado, não é?

O ícone de ontem é o fracasso de amanhã

Johnson utilizou o termo “bolhas”, da mesma forma que o empregamos. Nós o usamos para nos referir a preços ou popularidade artificialmente inflados, geralmente produzidos pela percepção de que outras pessoas gostam do produto ou do indivíduo em questão.

É fácil encontrar bolhas: imobiliárias, de cantores pop, de podcasts, de laptops, de programas de televisão, de ações (até mesmo no mercado de ações), de estrelas do cinema, de escritores e de revistas on-line.

As bolhas estouram. O ícone de ontem é o fracasso de amanhã. (Esse é o tema de “Like a Rolling Stone”, de Bob Dylan: “Ah, você nunca se virou para ver as caras fechadas / Dos malabaristas e dos palhaços quando todos faziam truques para você”).

Na opinião de Johnson, a fama costuma ser uma espécie de bolha, um produto de paixão ou capricho. Johnson achava que deveríamos confiar no longo prazo. Será?

Costuma-se dizer que “Cidadão Kane” é o melhor filme já feito. Em 1942, perdeu o Oscar para “Como Era Verde o Meu Vale”. Alguém se lembra de “Como Era Verde o Meu Vale”?

O Dave Clark Five foi um grupo imensamente popular no início dos anos 1960, muitas vezes comparado ao seu grande rival, os Beatles. As revistas de música dedicavam muitas páginas à disputa acirrada para definir qual grupo era o melhor.

Em 1964, uma revista inteira foi publicada com o nome “Dave Clark 5 vs. The Beatles”. A capa citava Ringo dizendo: “Eles são meras imitações!” — e Dave Clark dizendo:“Eu desafio Ringo para um duelo!”.

O Dave Clark Five vendeu mais de 100 milhões de discos. Lembro-me bem do Dave Clark Five. Eles são escandalosamente subestimados.

“Glad All Over” é fantástica, “Bits and Pieces” e “I Like It Like That” são irresistíveis, mas a melhor música deles é “Catch Us If You Can”. Ela é exuberante e contagiante de um jeito improvável. Este é seu tema central: “Lá vêm eles de novo/ Peguem-nos se puderem/ Hora de se mexer/ Vamos gritar com toda a nossa força”.

Como você deve ter imaginado, o Dave Clark Five não chegou nem perto dos Beatles.

Surpresas impressionantes

Johnson estava certo, então: Cidadão Kane, sim; Como era verde o meu vale, não; The Beatles, sim; Dave Clark Five, não; Mozart, sim; Salieri, não; Jane Austen, sim; Mary Brunton, não.

Ele não acreditava que a fama de longo prazo pudesse ser produto de paixão ou capricho. É importante lembrar sua observação.

Aqueles que alcançam a fama duradoura devem algo a nós. Quando alguém ou algo se torna icônico, fixamos os olhos em suas graças e toleramos o que desprezaríamos nos outros.

A ideia de bolhas será fundamental para meu argumento aqui. No entanto, Johnson cometeu um erro.

Ele não abordou uma questão central: quem recebe uma chance e quem não recebe? Quem tem uma oportunidade e quem não tem? Quem tem padrinhos eficazes e quem não tem?

De qualquer forma, a fama de curto prazo e a de longo prazo não são tão diferentes. O caso intrageracional é também intergeracional, só que muito mais acelerado; o caso intergeracional é o intrageracional, só que muito mais lento.

Não podemos confiar no veredicto de longo prazo. O costume e a veneração, a paixão e o capricho fazem toda a diferença, mesmo ao longo dos séculos.

Johnson estava comprovadamente enganado ao dizer que, se descobríssemos a obra há muito perdida daqueles que foram celebrados em sua época, ficaríamos desapontados com sua qualidade e nos perguntaríamos por que haviam sido celebrados.

Muito do que foi perdido é realmente muito bom. Diversas vezes, redescobrimos o que foi perdido e ficamos maravilhados. Um raio nos atinge.

Pode acontecer em um momento surpreendente: quando alguém que foi ignorado durante a maior parte da vida faz sucesso na velhice, ou um poema ou um produto é celebrado anos depois de ter sido escrito ou criado.

Podemos tirar grandes lições disso. O que integra o “cânone”? Agora? Daqui a 20 anos? Daqui a 50 anos? Muitas vezes há surpresas impressionantes.

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Conteúdo editado por: Omar Godoy

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