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A redescoberta do marxismo pelos jovens rebeldes dos anos sessenta iniciou uma transformação de longo prazo da esquerda, que passou de defensora da classe trabalhadora a lar político das elites profissionais. Como isso foi acontecer? 

O ano de 1968 não tem exatamente a mesma ressonância simbólica nos Estados Unidos como tem em países europeus como a França e a Itália. Mesmo assim, pessoas de ambos os lados do Atlântico geralmente concordam que a turbulência e a transformação social do final dos anos sessenta marcaram uma divisão cultural. Para nós, o que veio antes parece uma época diferente, e o que veio depois é o “nosso” mundo – em termos de ideias, moral, estilo de vida e paixões políticas. 

É interessante como essa divisão não corresponde a nenhum choque real, importante, como uma guerra mundial ou uma crise econômica de larga escala. A guerra do Vietnã, claro, foi importante, mas não explica fenômenos como a explosão da revolução sexual ou o surgimento da Nova Esquerda. Assassinatos políticos nos Estados Unidos e a invasão da Tchecoslováquia foram traumáticos, mas não causaram os protestos estudantis. Mesmo na Europa, 1968 não provocou mudanças políticas radicais comparáveis a 1789 ou 1917. O que ocorreu foi um fenômeno genuinamente cultural. Não pode ser explicado meramente em termos econômicos ou sociológicos, mas nos desafia a compreender as ideias e ideais que moveram seus protagonistas. 

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Esta também foi a conclusão do filósofo italiano Augusto Del Noce, que chamou o ano de 1968 de “o ano mais rico em filosofia implícita desde 1945” e fez dele o tema de ensaios penetrantes (como “A época da secularização”). Ele estava entre os primeiros a perceber o que poderia ser chamado de o “grande paradoxo” da contracultura: o que se iniciou como uma rebelião contra o conformismo burguês e a tecnocracia opressora conduziu, por fim, a uma era de individualismo triunfante e globalização econômica. A redescoberta do marxismo pelos jovens rebeldes dos anos sessenta iniciou uma transformação de longo prazo da esquerda, que passou de defensora da classe trabalhadora a lar político das elites profissionais. Como isso aconteceu? 

Buscando o bem-estar, não a bem-aventurança 

Del Noce certa vez declarou que “1968 foi a revolução burguesa final”. Nos dias de hoje, a palavra "burguesa" saiu de moda e, na maioria das vezes, é lembrada como um termo marxista depreciativo. Contudo, Del Noce acredita que existe algo como um “espírito burguês” agindo na história moderna. 

Unindo a sua voz à do sociólogo francês Jacques Ellul, ele identifica como centro da mentalidade burguesa a ideia de felicidade mundana (ou, mais recentemente, o “bem-estar”) que, a partir do século XVIII, substituiu gradativamente a tradicional ideia de bem-aventurança. Esta última associa a realização plena do ser humano a um “relacionamento correto com o ser”, que seria o Deus judaico-cristão ou então o platônico. Em contrapartida, a mentalidade burguesa acredita na possibilidade de uma felicidade “alheia a este relacionamento”, que, portanto, “torna-se individualizada, presa às sensações, emoções e desejos do indivíduo”. 

Obviamente, a bem-aventurança inclui a felicidade, mas essa perspectiva mais tradicional reconhece que no fim das contas há uma disparidade entre os desejos do coração humano e as realidades mundanas, de modo que a felicidade completa precisa envolver um relacionamento com o Infinito e é, assim, impossível de ser alcançada neste mundo. Em contrapartida, a visão burguesa elimina o “inquietum cor meum” agostiniano – ou o transpõe “horizontalmente” em um ciclo infindável de aquisição e consumo.

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Em um nível histórico, a mentalidade burguesa apresenta a ideia de progresso, baseada na expansão contínua da ciência e da autonomia individual. Em um nível filosófico, ela abraça o instrumentalismo, a atitude segundo a qual tudo, incluindo o conhecimento, é uma ferramenta para buscar a felicidade. O burguês tem a desconcertante capacidade de assimilar qualquer coisa, incluindo a religião, e “considera tudo como se fosse relativamente bom, porque tudo pode ser útil”. Contudo, nada é absolutamente bom ou mau, daí a extrema fluidez do mundo burguês. 

No século XIX e no início do século XX, o espírito burguês coexistiu com o cristianismo (que era “útil”, por exemplo, para fortalecer a ordem social). Mas as duas maneiras de ver o mundo são incompatíveis – a doutrina do pecado original contradiz o “direito à felicidade” e a pessoa como imagem divina impede a sua instrumentalização – e no fim das contas elas tiveram que se separar. 

O marxismo e a sua decomposição 

Segundo Del Noce, o divórcio foi acelerado por um terceiro elemento: o pensamento revolucionário, tipificado pelo marxismo. O marxismo de fato critica a ordem burguesa, mas não em nome de alguma ordem transcendente de valores. Em vez disso, sua crítica é baseada no materialismo histórico, que vê a moralidade e a religião como máscaras que escondem os interesses econômicos. Como o pensamento religioso, no entanto, o marxismo defende um “destino” não-individualista da humanidade, colocando-o no futuro, depois de um evento libertador (a revolução) a ser trazido à tona pela inexorável dialética da história. 

Del Noce aponta que esses dois aspectos, o materialista e o dialético, são contraditórios. Portanto, o marxismo deve se submeter a um processo de decomposição, que marcou a cultura europeia do século XX.

O materialismo dialético marxista revelou-se um sonho impossível (a história não entrou no “reino da liberdade”), mas o materialismo histórico marxista foi muito influente e fomentou o surgimento de uma forma virulenta de relativismo moral que se encaixa muito melhor no capitalismo do que a moralidade burguesa formalmente cristã (kantiana) do século XIX. De acordo com Del Noce, este é um exemplo de um padrão habitual pelo qual o pensamento revolucionário, por causa de seu caráter essencialmente negativo, sempre acaba purificando o espírito burguês de alguns resíduos de tradição. 

Agora conseguimos entender o que Del Noce quis dizer com “a revolução burguesa final”. O movimento estudantil, sem dúvida, começou como uma rebelião contra a sociedade burguesa e, do ponto de vista de Del Noce, “a inquietude e a impaciência dos alunos e a sua desconfiança em relação aos mais velhos são em si mesmos fenômenos positivos. De fato, eles expressam a rebelião da natureza humana contra o processo distintivo – ao mesmo tempo de dessacralização e de desumanização – das duas sociedades ateístas, os marxistas e os abastados”. 

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Infelizmente, uma “confusão trágica” ocorreu: os jovens confundiram a sociedade rica de seus pais com a “tradição” e retornaram à crítica marxista padrão de todo ideal transcendente. Isso garantiu a sua derrota, porque mais uma vez a destruição revolucionária da tradição caiu diretamente nas mãos da mentalidade burguesa, e permitiu que ela se manifestasse em um estado ainda mais puro. A triste trajetória dessa geração foi lindamente captada em um recente ensaio de Sohrab Ahmari. 

Para Del Noce, o símbolo do fracasso dos estudantes é a trajetória filosófica de Herbert Marcuse. Marcuse critica corretamente a “sociedade unidimensional”, mas não consegue abrir mão “das negações metafísicas e teológicas estabelecidas por Feuerbach e Marx”, e dessa forma ele “não pode parar em uma mera crítica da realidade presente como anormal porque seria forçado a iniciar um processo de redescoberta de uma realidade normativa transcendente”.

Ele precisa de uma “nova” revolução. Uma vez que o neocapitalismo neutralizou o proletariado através do consumo de massa, ele precisa imaginar que a “transição para a liberdade será alcançada através da eliminação da repressão dos instintos”. Mas então sua proposta “está destinada a não ser muito diferente, quando popularizada, das teorias de Wilhelm Reich sobre a revolução sexual”. E o que poderia ser mais burguês do que a ideia de felicidade sexual individualizada de Reich? 

Nas palavras de Del Noce: “Nenhuma outra revolução se tornou de tal modo uma ferramenta para seus inimigos quanto a promovida pela filosofia de Marcuse, porque sua única vítima era aquilo que restava da crença nos valores tradicionais que o ‘sistema’ não havia conseguido destruir. Esta tarefa foi levada a cabo quase milagrosamente pela inesperada rebelião [de 1968]. O seu fracasso foi permitir ao neocapitalismo livrar-se da onerosa influência dos valores tradicionais, que até então tinha sido forçado a respeitar”. 

A tese de Del Noce é que, paradoxalmente, a subordinação filosófica ao progressismo revolucionário foi a razão pela qual a contracultura dos anos sessenta, em vez de derrubar a sociedade burguesa, varreu as últimas restrições tradicionais que impediam sua expansão e, por fim, fizeram de tudo, inclusive do corpo humano, “um objeto de comércio”. 

O mundo introduzido pelos revolucionários dos anos sessenta ainda é, basicamente, o nosso mundo.

As pessoas frequentemente notam o papel desproporcional dos “direitos” sexuais na política progressista contemporânea, e a pretensão de que eles sejam pelo menos tão absolutos quanto, digamos, o direito à vida o é em uma perspectiva cristã.

Tal absolutismo moral (que é ainda mais intrigante em um contexto de relativismo ético geral) só pode ser explicado com base em uma convicção profundamente arraigada, essencialmente “religiosa”, de que as pessoas têm direito à felicidade, e de que ela é possível neste mundo, de modo que tudo o que está em seu caminho é um ataque intolerável à personalidade humana.

Se o fim da vida humana é a felicidade mundana, é realmente inevitável que a sexualidade se torne o objeto de expectativas desproporcionais e o foco das aspirações mais profundas das pessoas. 

A infinitude do desejo humano 

Para concluir, podemos perguntar: o que a geração de 1968 poderia ter feito de diferente? Segundo Del Noce, uma revolução antiburguesa bem-sucedida só pode ser religiosa, não no sentido de promover um conjunto específico de doutrinas ou uma tradição particular, mas no sentido de afirmar a infinitude radical do desejo humano – mesmo como único alicerce possível da vida social.

No mesmo ano de 1968, Del Noce descreveu Simone Weil como a “verdadeira rebelde” de nossa época, porque ela reconheceu que “no centro do coração humano, está o anseio por um bem absoluto, um desejo que está sempre lá e nunca é satisfeito por nenhum objeto neste mundo... Esta é a única motivação possível para o respeito universal a todos os seres humanos”. 

Estar presente na vida social e política com plena consciência do alcance real do desejo humano é, eu diria, a maior contribuição que um cristão pode dar ao nosso momento histórico. 

Tradução de Giovani Domiciano Formenton

©2019 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês.
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