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Em 2015 e 2016, durante os protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff, cartazes com “Mais Mises, Menos Marx” ganharam as ruas. Assim como os termos “livre mercado” e “Estado mínimo” apareciam com frequência nos discursos de ativistas. Era algo inédito no Brasil, acostumado à disputa entre a esquerda e a centro-esquerda. Mas, menos de uma década depois, o debate sobre ideias liberais clássicas e libertárias parece ter perdido fôlego sem se traduzir em uma representação política consistente nos espaços de poder.
Essas correntes políticas, que priorizam as liberdades individuais e que com frequência se opõem aos conservadores em temas morais, ou se aproximaram da ala mais conservadora ou acabaram perdendo visibilidade.
O Partido Novo, por exemplo, afastou João Amoedo da presidência e expulsou-o da sigla em 2022 quando ele declarou voto em Lula no segundo turno da eleição presidencial. Desde então, o Novo passou a ser o principal aliado do PL dentro do Congresso Nacional.
O Movimento Brasil Livre (MBL), por sua vez, surgiu como uma organização de jovens ativistas com discurso liberal e anticorrupção e adotou uma trajetória semelhante. O movimento fez oposição ao governo Bolsonaro mas, embora continue crítico ao grupo político do ex-presidente, deixou de lado a defesa de algumas bandeiras identificadas com o liberalismo clássico.
Dentro da política institucional, a ala conservadora parece ser o único grupo capaz de enfrentar a esquerda de forma competitiva.
O libertarianismo perdeu espaço?
Para Rodrigo Constantino, comentarista e colunista da Gazeta do Povo, o recuo do protagonismo libertário é resultado direto da postura idealista e “desconectada da realidade” por parte dos seus defensores.
Segundo ele, na política atual, existem “monstros bem reais”, que estão “ameaçando com pautas insanas o bom senso e o legado da civilização ocidental judaico-cristã, a própria família e valores caros a qualquer indivíduo decente”. Em sua visão, o excesso de abstração e distanciamento da realidade política fez com que esses grupos fossem engolidos pela urgência de disputas mais concretas, como a defesa de valores ligados à família e à civilização ocidental.
Já Raphaël Lima, empresário e fundador do canal libertário Ideias Radicais, argumenta que não houve propriamente uma redução, mas sim uma mudança de foco. Ele lembra que princípios como devido processo legal, liberdade de expressão e igualdade perante a lei são pilares liberais.
“A gente tende a associar liberalismo com economia e esquece que também tem toda uma doutrina política e filosófica ao redor disso”, afirma. Para ele, o que diminuiu foi a centralidade da pauta econômica, já que a criminalidade, a corrupção e o avanço do autoritarismo judicial passaram a ocupar o centro da preocupação pública.
Para o deputado federal Gilson Marques (NOVO-SC), a narrativa de que a esquerda teria assumido as bandeiras liberais nos costumes e a direita ficado apenas com a economia não faz sentido no Brasil. Ele considera que esse raciocínio pode até valer para os Estados Unidos, mas não se aplica à realidade nacional.
Em referência à esquerda, Marques diz: “Eles se tornaram o grupo político que defende censura, controle do discurso autorizado e até prisão de humorista”. Na visão dele, o país não vive uma disputa sobre costumes, mas um embate contra o gigantismo estatal e um sistema político que concentra poder.
O liberalismo na política atual
A pergunta sobre quem ainda representa o liberalismo divide opiniões. Constantino é categórico: o Partido Novo ainda abriga parlamentares de perfil liberal clássico, como Marcel Van Hattem (Novo-RS), mas o MBL, na sua avaliação, se transformou em um grupo “neo-tucano, oportunista e cavalo de Troia da esquerda dentro da direita”. Para ele, o movimento perdeu qualquer ligação genuína com as ideias liberais e hoje não merece crédito político.
O MBL, que surgiu em 2014 como um grupo liberal, ajudou a derrubar o governo de Dilma Rousseff. Mas, já nos primeiros meses do governo Bolsonaro, passou a fazer oposição ao presidente. O grupo perdeu grande parte da influência e, agora, tenta recalibrar sua mensagem com uma pauta que se inspira até mesmo em Nayib Bukele, o presidente de El Salvador que se tornou conhecido pela tolerância zero com criminosos.
Raphaël Lima recusa-se a classificar o MBL como liberal ou conservador, mas enxerga no Novo a principal força de reconstrução de uma tradição liberal no Brasil. Lima ressalta que o partido mantém como espinha dorsal a defesa de instituições sólidas, liberdade de expressão e igualdade perante a lei. Segundo ele o NOVO “parou de ser um absoluto purista” e que agora “aceita pessoas de direita com diferentes ideias para estar no partido”, incluindo aqueles com uma visão mais conservadora. “Até porque historicamente não houve nenhum país com valores liberais que também não tinha valores conservadores”, explica.
Já o deputado Gilson Marques (NOVO-SC) rejeita a ideia de que a legenda teria se tornado mais conservadora nos últimos anos. Ele lembra que, desde sua fundação, a sigla foi pensada para abrigar tanto liberais quanto conservadores, dentro de uma lógica de convergência prática. “Quem discorda de você 20% não é seu inimigo, e sim 80% aliado”, cita, parafraseando Ronald Reagan.
O deputado argumenta que o crescimento do conservadorismo é consequência direta da reação da sociedade ao perceber que está sob ataque. “Estamos há anos sendo bombardeados pela imprensa, o setor artístico e o mainstream político, que chamam de ‘radical’ quem só deseja criar sua família num ambiente seguro”, diz. Para ele, o NOVO abriu as portas para esse público porque todos compartilham o mesmo objetivo: “combater a esquerda e permitir a volta da sanidade para a política”.
A aceitação das ideias liberais
Todos os entrevistados avaliam que a sociedade brasileira está mais receptiva às ideias liberais. Constantino tem a percepção de que “o livre mercado vem ganhando força”, mas lembra que até mesmo no governo Bolsonaro, com Paulo Guedes à frente da economia, havia resistência interna vinda de setores militares mais protecionistas, mais tecnocrata, montada por positivistas militares que não entendiam o conceito de liberdade na economia. “Ainda é incipiente. Temos um longo trabalho à frente para esclarecer as pessoas da importância do livre mercado”, avalia.
Na avaliação de Raphaël Lima há uma contradição no comportamento do eleitor: “O brasileiro adora receber coisas, mas não gosta de pagar imposto”. Segundo ele, revoltas contra aumentos tributários e insatisfação com a inflação mostram que há, sim, adesão difusa a ideias de mercado.
Contudo, o país sofre com a falta de lideranças capazes de traduzir esses conceitos em linguagem popular. “O Bolsonaro tem apelo popular, mas ele não fala disso. Quando ele teve a oportunidade, ele não seguiu esse caminho”, critica Lima. Por outro lado, ele diz que "O centro do Brasil está preocupado com a continuidade da democracia institucional no Brasil, seja com o Lula, seja com o Bolsonaro”, explica. Para ele, seja de maneira legítima ou ilegítima, o tema prioritário do país agora é outro.
Milei e as lições argentinas para o Brasil
A vitória de Javier Milei na Argentina trouxe esperança de renovação para muitos liberais e libertários no Brasil. Mas até agora, o efeito de contágio não se confirmou.
Para Raphaël Lima, o impacto deve ser medido em longo prazo. “O número de pessoas interessadas em o que é libertarianismo subiu.” Ele argumenta que mudanças ideológicas profundas raramente ocorrem em semanas ou meses — são processos que se consolidam em prazos de anos ou décadas. Ele destaca que Milei já conseguiu em poucos meses estabilizar a economia argentina com medidas duras, mostrando que “o impossível pode acontecer” e que o Brasil tem potencial ainda maior de recuperação caso adote reformas radicais.
Constantino, por sua vez, chama atenção para a estratégia política do argentino. Para ele, Milei soube combinar uma agenda econômica de choque com valores conservadores em costumes, como a defesa da vida contra o aborto. “É um povo conservador, o povo de classe média, média baixa. É um povo que não quer saber de agenda Woke, agenda mais radical no individualismo e subjetivismo”, afirma.
Na visão do comentarista, a popularidade do presidente argentino está ligada justamente a essa capacidade de unir as propostas. “Já os libertários brasileiros, na minha opinião, não sabem, não entendem a importância disso”, conclui.
Quanto ao movimento libertário, o deputado Marques sustenta que sua relevância nunca foi tão importante no Brasil. Segundo o parlamentar, há uma geração inteira de jovens sem confiança no sistema de aposentadoria, convivendo com insegurança, impunidade e baixo crescimento devido a décadas de políticas de esquerda que, em sua visão, alimentaram o “monstro estatal”.
O mapa do liberalismo
O liberalismo no Brasil ganhou musculatura a partir dos anos 1980, com a fundação do Instituto Liberal, no Rio de Janeiro, por Donald Stewart Jr. Foi o primeiro think tank dedicado a difundir ideias de livre mercado, traduzindo obras de economistas e promovendo debates.
No mesmo período, surgiu em Porto Alegre o Instituto de Estudos Empresariais (IEE), que criou o Fórum da Liberdade. Até hoje, o maior evento anual de disseminação do pensamento liberal na América Latina e que mobiliza empresários, políticos e jovens ativistas.
Nos anos 2000, a necessidade de um discurso mais moderno deu origem ao Instituto Millenium, com base no Rio e em São Paulo, que buscava aproximar a elite intelectual liberal da mídia tradicional. O Millenium hoje atua como um espaço de formulação de políticas públicas e artigos de especialistas.
Já o Instituto Mises Brasil (IMB), criado em 2007, foi responsável por massificar o pensamento libertário e da Escola Austríaca no país. Com forte presença digital, traduziu livros, publicou artigos e atraiu uma geração de jovens que se firmaram contra o estatismo. Desde os anos 2010, sua influência cresceu junto a canais no YouTube e podcasts, e hoje amplia sua atuação com cursos livres e pós-graduação representando o maior difusor do libertarianismo no país.
Outro ator relevante é a rede de Institutos de Formação de Líderes (IFLs), surgida em Belo Horizonte e replicada em várias capitais. Voltados a jovens empreendedores, os IFLs se tornaram celeiros de lideranças políticas e empresariais. A presença digital do IFL é moderada, mas o impacto em eventos e no networking político é notável.
Em paralelo, o Students for Liberty Brasil (SFLB), braço do movimento internacional, conquistou espaço em universidades, treinando militantes e lideranças estudantis liberais. Sua força está nas redes sociais e na mobilização de base jovem.
Em seguida, nasceram iniciativas como o Instituto Mercado Popular, que tenta aproximar o liberalismo de pautas sociais, e o Instituto Liberal de São Paulo (ILISP), de viés mais combativo, com forte presença em redes como X e Instagram.
Com foco na defesa das liberdades individuais, do livre mercado e de pautas sociais, o LIVRES surgiu em 2016 como uma corrente liberal dentro do PSL, mas rompeu com o partido após a guinada bolsonarista em 2018 e se transformou em um movimento suprapartidário. Ao longo dos anos, ganhou espaço em universidades e em partidos como Cidadania e Rede, apoiando candidaturas alinhadas ao liberalismo progressista.
Esses novos think tanks mostram como o campo liberal se diversificou: de espaços mais acadêmicos e empresariais para movimentos digitais, conectados às batalhas de opinião. O resultado é um ecossistema fragmentado, mas persistente.
O futuro dessas ideias, portanto, dependerá não apenas de coerência programática, mas também da capacidade de conectar-se com os anseios da sociedade.
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