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Em tempos de modismos alimentares e informações desencontradas sobre o que se pode — ou não — colocar no prato, a nutricionista e pesquisadora Sophie Deram propõe um retorno ao bom senso. Francesa naturalizada brasileira e doutora em endocrinologia pela USP, ela defende que a busca pela “alimentação perfeita” acabou nos afastando do prazer de comer e da sabedoria simples das gerações passadas.
Em “Pare de Engolir Mitos” (editora Sextante), Sophie reúne descobertas recentes da ciência da nutrição para desmontar crenças que dominaram o imaginário popular — de que a gordura é uma vilã, o carboidrato engorda e o chocolate dá espinha, entre outras. Com base em evidências científicas e mais de 30 anos de experiência clínica, a autora mostra que a alimentação saudável não depende de dietas restritivas, mas de equilíbrio, prazer e atenção ao corpo.
O trecho a seguir é um convite à reflexão sobre como, ao longo das décadas, o discurso “do que pode e do que não pode comer” se tornou uma forma de vigilância e ansiedade coletiva. Sophie resgata a memória de um tempo em que se comia melhor — não por medo, mas por tradição e alegria.
A sociedade evoluiu e a alimentação também. Hoje contamos com uma oferta abundante de comida higienizada em qualquer supermercado, além de todo tipo de alimento fortificado, enriquecido e suplementado.
O risco de intoxicação ainda existe, mas é pequeno. Comer deixou de ser um perigo real.
Sem a ameaça de agressores externos, o foco passou a ser melhorar a performance individual por meio da alimentação: o que consumir e evitar para ter uma “saúde perfeita”, modelar o corpo ou viver por mais tempo
Quando converso com colegas formadas nas primeiras turmas de nutrição, no final dos anos 1960, muitas contam que o papel do profissional era orientar as pessoas sobre como comer melhor, nutrir o corpo e aproveitar os alimentos com receitas variadas.
Depois a profissão se transformou, e o nutricionista se tornou uma espécie de fiscal de alimentação e peso: é como se tivéssemos sido reduzidos a agentes emagrecedores ou de ganho de massa muscular.
Por volta dos anos 1970, iniciou-se nos Estados Unidos o processo de demonização da gordura, tanto a do corpo quanto a dos alimentos — que posteriormente se espalhou pelo mundo inteiro. Disseminou-se um discurso de que gordura faz mal porque entope os vasos sanguíneos, eleva o colesterol e a pressão arterial e é a principal vilã causadora de obesidade, diabetes e doenças do coração.
Os profissionais de saúde e as indústrias alimentícia e farmacêutica tomaram a frente dessa guerra e desenvolveram produtos sem gordura, diet e light para responder à demanda do público e dos profissionais. Aos poucos, o peso virou um indicador importante para avaliar a saúde das pessoas por meio do índice de massa corporal (IMC) e assim categorizá-las entre saudáveis, com sobrepeso e com obesidade.
Estar acima do peso virou não só um perigo, mas quase um pecado, e o mundo passou a acreditar que ser magro é ser saudável. Curiosamente, foi também nessa época que começou a tal “epidemia de obesidade”. Não é irônico? Quanto mais nos concentramos em evitar a gordura, mais a humanidade engorda.
Demonização de alimentos
Tudo começou contra a gordura, mas ao longo dos anos foram demonizados também os carboidratos em geral, o açúcar, a carne vermelha, o glúten, o leite, os legumes e verduras contaminados por agrotóxicos. Até a água está sendo alvo de alertas!
Parece que tudo que consumimos hoje é potencialmente perigoso. Nosso cotidiano tranquilo e tradicional se tornou um problema, como se precisássemos ter cautela e ser vigilantes o tempo todo sobre o que precisamos comer, esquecendo de vez a sabedoria ancestral das gerações passadas.
No passado, era a vovó quem sabia das coisas e tinha bom senso, especialmente para acolher os problemas, ajudando a relativizá-los e dizendo que iam passar. Hoje a vovó está desatualizada!
O médico, o nutricionista, o mundo da ciência e a indústria sabem mais do que ela. Saber tornou-se mais importante do que sentir.
Me lembro de uma paciente que cresceu no interior de São Paulo com uma alimentação tradicional e bem tranquila: café da manhã com leite de vaca no café com açúcar, pão fresco com manteiga. Aos 16 anos, ela começou a ler revistas de moda e passou a criticar tudo que os pais comiam, alegando que eram alimentos de pouca qualidade cujo consumo estava “ultrapassado”.
Quando chegou ao meu consultório, 20 anos depois de começar a seguir orientações de revistas, estava com 20 quilos a mais, sofria com esse ganho de peso e queria emagrecer. Quando começamos a conversar sobre sua alimentação, ela me contou que seu café da manhã consistia em café com leite desnatado e adoçante, mais torrada pronta light com margarina — ou seja, tudo industrializado.
Aliás, já percebeu como a industrialização dominou o discurso nutricional?
Questionei sua crença de que o café da manhã atual seria melhor do que o tradicional da sua infância. E quando perguntei sobre os pais dela, se também tinham engordado nos últimos 20 anos, ela pensou um pouco e respondeu: “Pois é, continuam com o mesmo peso”.
Terrorismo nutricional
Identifiquei esse terrorismo nutricional pela primeira vez quando fui morar nos Estados Unidos, no final dos anos 1980. Havia uma quantidade enorme de informação circulando em todos os lugares sobre a necessidade de evitar gordura.Era uma verdadeira guerra: tudo era low fat e no cholesterol.
Fiquei nove anos no país e se falava muito sobre nutrição, principalmente sobre o que era preciso evitar. Os americanos são os campeões em produzir informação nutricional e têm a pior saúde do mundo. Deveríamos pensar a respeito, não acha?
Eu não era nutricionista nessa época; era engenheira agrônoma formada em Paris e tinha estudado agricultura, as tecnologias usadas na indústria alimentícia e a composição bioquímica dos alimentos.
Cheguei a Nova York em paz com a comida e me lembro de não ter ficado nem um pouco impressionada com os alertas sobre gordura. Afinal, sou francesa e nossa gastronomia inclui bastante gordura; é o que dá sabor.
Sempre digo: “Se for comer croissant, quero que seja um feito com manteiga, senão prefiro nem comer!” Então continuei passando minha manteiga no pão toda manhã, sem culpa, seguindo esse ritual sagrado para mim.
Convivi com muitos amigos locais e logo me chamou a atenção a relação que tinham com a alimentação, quase sempre baseada em alertas e regras rígidas do que as pessoas deveriam ou não comer. Tudo muito focado na saúde e no conhecimento, mas pouco voltado ao prazer de comer e à satisfação de compartilhar as refeições.
Percebi que minhas amigas educavam e alimentavam os filhos de um modo bem diferente do meu, sempre com um excesso de preocupação, fiscalização e regras. Uma delas, preocupada com a saúde da criança, dava a ela o mesmo jantar todas as noites: espaguete com molho de tomate, almôndegas e um pouco de brócolis.
Não sei se você se lembra (talvez não tivesse nascido), mas nos anos 1990 o brócolis tinha fama de ser capaz de livrar o mundo do câncer (o que não aconteceu).
Outra amiga, que estava sempre na correria e não conseguia se organizar, chegava ao final do dia e encontrava a família com fome e gritando, e acabava jantando fast-food quase todas as noites. As histórias eram assim, oito ou 80: preocupação excessiva ou total falta de consciência e planejamento na hora de fazer as refeições.
Comer era na maioria das vezes um fardo, não um prazer. Diante de tanta confusão, até eu comecei a ter dúvidas: será que preciso dar brócolis e suplementação de gordura ômega-3 e vitaminas para os meus filhos?
Mitos, regras e dogmas
Foi então que decidi voltar a estudar e fazer a graduação em nutrição, para buscar entender melhor a ciência e assim poder ser uma nutricionista que orienta as mães que se sentem perdidas com relação à alimentação dos filhos. Entrei na nutrição com vontade de entender o que é a dieta perfeita e com cabeça de engenheira, em busca de evidências científicas.
O que encontrei me decepcionou e até me confundiu. Deparei-me com diversos mitos, regras e dogmas sem comprovação científica e muitas informações contraditórias acerca do que é “o comer saudável”. Não aceitava decorar conhecimento sem questionar e aprendia muitas coisas que me deixavam desconfortável, com a sensação de que deveria fazer algo para mudar o discurso nutricional equivocado.
Eu amo comer. É um dos maiores prazeres do ser humano. Cresci em uma família que adora celebrar os bons momentos da vida em volta da mesa.
Se me dizem que não devo consumir determinado alimento, quero saber por que e ter provas de que aquilo faz mal. Me perguntam muito sobre a manteiga, então vou adiantar aqui: até hoje não existe nenhum estudo científico que mostre que ela faz mal; não vejo por que parar de consumi-la ou substituí-la por margarina industrializada (que pode ser pior, inclusive).
O excesso, sim, deve ser evitado. Como já disse, até hoje ninguém conseguiu comprovar que existe algum alimento que, por si só, prejudica a saúde ou engorda.
Da mesma forma, não há alimento com o poder de emagrecer, tratar câncer, diminuir celulite… Sempre que encontrar produtos com promessas assim à venda, desconfie. Nada disso existe.
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Conteúdo editado por: Omar Godoy





