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Autora de mais de 50 obras, Mary Del Priore volta às livrarias com “Uma História da Velhice no Brasil” (selo Vestígio), em que propõe uma reflexão profunda sobre o papel dos idosos no país ao longo dos séculos.
Com uma narrativa envolvente, a historiadora revela como a sociedade brasileira enxergou e tratou a velhice desde os tempos coloniais até os dias atuais — explorando desde o respeito e a autoridade conferidos aos mais velhos até momentos de exclusão e desprezo.
No recorte a seguir, Mary nos transporta para o Brasil do século XIX, quando a idade avançada era um símbolo de prestígio e poder. Naquela época, figuras de cabelos brancos e barbas imponentes dominavam a política, a burocracia e as instituições, impondo-se como “sábios” e detentores da experiência necessária para conduzir os rumos do país.
Ao redor do jovem D. Pedro I, considerado insensato e despreparado para governar, não faltou a presença dos mais velhos.
Das imagens que ainda temos, José Bonifácio, seu secretário de Negócios Estrangeiros, então cinquentenário, já trazia a cabeça branca. Monsenhor Francisco Muniz Tavares, clérigo liberal, tinha cavanhaque e cabeleira alva e usava óculos de vidros espessos.
Cândido José de Araújo Viana, marquês de Sapucaí, óculos e cabeça grisalha. Antônio Pereira Rebouças, cabeça grisalha e quase cego.
Pedro de Araújo Lima, marquês de Olinda, cabeça e barba brancas. Cipriano Barata, um dos mais ativos combatentes pela Independência, cabeleira longa, à la Luís XIV, embranquecida pelos anos em que passou na prisão por ser inimigo de D. Pedro I.
E havia velhos absolutistas que lutaram nas Cortes de Lisboa contra a independência do Brasil. O deputado Vilela Barbosa foi um deles. Dizia ter vergonha de ter nascido no Brasil e que era tanta a sua raiva contra o projeto separatista que, mesmo velho, atravessaria o oceano a nado com a espada na boca para obrigar os brasileiros à reunião com Portugal.
Em ambos os casos, eram a imagem de velhos fortes, cujas vozes insinuavam energia e irradiavam poder. Não por acaso, eleito aos 20 anos deputado por Alagoas, Aureliano Tavares Bastos se referia a eles como “os homens do passado, os velhos, os sábios, os donatários de terra”, a quem acusava de despotismo. Eram temidos.
Para igualá-los, se ainda não eram velhos, os jovens tinham que parecer velhos. A rotatividade dos governos e seu cortejo de demissões e substituições de empregados públicos foi a marca da época.
E depois do período chamado de menoridade de D. Pedro II, como explicou Sérgio Buarque de Holanda, a alternância de gabinetes de ministros com orientações antagônicas mantinha os políticos ocupados. Entre eles, a idade era sinônimo de prestígio.
Seus rostos se cobriam de pilosidades, sinal de honra. Jurava-se pelo “fio de barba”. Até jovens iam ao santuário de Bom Jesus de Congonhas, em Minas Gerais, pagar promessa por botar barba.
Já dizia o ditado: quem não tivesse honra não tinha vergonha “na cara” — a barba branca sendo a mais honrada.
Saldanha Marinho usava a sua longa e quadrada. O próspero fazendeiro e banqueiro preto, Francisco Paulo de Almeida, barão de Guaraciaba, usava a sua junto com bigode, ambos totalmente brancos.
E, mais tarde, D. Pedro II, mantinha uma barba de “Papai Noel” — figura que na época ainda não existia na imaginação dos brasileiros. Em visita ao Brasil, em 1865, a naturalista americana Elizabeth Agassiz achou sua “fisionomia preocupada e um pouco envelhecida”. Ele só tinha 40 anos e já parecia idoso.
“Velhice robusta”
Títulos também davam respeitabilidade equivalente a uma cabeça branca. Não havia fazendeiro que não aspirasse ao de comendador. Os tratamentos também nobilitavam: de “Vossa Mercê” se passava a “Vossa Senhoria” e dos “tu”, à categoria de “Vossa “Mercê”.
Candidatos aos títulos incluíam negociantes, letrados e mestiços ricos, como os conheceu Luís dos Santos Vilhena, na Bahia, pois ninguém parecia muito preocupado em ir longe na investigação sobre sua origem social.
Caso do extraordinário mestiço Francisco Gomes Brandão, ou Francisco Gê de Acaiaba Montezuma, futuro Visconde de Jequitinhonha, amigo pessoal de D. Pedro I e de José Bonifácio e um dos mais relevantes políticos do Império.
Machado de Assis, o descreveu no outono da vida: “Um dia vi ali aparecer um homem alto, suíças e bigodes brancos cumpridos [...] um tipo de velhice robusta”. Idoso, ele não se queria esquecido e por isso amava estar sob holofotes e na mira de comentários.
Quando era um pouco deslembrado, escrevia ele mesmo artigos anônimos em que fazia acusações contra sua própria pessoa para no dia seguinte, como visconde de Jequitinhonha, poder responder. Convalescente de uma doença, fez um amigo mandar rezar um Te-Deum com grande pompa na igreja de São Francisco de Paula pelo seu restabelecimento.
D. Pedro II o tinha como um de seus mais notáveis conselheiros, como atestam as anotações feitas pelo imperador no decorrer das sessões do Conselho de Estado.
Foi jornalista, diplomata, senador, abolicionista e fundador do embrião da OAB: o Instituto dos Advogados do Brasil. Sempre ativo, em 1865, Montezuma apresentou vários projetos para a extinção da escravidão.
Trabalhava incansavelmente em sua seleta biblioteca de 4.250 volumes, só saindo dela para tomar o cupê ou a vitória para ir ao Senado ou visitar um amigo.
Às vezes fugia para sua casa de veraneio, no Alto da Boa Vista, onde se isolava totalmente, “mas gozando um bom clima, tomando meus banhos de Capacival, deitando-me cedo, e somente saindo deste retiro e pacífico modo de vida para satisfazer meus deveres de conselheiro de Estado” — gostava de dizer.
Montezuma se nutria para continuar vivo e presente. A 15 de fevereiro de 1870, às 5h30 da manhã, poucos dias antes de terminar a Guerra do Paraguai e depois de alforriar duas escravas, Helena e Maria Lucrécia, Francisco Montezuma descansou. Tinha 76 anos.
Afastamento
Quando muito enfraquecidos, velhos políticos tinham a dignidade de se afastar, como o fez o velho liberal Antônio Limpo de Abreu, visconde de Abaeté, dono de espantosas costeletas e cabeleira branca.
Tendo participado da primeira Assembleia Constituinte brasileira, governou três gabinetes, lutou nos grupos dos que apoiavam a maioridade de D. Pedro II, presidiu o Senado por 12 anos, mas, no governo de D. Pedro II, não era mais o homem do momento.
Sem forças aos 60 anos, Abaeté não passava, como dizia Joaquim Nabuco, de “um sobrevivente do primeiro Reinado e da Regência [...] a política que o havia fascinado na mocidade era agora para ele um objeto de estudo [...] um teatro onde ele ainda consentia em figurar [...], mas, não sentia mais o prazer, o encanto”.
Quando, em 1880, foi chamado à presidência do conselho recusou alegando: “1º — que a sua idade e sofrimento o impediam de tomar parte ativa nos negócios políticos; 2º — que não se reputava próprio para guiar homens novos que não conhecia; 3º — que se pedisse às Câmaras os meios de fazer o bem do país, duvidava que elas o deixassem”.
O homem que acompanhou a vida nacional desde a proclamação da Independência fechou os olhos aos 85 outonos.
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Conteúdo editado por: Omar Godoy



