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Pegou pesado

Bukele: herói ou vilão? Com bons resultados, líder de El Salvador quer reeleição infinita 

Nayib Bukele em discurso poucos dias após a aprovação no Congresso da reeleição indefinida para presidente no país (Foto: EFE/ Gobierno de El Salvador)

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Um marqueteiro político que se transformou em presidente da República. Nayib Bukele, o líder de El Salvador, conseguiu feitos extraordinários no combate à violência e à corrupção. Mas, mesmo com toda a aprovação popular, passou a ser chamado de “ditador”. O motivo foi a recente mudança na Constituição pelo Congresso local, permitindo a possibilidade de reeleição ilimitada para o cargo que Bukele ocupa.

Bukele é, de longe, o presidente com a maior taxa de aprovação no continente. Os índices são tão altos que até Donald Trump quis imitá-lo. Em reunião com o presidente americano em abril de 2025, Bukele respondeu à imprensa de forma contundente: “Às vezes dizem que prendemos milhares”, afirmou, defendendo seu modelo de segurança pública. “Eu gosto de dizer que, na verdade, libertamos milhões”, concluiu. Trump sorriu e perguntou: “Quem deu essa frase para ele? Você acha que eu posso usar isso?”. 

Por outro lado, críticos de seu governo dizem que a segurança conquistada no país custou a liberdade e algumas garantias fundamentais do povo salvadorenho. Mas, afinal, as medidas adotadas por Bukele para reprimir o crime organizado foram longe demais ou ele não fez nada além do necessário? 

A revolução da segurança pública 

Poucos países do mundo viveram transformação tão radical em tão pouco tempo. Em 2015, El Salvador ostentava uma das taxas de homicídios mais altas do planeta: cerca de 106 assassinatos por 100 mil habitantes. O país era território dominado por gangues como a MS-13 e a Barrio 18, que não apenas controlavam bairros inteiros, mas também cobravam o “imposto da violência”: comerciantes e motoristas de ônibus tinham de pagar extorsão para simplesmente poder trabalhar. 

Dez anos depois, os números oficiais apontam 114 homicídios em todo o ano, o que representa 1,9 por 100 mil habitantes. Em janeiro de 2025, o governo chegou a comemorar dias consecutivos com “zero homicídios”. Para se ter ideia, a taxa coloca El Salvador, antes um bangue-bangue a céu aberto, entre os países mais seguros das Américas em menos de uma década, competindo com nações desenvolvidas. 

Como Bukele conseguiu isso? 

A solução pode assustar. El Salvador está em estado de exceção há mais de três anos, renovado quase que mensalmente pelo Congresso. Além de realizar mais de 80 mil prisões e construir um mega-presídio chamado CECOT (o maior das Américas), Bukele adotou uma política de encarceramento em massa. 

A extorsão, que era o câncer do comércio, praticamente desapareceu. O cotidiano mudou: famílias voltaram a andar nas ruas à noite, restaurantes se encheram de clientes, turistas voltaram a circular em San Salvador e nas praias do Pacífico. 

Entretanto, organizações como Human Rights Watch e Anistia Internacional denunciam prisões arbitrárias, detenções sem julgamento, tortura e mortes sob custódia do Estado. Estima-se que pelo menos 354 presos tenham morrido dentro do sistema prisional desde o início do estado de exceção. Outros 8 mil foram libertados por falta de provas. 

Para o historiador e analista político Victor Missiato, professor do Mackenzie/SP, a estratégia de Bukele no combate ao crime passa por medidas duras e contínuas, que se estendem muito além do prometido inicialmente. “Uma das principais medidas que ele utiliza é evitar com que seja necessário todo um processo jurídico para prender alguém”, argumenta o professor. Além disso, houve “um aumento expressivo das vagas de penitenciárias e um intensivo uso do aparelhamento policial para entrar em choque, entrar em defesa e segurança contra qualquer tipo de ameaça”. Embora anunciadas como temporárias, essas ações excepcionais se estenderam, consolidando um Estado forte diante da criminalidade e até mesmo da “ameaça de criminalidade”. 

Em San Salvador, manifestantes criticam as políticas de Bukele Foto: EFE/ Javier Aparicio (Foto: (EPA) EFE)

Questionado sobre o possível caráter autoritário das medidas, Missiato pondera que elas colocam em xeque garantias básicas de um Estado democrático de direito. Segundo ele, “não havendo um processo judicial, um rito judicial fundamental que é de que todo cidadão tem direito num Estado democrático de direito, isso pode ser encarado como uma ação autoritária”.  

Por outro lado, ele observa que houve respaldo social às as medidas tomadas por Bukele: “Existe também uma aprovação institucional social que faz com que essa medida tenha validade social, e o apoio que a população deu mostra muito bem uma perspectiva, eu não diria democrática, mas popular”. 

Entre o pragmatismo econômico e a ousada adoção do Bitcoin 

A queda histórica na taxa de homicídios em El Salvador não só mudou a percepção interna de segurança como também gerou impacto direto na economia. Segundo Renan Silva, professor do IBMEC-DF, investidores levam em conta a estabilidade ao decidir onde aplicar recursos, já que a violência eleva custos operacionais e reduz a competitividade. Ele resume: “A queda nos homicídios melhora a imagem do país, tornando-o mais atrativo para negócios”. 

Além disso, regiões mais seguras atraem turistas e incentivam a circulação de pessoas e bens, criando um ciclo virtuoso de geração de empregos e renda. Só em 2023 o turismo cresceu mais de 30%, impulsionado justamente pela queda da criminalidade. 

Outra medida que ganhou prestígio internacional foi a adoção do Bitcoin como moeda legal. Especialistas, no entanto, afirmam que a medida teve efeito mais simbólico do que prático. Poucos salvadorenhos usam o ativo, e o próprio governo precisou recuar para fechar um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que exigiu limitar a exposição pública à oscilação da moeda digital e suspender a obrigatoriedade de aceitação do Bitcoin no comércio. 

Para Silva, “uma moeda deve transmitir credibilidade e estabilidade”, algo que o Bitcoin não garante por causa da volatilidade. Ainda assim, ele admite que a adoção funcionou como estratégia de marketing, posicionando o país como “laboratório” de inovação financeira. Outra vantagem, segundo Silva, seria a inclusão financeira: “Em países com baixa bancarização, o uso de carteiras digitais baseadas em Bitcoin pode facilitar o acesso a serviços financeiros para populações marginalizadas”, explica. 

Já Hugo Garbe, professor de Ciências Econômicas do Mackenzie/SP, reforça que o verdadeiro sustentáculo da economia salvadorenha veio de ajustes fiscais, reformas institucionais e do acordo firmado com o FMI, e não da criptomoeda. O acordo de US$ 1,4 bilhão já teve sua primeira revisão aprovada em maio de 2025, liberando cerca de US$ 120 milhões. As agências de risco reagiram positivamente: a Fitch melhorou a nota do país e os spreads da dívida caíram. Em bom português: o risco de calote diminuiu. 

Ainda assim, Bukele mantém uma reserva oficial de cerca de 6 mil bitcoins, que surfou a valorização da moeda em 2024 e 2025. Nas redes sociais, ele se gaba de lucros “no papel”, apresentando a aposta como prova de visão de futuro. 

Lições de Bukele para o Brasil 

Como medida de melhoria para a economia brasileira, ambos os professores de economia indicam inspirações distintas que o país pode buscar em Bukele. Silva defende inspiração em modelos internacionais de simplificação tributária, parcerias em infraestrutura e políticas anticorrupção. 

Já Garbe argumenta que “a experiência que pode ser aproveitada não é a do Bitcoin, mas a de melhorias em governança e no ambiente de negócios, além de políticas que ampliem a inclusão financeira digital”. No cenário global, alerta que a adoção irrestrita de moedas digitais voláteis poderia trazer riscos sérios, como perda de controle da política monetária e instabilidade nos preços: “O que tem ganhado espaço no cenário global não é o uso de criptomoedas voláteis como moeda oficial, mas os pagamentos instantâneos, stablecoins reguladas e moedas digitais emitidas por bancos centrais”. 

No dia a dia, o PIB salvadorenho cresce em torno de 2,5% ao ano — ritmo modesto, mas estável — e a inflação gira em torno de 2%, beneficiada pela dolarização da economia. Mas, para Garbe, “a hipótese de dolarização da economia brasileira não se sustenta. O país perderia autonomia de política monetária, deixaria de capturar receita de emissão da própria moeda e ficaria mais vulnerável a choques externos”. Segundo ele, como as dívidas do país são majoritariamente em reais e, com câmbio flutuante e reservas internacionais robustas, manter o real é essencial. 

No campo da segurança, Victor Missiato explica que replicar a política de Bukele no Brasil seria extremamente complexo. "Essas medidas, pela nossa Constituição, deveriam passar pelo crivo de uma transformação muito grande do poder legislativo em relação à política de segurança”, analisa. A diferença estrutural é grande, já que no Brasil a segurança pública está vinculada aos estados federativos e suas polícias militares. Ainda assim, Missiato vê um ponto de aproximação: “O fato de nós termos polícias militares pode abrir brecha para um tipo de interpretação frente às ações mais intensivas, ostensivas contra a criminalidade”. 

Se as medidas de Bukele fossem aplicadas no Brasil, as implicações seriam intensas. De acordo com o historiador, “pelo tamanho do Brasil e por o país representar uma das maiores democracias do continente, isso traria um ruído muito maior em relação às pressões institucionais”.

Ainda assim, ele reconhece que a violência brasileira poderia gerar apoio popular imediato a políticas mais duras: “O Brasil ainda é um dos países mais violentos da região, e uma redução como essa que aconteceu em El Salvador também poderia acarretar um apoio popular aos governantes de forma muito rápida”. 

Controvérsia política e o “mal necessário” 

Se a segurança rendeu paz social e prosperidade econômica, o impacto político é controverso. Em fevereiro de 2024, Bukele foi reeleito com 85% dos votos válidos, resultado que lembra pleitos em regimes de partido único. Seu partido, Nuevas Ideas, domina a Assembleia Legislativa com folga. Pesquisas de 2025 indicam aprovação pessoal que oscila entre 80% e 90%, números inalcançáveis para praticamente qualquer presidente do continente. 

Mas essa popularidade não veio sozinha. Em 2021, a Assembleia destituiu magistrados da Suprema Corte e o procurador-geral, abrindo caminho para interpretações favoráveis à reeleição imediata, proibida (no papel) pela Constituição. Em 2024, Bukele disputou o segundo mandato e venceu. Agora, em agosto, a Assembleia aprovou a reeleição indefinida, estendeu o mandato presidencial de 5 para 6 anos e eliminou o segundo turno. 

Na prática, Bukele pode governar pelo tempo que quiser, desde que mantenha sua popularidade intacta. Para críticos, trata-se de um roteiro conhecido: a transição da democracia liberal para o personalismo plebiscitário, no qual a vontade popular imediata substitui as regras de alternância e de freios institucionais. 

Missiato alerta para os riscos de sucessivas reeleições e os impactos sobre a democracia salvadorenha: “Num regime presidencialista, as reeleições infinitas podem criar um caminho tortuoso para a democracia”. Para ele, a máquina estatal garante vantagem desproporcional a quem está no poder: “A luta fica desigual. Você acaba tendo o poder do Estado o tempo todo nas suas mãos”.

Nesse cenário, há o risco de manipulação política e até de perseguições judiciais. “A gente vê isso acontecer em outros casos, como na Venezuela e em Cuba. Tem que tomar muito cuidado para não se transformar em uma nova Nicarágua na América Central”, conclui. 

Herói ou vilão? 

Para quem sofreu com a violência das gangues, Bukele é herói. São milhares de salvadorenhos vivos que, estatisticamente, estariam mortos se o país tivesse mantido os números de 2015. São comerciantes que hoje trabalham sem pagar extorsão, famílias que voltaram a circular sem medo. Nesse sentido, os críticos internacionais soam, para muitos salvadorenhos, como hipócritas que não entendem o que significa viver sob o terror cotidiano de uma mão armada. 

Mas, para quem acredita que um requisito da democracia é a alternância de poder, então Bukele é vilão. A extensão contínua do estado de exceção, as mortes de presos, a falta de devido processo, a concentração de poder no Executivo e a reeleição indefinida são sinais de alerta. Mesmo que hoje a população o apoie, o que acontece se amanhã um governante menos popular — ou mais corrupto — herdar essas mesmas ferramentas? O atalho autoritário pode se tornar armadilha permanente. 

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