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Busco ser justo nas críticas que teço à política externa do atual governo brasileiro, e oportunidades não faltam para ilustrar a inexistência de norte estratégico e de bússola moral nas iniciativas da dupla Lula-Celso Amorim, como tenho exposto em artigos publicados nesta Gazeta do Povo.
A recente tragédia que resultou na morte da brasileira Juliana Marins após acidente no vulcão Rinjani, localizado na ilha de Lombok, Indonésia, é, contudo, um episódio em que críticas à atuação do Itamaraty, oriundas sobretudo de interações em redes sociais e por franjas minoritárias da classe política, não são inteiramente justas, embora a atuação do Planalto não seja desprovida de controvérsias.
Conforme divulgado pela imprensa – que, em sua ampla maioria, merece ser congratulada pela cobertura sóbria do processo de salvamento, infelizmente não conducente ao resgate com vida da cidadã brasileira -, o Ministério das Relações Exteriores, ao que tudo indica até o momento, acompanhou os desdobramentos da busca, mantendo contato com autoridades indonésias, familiares da cidadã brasileira, indivíduos presentes ao local do acidente e veículos de imprensa brasileiros.
Existem diversas variáveis que devem ser consideradas nessa complexa equação, ao menos como circunstâncias atenuantes.
Se levarmos em conta a diferença de fuso horário entre Brasília e Lombok, local do acidente (11 horas) e entre a capital federal e Jacarta, a capital da Indonésia (10 horas), a circunstância de ter a tragédia ocorrido em um fim de semana (manhã de sábado, 21/6, horário de Lombok,), a precariedade dos mecanismos de busca e resgate do país asiático e a complexa interlocução com as autoridades indonésias (dificultada por obstáculos idiomáticos, logísticos, como a precária cobertura de celular na área do acidente, a distância – Lombok, segundo nota do MRE, localiza-se a cerca de 1200 km de Jacarta, onde está a embaixada do Brasil –, de acesso e de autorizações hierárquicas, dentre outros), infiro razoável pressupor ter nossa representação diplomática em Jacarta, feito o possível, dentro de suas limitações, para viabilizar o resgate com vida de Juliana Marins.
Importa ressaltar que, no mundo diplomático, não corresponde a uma chancelaria ou a um governo determinar ações a um governo estrangeiro, de maneira que toda a interlocução ocorre por meio de solicitações, o que infelizmente parece ter escapado à compreensão da maioria das interações nas redes sociais. O fato de o governo brasileiro atual não dispor de credibilidade externa ou capacidade de influência torna essa realidade ainda mais angustiante, pois eventuais demandas por apoio, ainda que emergencial, deixam de ter caráter prioritário.
Além disso, a responsabilidade pelo repasse de informações falsas recebidas de autoridades indonésias, indicativas de que o resgate de Juliana Marins já estaria em curso quando a equipe sequer havia chegado ao local do acidente, conquanto lamentável, não pode ser imputada ao Ministério das Relações Exteriores, pois, além de ainda não contar com funcionários diplomáticos brasileiros na área do vulcão Rinjani quando da comunicação, pressupôs a boa-fé da fonte.
Falta de agilidade
Isto posto, convém aqui destacar a lentidão da diplomacia pública e da comunicação social do Itamaraty, problema de causas estruturais e históricas que não pode ser imputado aos diplomatas de carreira que as executam, ainda que a chefia do Ministério detenha parte da culpa, por imobilismo e omissão.
São estruturais por decorrerem, em considerável medida, das organizações disfuncionais do MRE e da carreira diplomática; históricas porque, é importante salientar, não se trata de um problema exclusivo da atual gestão, haja vista o Itamaraty jamais ter contado com um aparato de comunicação social e de diplomacia pública compatível com a agilidade demandada pela era das comunicações digitais.
A diplomacia pública brasileira lamentavelmente não dispõe de meios e autorizações das instâncias decisórias superiores, intra e extra-MRE, para operar no tempo (no sentido de velocidade) demandado pela era das comunicações instantâneas, sobretudo quando se trata de temas consulares envolvendo cidadãos brasileiros em situações de vulnerabilidade no exterior, o que com frequência gera contextos de comoção nacional, como justificadamente foi – e tem sido – o do trágico acidente que tirou a vida de Juliana Marins.
A viabilização dessas ferramentas pode concorrer não apenas para melhor atender às demandas informacionais da sociedade brasileira (inclusive a imprensa) em situações extremas no âmbito da assistência consular, mas também para facilitar a comunicação em contextos negociadores propriamente políticos, como atestado pela atuação nas redes sociais, em tempo real, no início desta semana, do presidente dos EUA, Donald Trump, visando a evitar a violação do cessar-fogo por ele negociado entre Israel e Irã.
A comunicação social do Itamaraty certamente se beneficiaria de protocolos pré-estabelecidos e claros, bem como de amplo conhecimento, para a atuação dos funcionários do Serviço Exterior Brasileiro em casos complexos de assistência consular.
Seria também oportuna a promoção de campanhas contínuas de esclarecimento à população acerca das possibilidades de atuação da assistência consular – isto é, o que é e o que não é possível fazer, a fim de evitar pressões e campanhas difamatórias (às vezes endossadas por pessoas públicas) baseadas em premissas irrazoáveis, exemplos das quais são envio imediato de helicópteros, por missões diplomáticas brasileiras, a áreas de acidentes, pedidos para que diplomatas “exijam” atitudes de autoridades estrangeiras e ações gerais, por parte de missões, que supostamente prescindiriam da anuência das autoridades dos países nos quais estão localizadas.
Creio, portanto, que a atualização dos métodos e das práticas de nossa chancelaria, com a emergência de uma diplomacia pública ágil, atuante com base em protocolos pré-estabelecidos, e um público adequadamente informado sobre a possibilidades de ação de assistência consular – e também sobre os perigos de programas turísticos extremos, tarefa que o Itamaraty bem poderia desempenhar - poderão contribuir para que tragédias como a de Juliana não voltem a ocorrer.
Caso Nadine Heredia
Dois pontos adicionais merecem atenção. O caso da fatalidade que vitimou a jovem Juliana tem sido, de maneira enviesada, comparado ao recente episódio no qual o presidente Lula determinou à Força Aérea Brasileira que enviasse uma aeronave para trazer ao Brasil, clandestinamente, a ex-primeira-dama peruana Nadine Heredia, cuja prisão foi decretada pela justiça daquele país por corrupção e lavagem de dinheiro, desperdiçando recursos das já combalidas finanças nacionais.
Estas situações possuem naturezas radicalmente distintas. No caso peruano, a decisão de Lula foi marcada por um retrógrado alinhamento político-ideológico com regimes esquerdistas latino-americanos e suas práticas subterrâneas, em um gesto que priorizou interesses político-partidários acima da legalidade e do respeito às instituições judiciais de um país vizinho.
A evacuação de Heredia – à qual o Itamaraty deveria ter manifestado sua contrariedade, por honestidade moral e coerência histórica, mas não o fez – representou não apenas uma flagrante violação à soberania do país vizinho, mas uma intervenção com clara motivação estratégica e política.
Por outro lado, a decisão de mobilizar recursos como uma aeronave da FAB para recuperar o corpo da brasileira falecida na Indonésia não cabe à própria FAB ou ao Ministério da Defesa, mas, sim, ao próprio Presidente da República. Essa decisão pode – ou deveria – envolver consultas ao Chanceler e outras autoridades pertinentes, de maneira a avaliar a excepcionalidade da necessidade e a legitimidade do uso de recursos públicos.
Entretanto, é relevante lembrar que, independentemente da causa da morte ou da comoção que ela possa causar, a responsabilidade técnica pelo traslado de corpos de cidadãos brasileiros falecidos no exterior, salvo raras excepcionalidades, recai sobre a família.
Essa tarefa é auxiliada pela Divisão de Assistência Consular (DAC) do Ministério das Relações Exteriores, que tem o dever de prestar suporte com a liberação, necropsia e documentação relacionada ao traslado, mas este em si não se trata de um ônus ou dever do Estado brasileiro, pois, em média dois mil óbitos são registrados pelas representações diplomáticas e consulares do Brasil no exterior por ano, muitos deles também em situações trágicas.
De toda forma, a trágica e prematura partida de Juliana se erige como um pungente lembrete da dimensão humana que, com frequência alarmante, se perde nas engrenagens burocráticas e nas inconsistências estratégicas de nossa política externa.
As lacunas da assistência consular e a letargia de nossa diplomacia pública, expostas sem pudor por este evento, não são eventos isolados, mas reflexos de um Itamaraty que urge por uma reformulação profunda e estratégica, inclusive orçamentária. Não se trata apenas de aprimorar a comunicação, mas de incutir uma visão proativa e empática, capaz de estender um amparo real e adaptado aos desafios contemporâneos enfrentados por cada brasileiro em solo estrangeiro.
É imperativo que este clamor, nascido da dor e da perplexidade, incite uma reorientação profunda dos valores que norteiam a condução dos assuntos externos do Brasil, para que a vida de um cidadão, e não os caprichos ideológicos ou interesses escusos, seja, de fato, a inegociável prioridade de sua diplomacia.
Marcos Degaut é Doutor em Segurança Internacional, Pesquisador Sênior na University of Central Florida (EUA), ex-Secretário Especial Adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e Ex-Secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa
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Conteúdo editado por: Jones Rossi



