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Aclamação de D. Pedro II em abril de 1831, pintada por Jean-Baptiste Debret. | Wikimedia Commons/
Aclamação de D. Pedro II em abril de 1831, pintada por Jean-Baptiste Debret.| Foto: Wikimedia Commons/

Depois de se debruçar sobre o período colonial, a historiadora Mary del Priore volta para contar como era a vida no Brasil do século XIX: “Histórias da Gente Brasileira - Império” narra como as pessoas comuns viviam no período em que Dom Pedro II reinava e o café girava a economia nacional.

Época de crescente urbanização, a vinda da corte traz um hábito de consumo que até então não existia, assim como os livros, os esportes e as comidas europeias. Ao mesmo tempo, a insatisfação com o governo se mostra em diversos movimentos sociais do sul ao norte do país.

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Professora universitária e autora de mais de 40 livros, Mary del Priore busca em diversas fontes as informações do cotidiano das pessoas brasileiras, revelando uma parte pouco conhecida da nossa história. Em entrevista à Gazeta do Povo, comenta sobre o trabalho de pesquisa para o livro e as relações desses fatos com o Brasil contemporâneo.

A maior parte dos livros de história foca nos grandes acontecimentos, principalmente da política. Você, ao contrário, deixa esses eventos um pouco de lado para focar na maneira com que as pessoas viviam. Qual é seu objetivo? Qual é a importância de se ver a história dessa maneira também?

Exatamente, meu objetivo não é esmagar o leitor com digressões e interpretações, mas convidá-lo a viajar no passado. Por meio de um texto cuidadoso, fácil de ler e cheio de curiosidades, levo-o para o interior das casas, faço-o ouvir as conversas, e ver como viviam nossos antepassados no seu dia a dia. O que comiam, vestiam, como se divertiam, faziam amor ou morriam. A sinergia de culturas que se operou entre nós revela sua riqueza nas pequenas coisas que são deixadas de lado por pesquisadores. Gestos, formas de falar, comportamentos revelam muito do que fomos e do que ainda somos.

Depois de ter começado a coleção com o período colonial, existem mais documentos e escritos durante o Império em comparação com o período anterior? Como isso influenciou na sua pesquisa?

Há tanta coisa interessante para contar que o difícil é escolher em meio a tantos documentos escritos, impressos ou imagens. O século XIX é aquele de grandes transformações tecnológicas: telegrafia, eletricidade, trilhos. O consumo vai ser enriquecido não só por novos produtos de higiene ou culinária, mas também por práticas de lazer novas: os esportes que chegam com os estrangeiros. O mundo do trabalho vai revelar a ascensão de filhos e netos de escravos que se tornam advogados, jornalistas, médicos, políticos ou ricos barões de café, como o Guaraciaba ou o Gê Acayaba de Montezuma. É um momento de grande fervilhamento com a multiplicação de jornais, de festas e confeitarias, de trens levando para o interior as novidades do litoral. Enfim, é um momento em que vemos os brasileiros adotando ou recusando novas modas e comportamentos.

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“A sinergia de culturas que se operou entre nós revela sua riqueza nas pequenas coisas que são deixadas de lado por pesquisadores. Gestos, formas de falar, comportamentos revelam muito do que fomos e do que ainda somos.”

Como você descreveria brevemente a vida desse período no Brasil? Como as pessoas viviam, o que elas faziam?

Há uma grande diferença entre a vida no campo e a vida na cidade. Mas, em ambos, uma luta ferrenha pela sobrevivência e a tentativa de melhorar de vida. Para isso, muita criatividade. O brasileiro é um empreendedor capaz de se movimentar como um peixe na água em situações difíceis. E esse, o século XIX, é um momento em que se observa uma nítida mobilidade social com a diversificação de atividades e o crescimento da cidade. Havia lugar para todo mundo, todos os produtos e todos os consumidores. Da venda de mercadoria na rua às “tendas” ou grandes casas de comércio, em toda a parte ouve-se o fervilhamento de uma sociedade que se quer moderna e melhor. Problemas? Os de sempre. A febre amarela matando aos milhões, desinteresse pela escola pública, e a educação, desigualdade de oportunidades. Observar como soubemos nos integrar às novidades que chegavam do exterior, preservando, ao um caráter tradicionalista e conservador é a chave deste volume sobre o Império. Éramos modernos, na vida pública, desejosos do fim da escravidão e da proclamação da República e arcaicos, no privado, machistas e racistas.

As cidades e as moradias mudam um pouco de aparência nesse período quando comparado ao período colonial?

Mudam muito: ganham novos espaços denotativos da maneira burguesa de viver. Inúmeros quartos, inclusive para costura ou para brincadeiras de crianças. Um escritório para o dono da casa. A construção se afasta da rua, onde passavam bondes e gente pobre, ganham jardins com espécies botânicas vindas da Europa, até os pássaros são substituídos. Troca-se o canto do curió pelo do canário belga. Tudo se “afrancesa”, até a culinária. O peixe ou carne seca com feijão e farinha é substituído por presunto de York e roast-beef. A escrava cozinheira é substituída pelo chef italiano ou francês. A roupa não é mais feita em casa, mas comprada em butiques na Rua do Ouvidor. A higiene ganha com a água encanada e as pessoas começam a se lavar. Nas estantes, livros de autores estrangeiros já publicados no Rio, pela editora Garnier. E mais uma centena de transformações que farão do cidadão do Império alguém identificado com as transformações que se fazem mundo afora.

Família brasileira com escravas domésticas em 1860. Wikimedia Commons

Alguns dos grandes acontecimentos da nossa história aconteceram nesse período, como a Declaração de Independência e a Abolição da Escravatura. Qual o impacto disso para a população?

O processo de emancipação de Portugal teve pouco impacto no cotidiano dos brasileiros, sobretudo, porque os comerciantes nacionais continuavam a sofrer com a concorrência de portugueses, as terras não foram distribuídas aos agricultores pobres e a escravidão não foi abolida. Houve apenas uma transferência de poder político para os grupos que apoiaram D. Pedro I. A abolição se faz tardiamente e para um número muito pequeno de escravos. A maior parte do Brasil já tinha as senzalas vazias, sem contar que algumas províncias como Ceará ou Rio Grande do Sul já tinham determinado a liberdade dos seus. O Brasil já era mestiço e contava com milhares de forros e seus filhos e netos. Os cafeicultores de São Paulo já tinham adotado a mão de obra de imigrantes livres, há muito, e o sentimento de vergonha diante da escravidão era bastante generalizado.

Quais eram as principais demandas e movimentos sociais da época?

Durante o período regencial mostro que houve dezenas de revoltas importantes: da Balaiada à Farroupilha, da revolta dos Cabanos aos malês. Até os anos 40, o Império assistiu a manifestações de descontentamento daqueles que não viram suas demandas recompensadas pela Independência. Na segunda metade, o movimento abolicionista vai abraçar inúmeros cidadãos: desde senhoras que promoviam concertos e palestras ou escreviam em jornais em favor do fim da escravidão, aos militares que ao voltar da Guerra do Paraguai vão se recusar a caçar “escravos fugidos”. Os espíritas tiveram aí um papel importante, pois desde a chegada do kardecismo ao Brasil, seus adeptos farão da luta pela Abolição um objetivo. A Princesa Isabel foi das últimas a entender que podia protagonizar o fim deste horror – mostro isso em outro livro: “O Castelo de Papel”, da Editora Rocco. Mas o Império, apesar dos vários movimentos sociais, foi inegavelmente, o momento de integração dos diversos “Brasís” que existiam dentro do nosso.

560 mil habitantes

foi o crescimento populacional da cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 1872 e 1920.

O que da época do Império é relevante para entendermos o Brasil de hoje?

Jamais saberemos quem somos se não soubermos quem fomos. Toda a nossa história está repleta de informações que nos ajudam a compreender problemas presentes até hoje: a corrupção no Estado, o descaso com a saúde e a educação, a permanência das desigualdades. É apenas preciso democratizar tais informações. E fazê-lo de forma fácil e agradável de ler. Um bom livro de história pode ser lido como um bom romance. A nossa, tem todos os ingredientes para prender o leitor: traições, paixões, violências. O conhecimento do passado não só traz conteúdo e ajuda a pensar, como nos faz melhores cidadãos.

“Um bom livro de história pode ser lido como um bom romance. A nossa, tem todos os ingredientes para prender o leitor: traições, paixões, violências. O conhecimento do passado não só traz conteúdo e ajuda a pensar, como nos faz melhores cidadãos.”

Você começa o livro com a metáfora do oceano (ao olhar o mar de uma praia, as águas são calmas, porém a parte não visível é repleta de correntezas e redemoinhos, revelando um cenário que não é tão calmo quanto parece), dizendo que boa parte do período imperial foi assim. Você acha que isso pode se aplicar ao momento atual do Brasil?

Agora atravessamos um tsunami e as ondas altas estão em toda a parte do mundo. Aumentam as desigualdades, o debate ideológico está esvaziado, atos criminosos enchem as ruas de manifestantes. Há uma dimensão estrutural nos problemas que enfrentamos tanto na economia quanto na política. Combater a miséria e a corrupção é o grande desafio de todos nós, mas como fazê-lo se nossos políticos vivem “DA” política, e não “PARA” a política? Melhorando cada vez mais a educação. Investindo cada vez mais e melhor na escola, na valorização dos professores, do livro e da leitura. E é preciso que isso venha das famílias, de casa, da sociedade. E que não se espere do Estado todas as soluções, pois há séculos ele não as oferece.

Esse é o segundo volume da coleção. Você já pode adiantar um pouco do que veremos no próximo volume?

Grande novidade! Em “República Velha-Memórias”, o leitor terá oportunidade de ver a história do Brasil contada por grandes escritores. De Érico Veríssimo a José Lins do Rego. De Zélia Gattai a Lya Luft. Vali-me de suas memórias para reconstituir um período difícil, atravessado por duas guerras e uma ditadura. Eles nos contam o impacto das várias revoltas, mas, também, a chegada do automóvel, do rádio, do cinema. As modificações no lazer e a ascensão fulgurante do futebol. Nos confidenciam como namoravam, tiveram sua iniciação sexual, casaram e viram morrer seus entes queridos. São outras vozes a contar sobre o passado, que nos aproximam da literatura brasileira. É um livro que nos faz conhecer a primeira metade do século XX, mas nos faz também reler inúmeros talentos de nossa língua.

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