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Promessa eleitoral

Aposta de Lula em passagem gratuita de ônibus repete modelo fracassado

Passe livre
Estudo mostrou que idosos não deixaram de andar de carro mesmo com passe livre nos ônibus. (Foto: Tânia Rego / Arquivo / Agência Brasil)

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Dentro do chamado “kit reeleição” de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a proposta de implantar a tarifa zero no transporte coletivo em todo o Brasil tem potencial para se transformar na principal bandeira eleitoral do presidente em 2026. Porém, fora o custo elevado da proposta – algo próximo de R$ 90 bilhões anuais custeados pelos cofres públicos – a ideia de oferecer passe livre com passagens de graça para reduzir os congestionamentos e melhorar o trânsito nas cidades parece ter fracassado. 

É o que indica um estudo realizado por pesquisadores do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), da USP e das universidades federais da Bahia e de Pernambuco. O trabalho, publicado em uma revista científica, mostra que assim que garantem o acesso aos ônibus de forma gratuita, os idosos – público estudado na pesquisa – não deixam de andar de carro. 

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Idosos deixaram de andar a pé e continuaram com o carro apesar do passe livre 

A pesquisa leva em conta 11 levantamentos amostrais nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Campinas, Brasília, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Fortaleza entre os anos de 1997 e 2019. O número de viagens entre os idosos aumentou 7,1% assim que eles deixaram de pagar a passagem. Por outro lado, as caminhadas que eram feitas para cobrir esses trajetos caíram 8,2% entre esse público. 

Na prática, aqueles idosos que costumavam ir a pé até destinos próximos, como padaria, mercado ou outros pontos de comércio e serviços passaram a usar o ônibus gratuito nestes deslocamentos. Por outro lado, naqueles trajetos maiores, que já eram feitos majoritariamente de carro, não houve essa troca mesmo com a passagem grátis. 

E é aí que está a descoberta mais surpreendente do estudo. É o que avalia o professor Renato Schwambach Vieira, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (Fearp-USP). 

Em entrevista à Gazeta do Povo, o professor afirmou que esses dados derrubam um dos principais argumentos dos defensores do modelo de passe livre, que é o impacto potencial que a medida teria na quantidade de carros e motos nas ruas. O tema, inclusive, é um dos pontos centrais do manifesto do movimento Tarifa Zero, que defende “um Brasil sem catracas”

“A ideia central é que se há o subsídio para o transporte público, é possível tirar as pessoas dos carros. Isso criaria um incentivo para que essas pessoas se tornem passageiras do transporte coletivo. Mas o que essa pesquisa mostra é que essa substituição praticamente não acontece”, explicou. 

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Apesar de o estudo focar em um público formado apenas por idosos, Vieira não descarta a ocorrência desta mesma realidade em todas as faixas etárias. Segundo ele, há estudos com outros públicos adultos em diversos países do mundo, como Chile, Alemanha e Espanha, que mostram resultados coerentes com os da pesquisa dele.

“Cientificamente, eu não posso extrapolar os dados deste estudo. Só que esses outros levantamentos, feitos com populações mais amplas, ajudam a completar esse cenário. Há muitas evidências apontando que o valor da tarifa não é uma variável importante para a substituição do carro pelo ônibus”, completou. 

Modelo pode abrir portas para a insegurança 

Além de ser um modelo com alto custo de financiamento e poucos resultados práticos, a adoção do passe livre universal ainda pode abrir literalmente as portas dos ônibus para a insegurança. A falta de tarifa pode aumentar a presença de usuários de drogas e de criminosos que usam o transporte coletivo para o cometimento de delitos. 

“Existem literaturas sobre isso nos Estados Unidos. Lá existem programas de subsídio a populações carentes no transporte público. É uma realidade diferente da nossa, já que no Brasil não há cidades de grande porte com essa gratuidade. Eu não sei de nenhuma evidência nesse sentido na realidade brasileira, mas imagino que isso seria algo que poderia acontecer por aqui”, concluiu Vieira. 

Um dos estudos citados pelo professor da USP mostra que muitas pessoas em situação de rua recorrem ao transporte público em busca de abrigo bem como para moradia temporária. Essa situação ficou ainda mais grave durante a pandemia de Covid, quando algumas empresas aplicaram o modelo de tarifa zero. 

De acordo com um estudo feito nos EUA e publicado em 2022, a gratuitade na passagem aumentou o número de moradores de rua no transporte coletivo. Entre aquelas empresas que seguiram cobrando a passagem regularmente, esse fenômeno não foi registrado. 

Em outro estudo norte-americano os pesquisadores apontam que, apesar dos potenciais benefícios para os passageiros de baixa renda, a tarifa zero no transporte coletivo pode estar associada à criminalidade a bordo dos trens e ônibus. Empresas que operam com programas de tarifa zero relataram problemas com passageiros se recusando a desembarcar do transporte público, e potencialmente, usando as viagens em loop para cometerem ilícitos. 

Em um dos casos, uma empresa identificou que os crimes relacionados ao transporte público aumentaram 40% durante o primeiro ano de seu programa de tarifa zero. Neste período, usuários do serviço notaram que os veículos de transporte público se tornaram menos limpos e mais inseguros devido ao aumento da criminalidade. 

Passe livre foi descontinuado em cidades dos Estados Unidos 

Com a pandemia, o governo de Joe Biden nos Estados Unidos passou a financiar programas que ofereciam tarifa a custo zero em algumas regiões do país. Mas, cinco anos depois, algumas cidades deixaram a gratuidade de lado.

Em Kansas City, no estado americano do Missouri, o modelo de passe livre universal foi abandonado em abril deste ano. Uma portaria do conselho municipal reduziu os horários de circulação dos ônibus e diminuiu o público apto a utilizar o benefício. Para os outros passageiros foi definida uma tarifa de US$ 2 pela passagem. 

A mesma situação foi registrada na região metropolitana de Raleigh, na Carolina do Norte. Por lá, várias linhas de ônibus se tornaram gratuitas durante a pandemia. A cobrança da passagem, porém, vem sendo retomada aos poucos desde 2024. 

Em Nova York, algumas linhas de ônibus que circulavam sem a cobrança de passagem em Manhattan, Bronx, Queens, Brooklyn e Staten Island perderam a gratuidade recentemente. Durante os nove meses de duração do programa, o passe livre teve um custo de US$ 12 milhões. As autoridades disseram que o programa não foi eficaz o suficiente para justificar o preço. 

Modelo de passe livre precisa resolver três questões essenciais 

Rafael Pereira, coordenador de Ciência de Dados do Ipea e coautor da citada no início da reportagem, disse à Gazeta do Povo que os principais defensores do passe livre universal têm uma abordagem equivocada sobre os principais problemas do modelo. Para ele, a oferta universal de viagens gratuitas passa por três questões que demandam soluções isoladas, mas que não raro são vistas como uma coisa única por quem não é familiar com o setor de transporte coletivo. 

A primeira diz respeito ao financiamento do modelo. Em média, as empresas de transporte coletivo recebem 30% de subsídios do governo para a manutenção do serviço. Esse índice pode ser ainda maior, uma vez que o sistema vem paulatinamente perdendo passageiros enquanto os custos se mantêm. 

Para fechar a conta, é preciso injetar dinheiro do orçamento público no sistema. Afinal, como reforçou o pesquisador do Ipea, “da mesma forma que não existe almoço grátis, não existe passagem grátis. No fim do dia, alguém vai ter que pagar por isso, nem que seja por meio dos impostos”. 

A segunda é a falta de transparência na prestação de contas das empresas junto às prefeituras. De acordo com Pereira, há diversos municípios nos quais não há um controle formal sobre como é formado o valor da tarifa técnica. São comuns, segundo ele, os casos de falta de auditorias apuradas sobre os números de passageiros dessas empresas, o que pode impactar no valor do cálculo. 

Para o pesquisador, a oferta de recursos federais só tende a piorar o problema, que tem potencial para ser eliminado com uma revisão dos contratos e a adoção individualizada de ferramentas de verificação e transparência. O papel do governo federal, nesses casos, poderia ser o de oferta de técnicos e pessoal para colaborar nessa reestruturação dos contratos entre empresas e prefeituras. 

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Por fim, o desenho do subsídio precisa ser definido entre os extremos. Se por um lado baratear os custos do transporte se tornou uma necessidade urgente, por outro é preciso definir com precisão quanto será essa redução e quem terá acesso ao benefício. 

“Quem defende o passe livre quer que seja adotado o modelo universal. Mas nós temos estudos aqui no Ipea mostrando que seria mais viável focar esse benefício só em quem precisa. E como filtrar isso? Por meio do Cadastro Único. É uma base de dados que se mantém atualizada e que concentra os dados de famílias em situação de vulnerabilidade”, ponderou Pereira. 

O Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal é um instrumento que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda. Aquelas famílias que possuem renda mensal por pessoa de até meio salário mínimo, R$ 759, ou renda familiar total de até três salários mínimos, R$ 4.554, são consideradas de baixa renda pelos critérios do governo federal. 

Pesquisador defende cobrança proporcional como alternativa ao passe livre 

Outro a defender um modelo alternativo ao passe livre universal é o professor Luis André Fumagalli, pesquisador em Gestão Urbana da PUC-PR. À Gazeta do Povo, ele afirmou que uma das possibilidades seria a chamada “uberização” do transporte coletivo, onde o passageiro pagaria apenas pelo trecho viajado. 

“É como o free flow do pedágio, e já funciona em alguns lugares como no Japão. A pessoa compra o bilhete e paga uma tarifa de acordo com a estação de origem e a de destino. Isso possibilita uma desoneração importante para aqueles que realmente têm no ônibus e no metrô a única possibilidade de locomoção, principalmente de longas distâncias”, ponderou. 

Fumagalli aponta outra questão que impacta diretamente no volume de passageiros do sistema de transporte coletivo. Para ele, há uma percepção comum entre os brasileiros, e que se estende para a América Latina, de que andar de ônibus “é transporte de pobre”. 

“Sair desse meio de transporte é visto como uma conquista para muitas pessoas. Ela pode ter financiado um carro em cinco anos, com juros mensais de 5%, e ainda assim achar que ‘venceu na vida’ por não andar mais de ônibus”, comentou. 

Para professor da USP, ônibus de graça é como rodovia sem pedágio, mas esburacada 

Por isso, melhorar o sistema de transporte coletivo, com ônibus mais seguros e confortáveis, linhas mais adequadas à realidade dos passageiros, com maior frequência em horários de maior demanda, tem muito mais potencial para atrair novos usuários do que apenas e tão somente oferecer o passe livre. 

Para o professor da USP Renato Vieira, esta é uma situação semelhante à das rodovias com e sem pedágio. Nem sempre – ou quase nunca – a opção gratuita é a melhor. “É como comparar uma estrada ‘grátis’, mas toda esburacada, com outra que tem um custo, mas que oferece uma série de benefícios”. 

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