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Uma grave seca assolou o Ceará em 1932. Por orientação do governo federal, foram construídos campos de concentração ao longo das duas ferrovias que conduziam do sertão a Fortaleza – o objetivo era capturar os trabalhadores e suas famílias antes que eles conseguissem alcançar a capital. Sete espaços de confinamento erguidos ao longo das estradas de ferro de Baturité e de Sobral mantiveram estimados 150 mil refugiados.
Eles não tinham autorização de sair dos locais designados, a menos que fossem convocados para trabalhar em obras públicas nos arredores. “Normalmente os campos eram planejados para receber de duas a cinco mil pessoas, mas na prática essa previsão acabou sendo fortemente extrapolada. Algumas das instalações chegaram a receber mais de 50 mil flagelados”, relata a especialista em história da arquitetura Laura Belik, em artigo sobre o assunto.
Foi nessa época que a população da comunidade do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto disparou. Instalado na região do Crato (CE), a 500 quilômetros de Fortaleza e a apenas 12 quilômetros de Juazeiro do Norte (CE), o espaço tinha como líder o beato José Lourenço Gomes da Silva, um discípulo direto do Padre Cícero. Era uma oportunidade de trabalhar de forma livre e de viver em comunidade, sem os muros dos campos de concentração.
O Caldeirão havia sido fundado em 1926 e experimentaria então o auge, por cinco anos. Até que, entre 1936 e 1937, o governo do presidente Getúlio Vargas promoveria um massacre, que contou até mesmo com a participação de aviões militares, uma novidade no Brasil da época. A pretexto de conter uma suposta ameaça à ordem pública, o local foi palco do assassinato de entre 400 e mil pessoas – as estimativas variam muito, já que as forças militares nem sequer informaram a localização da vala comum onde os cadáveres foram lançados. Terminava assim, de forma abrupta e violenta, uma experiência de convívio autossuficiente no interior do Nordeste.
Expulsão e recomeço
A trajetória do fundador do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto é sintomática do panorama da região entre o final do século 19 e as primeiras décadas do 20. Nascido em 1872, em Pilões, na Paraíba, filho de escravos libertados e analfabeto, ele fugiu de casa muito jovem e se sustentou trabalhando no campo, manejando gado. Com aproximadamente vinte anos, se mudou para Juazeiro do Norte, em busca de sua família, que havia se deslocado para a cidade em busca de ouvir o Padre Cícero, que já era muito popular.
José Lourenço ornou-se beato. Assumiu o celibato e uma vida de penitência. Passou a se vestir com uma batina de algodão negra e sempre carregar uma cruz às costas e um cordão de São Francisco na cintura, ele passou meses isolado, dormindo ao ar livre ou em cavernas, rezando constantemente. Até que recebeu do mentor a missão de arrendar terras e inaugurar uma primeira experiência de produção agrícola comunitária.
Romeiros de Juazeiro e trabalhadores sem destino eram encaminhados por Cícero ao local conduzido por José Lourenço. Alto, conhecido pela voz tranquila e pela capacidade de agregar os fiéis, ele cumpriu a missão e, entre 1894 e 1926, morou no sítio Baixa Dantas, instalado no município do Crato. O beato era conhecido por zelar pelo bem-estar dos moradores que aceitavam sua liderança.
Em 1915, a comunidade experimentou um salto populacional, resultado de um grave período de seca. Em 1921, José Lourenço chegou a ser preso por 17 dias. O pretexto foi o de incentivar uma suposta veneração a um boi, conhecido como Mansinho. Na verdade, o animal, presente de Padre Cícero, era apenas bem tratado pelos moradores. Mansinho foi sacrificado e esquartejado. Sua carne foi oferecida ao beato, que se recusou a comê-la.
Em 1926, o proprietário do Baixo Dantas, o coronel João de Brito, vendeu o sítio e expulsou os moradores sem aviso prévio. Foi quando o beato se deslocou para o Caldeirão, um local mais discreto e afastado. Ali, a experiência foi reiniciada.
Depois de poucos anos de trabalho, o local já contava com uma capela, dedicada a Santo Inácio de Loyola, fundador dos jesuítas. Também contava com um cemitério e com espaços para produzir farinha e rapadura. Dois açudes construídos no território apoiaram a criação de um vasto pomar, com destaque para a produção de laranja e manga. As edificações eram construídas com barro misturado a óleo de mamona e as ruas tinham nomes de acordo com estados do Nordeste e regiões do Ceará, de forma a facilitar a identificação da origem dos moradores.
No Caldeirão, os rendimentos do plantio eram compartilhados e a comunidade se reunia diariamente para rezar. A prática de autoflagelo também era comum. Circulava, entre os moradores, a crença de que o mundo iria acabar em 1940.
“Meu pai se mudou com a família em 1935, depois que ouviu que o mundo ia acabar. A vida lá era trabalho. De noite ainda rezava”, contou Maria de Lourdes Sales, aos produtores de um documentário produzido pela Assembleia Legislativa local e lançado em 2011. “Lá ninguém recebia dinheiro. Tinha muita fartura, ninguém passava fome”, complementou Antônio Inácio da Silva. “Todo mundo acima de 12 anos trabalhava”, reforçou outro remanescente, Pedro Alexandrino Neto.
De acordo com a tese de mestrado em História apresentada por Maria Isabel Medeiros Almeida à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a fé, naquele contexto, era uma ferramenta para melhorar as condições de vida dos moradores da comunidade: “O catolicismo não é apenas uma religião, mas principalmente uma identidade. Foi a partir das crenças e manifestações religiosas que, no caso do Caldeirão, os sertanejos buscaram construir suas identidades e fazerem-se presentes, em uma realidade em que eles foram esquecidos, renegados e ignorados”.
Massacre impiedoso
A morte de Padre Cícero, em 1934, tirou de cena o principal defensor do Caldeirão. Na sequência, o comando da igreja católica na região do Crato, que já criticava o beato e desaconselhava que ele fosse seguido, tornou as críticas mais veementes. Em 1937, a instauração do Estado Novo no Distrito Federal facilitou a realização de operações militares contra quaisquer atividades que pudessem ser caracterizadas como comunistas.
Com o apoio do Exército, a recém-criada Polícia Militar do Ceará passou a realizar incursões contra a comunidade. A cada ação, dezenas de pessoas eram mortas. Até que aviões militares sobrevoaram o local. O pretexto era fazer um mapeamento pelo alto, mas foram lançadas granadas e metralhadoras foram disparadas. Há controvérsias sobre o uso de bombas. Não sobram dúvidas, entretanto, a respeito do uso do avião para atacar os locais. Em poucos meses, o local estava em ruínas e os fugitivos, caçados.
“O combate aos sertanejos seguidores do beato foi planejado. E pode-se dizer que tudo foi arquitetado da maneira mais cruel e humilhante, com a intenção de destruir e evitar que movimentos semelhantes não ocorressem novamente”, afirma Medeiros em sua tese; “Os sertanejos viram de perto suas casas sento destruídas, anos de trabalho virando cinza”.
Quanto ao beato, ele conseguiu escapar, para Exu, em Pernambuco. Incansável, tentou criar uma nova comunidade, o Sítio União. Mas morreu em 1946, vítima de peste bubônica. Tinha 74 anos e havia dedicado mais de metade de sua vida a formar assentamentos autossuficientes. Seu legado foi varrido para baixo do tapete dos registros históricos oficiais.
Assim como os campos de concentração cearenses, sobre o qual há pouquíssima documentação disponível, a chacina do Caldeirão é marcada pela dificuldade dos historiadores em mapear o passado. Nas últimas três décadas, o incidente passou a ser resgatado, com base em relatos orais e na produção de conteúdo cultural inspirado na história do beato, em especial a literatura de cordel. Um museu está instalado na propriedade onde existira o Caldeirão, onde ainda são visíveis escombros da casa do beato. Um processo foi movido pelas famílias das vítimas, mas a causa não foi adiante por falta de evidências.




