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Yasmine Mohammed: do Islã radical ao ativismo feminista
Yasmine Mohammed: do Islã radical ao ativismo feminista| Foto: Dean Kalyan

Aos quatorze anos de idade, Yasmine Mohammed foi traída pelas autoridades do Canadá. Ou, ao menos, foi assim que ela se sentiu. Violentada e abusada pelo padrasto desde os seis anos, pela primeira vez, a jovem muçulmana pensou ter uma chance de se livrar do “tio” Mournir, o homem que tomara sua mãe como segunda esposa (conforme a tradição islâmica) e implantara na família as duras regras do Islã radical.

A centelha de esperança nasceu quando seu professor de teatro perguntou se “estava tudo bem” com a menina, que andava silenciosa desde que a mãe e o padrasto anunciaram que ela seria enviada ao Egito para se casar ao final do ciclo básico. “Foi como um farol na escuridão. Não escondi nada: mostrei as cicatrizes nos braços e pulsos. Contei sobre os abusos sexuais e agressões” lembra a canadense filha de imigrantes egípcios liberais. A mãe, diga-se de passagem, cresceu sem o véu e, durante os primeiros anos da filha, esbanjava roupas justas e maquiagens. Depois do segundo casamento e da conversão ao fundamentalismo, tornou-se conivente com os castigos. Não apenas os observava calada, como parecia mais preocupada em proteger o marido.

Até que o professor Fabbro, diante do relato da aluna, decidiu levar o caso à justiça; não antes de o “tio” Mournir aparecer aos berros na escola questionando “como ele ousava” ter visto os braços da menina. A polícia canadense e a assistência social foram acionadas, e Yasmine narrou o ciclo de agressões mais de uma vez. Sonhou ir para um orfanato com comida fresca ou para um abrigo de meninas da sua idade, ou mesmo ser adotada por uma família qualquer. Tanto fazia. O plano foi por água abaixo diante do veredito do juiz responsável: como a lei canadense não se opunha à aplicação de castigos físicos, as agressões do padrasto não poderiam ser consideradas crime. Já a forma, a frequência e a intensidade dos castigos certamente eram parte do… Contexto cultural.

Relativismo progressista e traição

Quase trinta anos após o episódio que marcou sua adolescência, Yasmine Mohammed, hoje com 42 anos, publicou por conta própria - após negativas de dezenas de editoras - seu livro “Unveiled - How Western Liberals Empower Radical Islam” (em tradução livre: “Desvelado - Como os progressistas do Ocidente empoderam o Islã radical”), no qual conta sua trajetória desde a infância de maus tratos ao ativismo pela reforma do Islã e pelos direitos das mulheres muçulmanas que, países onde impera a lei da Sharia, ainda são forçadas a usar o hijab (véu que cobre os cabelos) em público, sob o risco de serem presas ou agredidas.

Em entrevista à Gazeta do Povo, Mohammed pondera que há, sim, mulheres que aderem ao hijab como parte da religião e o vestem de bom grado. “O problema está em quem tenta tirá-lo. Repare que não há muita mídia sobre esses casos e você não ouvirá sobre eles com frequência, porque as mulheres estão preocupadas com a própria segurança”, diz a escritora, fundadora da organização sem fins lucrativos Free Hearts, Free Minds, através da qual presta apoio a mulheres muçulmanas e ex-muçulmanas que estejam sob ameaça ou que, ao menos, desejem se libertar da vertente mais radical da fé.

O pontapé para a publicação do livro - cujo subtítulo polêmico rendeu chuvas de críticas - ocorreu em 2017, quando o apresentador de TV americano Bill Maher recebeu em seu programa o neurocientista Sam Harris e o ator Ben Affleck. Depois de Maher e Harris apontarem os problemas enfrentados por países de maioria islâmica por conta do fundamentalismo de alguns líderes, Affleck acusou-os de racismo. “No dia seguinte, no meu Facebook, todos os meus amigos estavam concordando com ele, dizendo que ‘aqueles homens brancos não deveriam falar de outro povo daquele jeito’. Na hora, pensei: ‘pois bem, eu sou mulher, tenho a pele morena, minha família é árabe e islâmica. Se eu disser a mesma coisa, as pessoas terão que me ouvir’”, conta Yasmine.

Em entrevistas de divulgação do livro, a ativista já ponderou sobre a crítica ao relativismo progressista. “Tenho conhecido progressistas que não fecham os olhos para esses crimes. Mas alguns ainda insistem em fazer paralelos desonestos. A comparação que alguns deles fazem entre o Islã e os fundamentalistas cristãos, por exemplo, simplesmente não é justa. Ninguém é preso com aval do Estado por usar um biquíni em um país cristão, ainda que um pastor ou padre desaprove o uso. Você pode viver uma vida difícil sendo gay em uma família cristã fundamentalista, mas pode sair de casa e se casar com alguém, pode conversar com seus pais sem o medo de ser morto pela lei”, explica.

A respeito do apoio feminino, a ativista reitera a sensação de “traição”. “Quando as mulheres nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra lutavam por progresso, não havia mulheres de outros países atrapalhando. Nós já temos que lutar contra a extrema-direita e seus fundamentalistas, é cansativo e parece uma traição quando também temos que lutar contra pessoas que deveriam estar do nosso lado”, acusa Yasmine que, pelo Twitter, continua a ser chamada de racista por feministas que defendem o relativismo cultural.

Fuga do Egito

O histórico de agressões e eventos traumáticos que constitui a experiência da escritora com o Islã radical não se encerra com a entrada na fase adulta: ao ser “legalmente” devolvida à família pela justiça canadense, Yasmine se mudou para o Egito com a mãe e o padrasto, que voaram de volta para o Canadá no meio da madrugada deixando a jovem aos cuidados de parentes não menos tirânicos.

A fuga do norte da África para a América do Norte não melhorou sua situação: sem nenhum dinheiro e sob as constantes agressões da mãe, Yasmine aceitou um casamento arranjado com um homem desconhecido, um muçulmano radical que mal falava inglês e que tampouco lhe poupava de tapas, gritos e humilhações cotidianas. “Minha esperança é que o casamento desse errado e ele me dispensasse. Mulheres divorciadas são mal vistas no Islã, como se estivessem gastas. Ao menos, eu seria livre”, ela lembra.

Vez ou outra, Yasmine o ouviria gritar “9-11”, sem entender muito bem do que se tratava. Seu único alívio foi o nascimento da filha, de quem cuidava como sua única esperança para a formação de laços saudáveis.Foi “graças” a uma emergência de saúde da mãe que pôde sair de casa pela primeira vez sem o marido. E, na sala de estar do hospital, foi abordada por agentes do Serviço Canadense de Inteligência de Segurança (CSIS), a “CIA canadense”, que lhe revelaram que o cônjuge era, na verdade, um experiente terrorista membro da Al Qaeda, acusado de estar diretamente envolvido nos planos de Osama Bin Laden nos Estados Unidos.

O 11 de setembro (a razão pela qual o marido gritava “9-11”, como ela se daria conta anos depois) seria crucial para que Yasmine abandonasse de vez o islamismo e pedisse proteção legal para si e para a filha. Ambas trocariam de nome para continuar a viver no Canadá, onde Mohammed ingressou na universidade e se debruçou no estudo da religião de sua família. Decidiu aposentar o hijab e, ao fazê-lo, foi ameaçada de morte pela mãe, com quem não fala desde então.

Deu-se aí o início de sua caminhada de autodescoberta. “Eu me sentia pelada sem o hijab. Desde criança, era ensinada que, se saísse sem ele, seria vista como uma prostituta ou seria estuprada”, lembra a escritora, que se recorda da primeira vez em que recebeu, tremendo, um entregador de pizza em casa, sem estar com o rosto coberto. “Tinha certeza de que ele invadiria minha casa e ele nem olhou na minha cara”, diverte-se.

Natal

Atualmente, Yasmine é professora de pedagogia em uma universidade canadense e revelou à Gazeta do Povo que, em breve, dará um curso online na Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI). A ativista, hoje, declara-se ateia e feminista, mas ressalta que mantém amizades com muçulmanos. “Eu não quero que ninguém abandone a própria fé. Quero que ninguém seja obrigado a seguir preceitos religiosos por força do Estado ou da violência imposta pelos próprios religiosos”, diz Mohammed, defensora da reforma do Islã.

“Há, sim, homens e mulheres muçulmanos que evoluíram. Muitos deles resistem à violência. Mas enquanto houver teocracias nas quais a religião é imposta à força, sem um esforço institucional de combater os radicais, mulheres terão sua genitália mutilada, LGBTs serão mortos e praticantes de outras religiões serão decapitados nesses países”, avalia.

Para unir mulheres muçulmanas que desejem se reconhecer e se apoiar nas redes, Mohammed criou a campanha #FreeFromHijab e #NoHijabDay, promovida anualmente no dia 1º de fevereiro. Até esta segunda-feira, no Instagram, a hashtag foi mencionada cerca de 3 mil vezes. As fotos exibem meninas com os cabelos de fora, com um “antes de depois” da vestimenta. Algumas, relata a ativista, escondem o rosto com o emoji. Outro artifício é o uso do hijab branco às quartas-feiras, utilizado por meninas residentes em países onde não se pode sequer sair de casa sem cobrir a cabeça. Os longos cabelos escuros de Yasmine, hoje, estão sempre soltos, bem como o das duas filhas de 24 e 12 anos - a segunda fruto de seu segundo casamento com um canadense. Todos os anos, em sua casa, há espaço para celebrar o Natal.

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