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Como Trump pode ajudar a direita do Brasil na luta pela restauração da liberdade

Jair Bolsonaro e Donald Trump se encontraram na Casa Branca em 2019.
Jair Bolsonaro e Donald Trump se encontraram na Casa Branca em 2019. (Foto: EPA/CHRIS KLEPONIS / POOL)

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Nas duas primeiras partes deste ensaio, tratei dos princípios que informam a estratégia do governo Trump visando à reindustrialização dos Estados Unidos por meio de reestruturação tarifária e desvalorização controlada do dólar norte-americano vis-à-vis outras moedas fiduciárias e do processo deflagrado pelos múltiplos “tarifaços” de Trump, suas possíveis consequências e limitações, bem como teci comentários sobre o futuro do estatuto do dólar como moeda global de reserva.

Nesta seção final, discorrerei sobre como essa reorientação estratégica dos EUA afeta o Brasil, enfatizando que a dimensão geoeconômica (ou seja, o “tarifaço”) das tensões entre Brasília e Washington é de importância menor –  dir-se-ia mesmo complementar – comparada às divergências fundamentais de natureza política e ideológica que existem não apenas entre os governos Trump e Lula, mas também entre os establishments brasileiro e norte-americano e suas respectivas visões de mundo.

Duas visões sobre a tarifa de Trump

Desde a divulgação da carta de Trump a Lula estabelecendo a tarifa de 50% sobre os produtos brasileiros exportados para os EUA, têm prevalecido, tanto nos meios decisórios quanto na imprensa (geral e especializada) e na comunidade de analistas políticos, duas leituras que são antagônicas somente na aparência.

A primeira, alheia ao enquadramento mais amplo das tarifas que deverão ser aplicadas ao Brasil, defende a via negociadora, a exemplo do que fizeram dezenas de outros países afetados por tarifas anunciadas pelo governo dos EUA, como Japão, México, Indonésia e Vietnã. A segunda, algo emocional e sem respaldo na real relação de forças, preconiza a via retaliatória, diluída no jargão diplomático de “reciprocidade” e ancorada em um instrumento jurídico interno, a Lei de Reciprocidade Econômica, bem como por meio de recurso a outros relevantes parceiros econômico-comerciais do Brasil (como a União Europeia) e à Organização Mundial do Comércio (OMC).

Ambas as táticas, isoladas ou combinadamente, são inúteis, pois partem da premissa de que a tarifa de 50% anunciada por Trump ocorre em um contexto essencialmente comercial, similar àqueles que, por exemplo, informam as tarifas anunciadas contra produtos japoneses, mexicanos ou filipinos. Não é o caso, e o fato de o anúncio da tarifa ter constado de uma missiva cujos parágrafos introdutórios abordavam um tema político, relacionado à supressão da liberdade de expressão e de condições para um processo eleitoral transparente e livre em 2026, não deveria ter escapado à maioria dos analistas e jornalistas que discorrem sobre o tema.

Além disso, a circunstância de que os EUA detêm superávit comercial de bens e serviços com o Brasil (superior a USD 410 bilhões no acumulado dos últimos 15 anos), longe de ser um erro factual ou de tipografia, como provincianamente levantado por autoridades, jornalistas e analistas, corrobora o entendimento de que Washington vê o atual governo brasileiro como antagonista estratégico não apenas no plano da atuação diplomática, mas também como uma entidade liberticida, censora e policialesca que suprime – mediante a distorção da aplicação das leis, do atropelo do Congresso, da condenação e da prisão de opositores políticos e do aparelhamento do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Procuradoria-Geral da República (PGR), entre outros expedientes – forças políticas conservadoras e democráticas que despontam como favoritas nas eleições previstas para ocorrer em outubro de 2026.

Há, nesse contexto, duas visões de mundo inconciliáveis. A da esquerda, autodenominada “progressista”, representada pelo consórcio lulopetismo/STF, hostil aos EUA e ao Ocidente, busca instrumentalizar o BRICS e outros grupos/instâncias para erodir a agência norte-americana e a hegemonia do dólar. Na ausência de uma grande estratégia, franqueia setores da economia nacional ao capital chinês, indissociável das amarras que o prendem à cosmovisão do governo de Pequim.

E mais, numa sequência de atos tresloucados, se aproxima, a troco de nada, da Rússia (aqui não me refiro à dimensão comercial das relações bilaterais entre Brasília e Moscou), doando capital político a um autocrata responsável pela mais ampla agressão militar havida na Europa desde a invasão da União Soviética pela Alemanha nazista, em 1941. No que tange à guerra promovida pela Rússia na Ucrânia, trata a vítima (a Ucrânia) como se fosse o algoz, o que está refletido tanto na pouco convincente dubiedade dos pronunciamentos oficiais brasileiros sobre o conflito desde 2023 quanto na profusão de bobagens e mentiras resultantes da mais recente Cúpula do BRICS, realizada no Rio de Janeiro, no início deste mês.

No âmbito das frentes de conflito no Oriente Médio, o governo Lula se posiciona de maneira explicitamente hostil a Israel, único país democrático da região (ademais de importantíssimo parceiro brasileiro nas áreas militar e de inteligência), e endossa o regime pária e programaticamente genocida do Irã. Doméstica e externamente, o consórcio lulopetista/STF age para cercear a liberdade de expressão e instrumentalizar empresas de tecnologia para servir aos seus propósitos autoritários.

A direita conservadora, por sua vez, reflete a visão majoritária da população brasileira, americanófila e ciente do pertencimento essencial do Brasil ao Ocidente. Defende a manutenção de relações estreitas com Israel, por razões sobretudo práticas, sem alienação de outros parceiros comerciais do Brasil no Oriente Médio. No que diz respeito às relações com a China, prevalece o entendimento, nos círculos próximos ao ex-presidente Jair Bolsonaro, quanto à necessidade de reavaliação estratégica das prioridades e principais linhas ativas entre os respectivos governos e estruturas econômicas.

À direita não interessa a deterioração das relações comerciais entre o Brasil e a Rússia, particularmente no que se refere à nossa dependência circunstancial de fertilizantes, insumos para fertilizantes e diesel de origem russa, mas tampouco se subscreve a oferta gratuita – e contraproducente –, pelo Brasil, de capital político a Vladimir Putin, ou se tenciona continuar incorrendo no comportamento repulsivo, esposado pelo governo Lula, de ora equivaler as posições morais de Moscou e Kiev, ora tratar a Ucrânia como corresponsável pela invasão de seu próprio território ou, ainda, condenar suas operações retaliatórias contra o agressor russo.

O que busca a direita brasileira

Doméstica e externamente, a direita conservadora visa a eleger um presidente da República e a constituir um governo com maioria parlamentar que reflita os anseios e valores da maioria da população brasileira, amante da liberdade em seu sentido mais amplo, dos valores democráticos, do respeito pleno às liberdades individuais, da aproximação do Brasil de governos e sociedades para os quais tais axiomas são igualmente importantes.

Infiro que, em termos gerais, o processo decisório em Washington leve em conta, ademais de outros elementos que escapam ao objeto de análise deste ensaio, o cotejo destas duas visões de mundo, bem como o fato de que o consórcio que ora manda no Brasil busca prevalecer por meio da criminalização de seus adversários políticos e do estabelecimento, institucional ou não, da verdade como uma função chancelada pelo Estado.

Também a circunstância de que a supressão da liberdade no Brasil é rechaçada pela maioria da população brasileira decerto não escapa aos decisores norte-americanos, que veem na conjunção entre a manifestação do apoio da maioria da população brasileira à direita e a significativa identidade de propósito dos valores dessas forças políticas direitistas com os interesses dos Estados Unidos um fator que legitima a ação de Washington com o propósito não de desrespeitar a soberania brasileira, e sim impedir que o consórcio liberticida suprima definitivamente a liberdade e o primado do Estado de Direito no Brasil.

A mim me parece ser à luz da comparação dos elementos acima expostos que convém entender a atual crise entre Brasil e Estados Unidos, que é não apenas a mais significativa nos 201 anos de relacionamento bilateral como provavelmente também a de maior expressão da História Diplomática do Brasil. Não se trata de situação em que uma potência hegemônica (EUA) busca restringir a autonomia estratégica de uma intermediária (Brasil), como querem fazer crer certos jornalistas chapa-branca, apparatchicks que fazem as vezes de analistas e áulicos genéricos do governo Lula, e sim de um conjunto fundamental de divergências as quais, cumpre salientar, só foram elevadas por Washington à condição de pedra-de-toque da relação bilateral em razão tanto da natureza liberticida do consórcio lulopetismo/STF quanto de sua falta de apoio e legitimidade populares (já que, no atual estágio de deterioração institucional do Brasil, a distinção entre o que é legal ou ilegal tornou-se basicamente uma manifestação de vontade dos ministros do STF).

Tampouco procede a leitura segundo a qual os Estados Unidos estariam atentando contra a soberania brasileira, o que tem sido feito pelo consórcio lulopetismo/STF, seja por meio do atropelo das atribuições constitucionais do Congresso Nacional, seja pela promoção da subserviência diplomática do Brasil aos interesses de potências autoritárias, entre outros.

Creio, portanto, que o repúdio do presidente Donald Trump e de seu governo à abjeta perseguição política travestida de devido processo legal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro se insira nesse enquadramento estratégico mais amplo, o qual poderá ter o condão de restaurar o primado do Estado de Direito no Brasil e reconduzir as relações entre Brasil e EUA à normalidade.

Washington, naturalmente, tem interesses de natureza estratégica e econômica, sem prejuízo de outros, no Brasil, os quais a esquerda tenta, falaciosamente e sem muito êxito, qualificar como essencialmente opostos aos interesses brasileiros e atentatórios à soberania nacional. Na atual conjuntura, os interesses da maioria do povo brasileiro no que respeita ao restabelecimento da liberdade e dos princípios que informam o Estado de Direito coincidem, em considerável medida, com aqueles que orientam a grande estratégia dos Estados Unidos sob a presidência de Donald Trump.

É principalmente por tais razões que infiro seja difícil estimar a extensão dos instrumentos dos quais o governo dos Estados Unidos poderá se valer para impedir a conversão do Brasil em um satélite autoritário, uma espécie de Venezuela ou Nicarágua de dimensões continentais. É tarefa complexa até mesmo aquilatar os entraves de longo prazo que a consolidação de um regime autoritário multigeracional no Brasil traria para os interesses norte-americanos na América do Sul e na América Latina, de modo que não se deve esperar do governo Trump (e de futuros governos norte-americanos) passividade similar às demonstradas por George W. Bush e Barack Obama diante da transformação da Venezuela em uma ditadura bolivariana, sem falar no duro processo de reconstrução dos pilares da sociedade brasileira, submetida pelos governos PT a décadas de deterioração moral e econômica.

Que não haja dúvida: o foco de decisores, analistas e jornalistas sobre o tema puramente tarifário de crise entre Brasília e Washington equivale a tomar a árvore por toda a floresta. A abrangência dos interesses, mesmo para os EUA, extrapola sobremaneira a dimensão puramente comercial, e é, para o Brasil, uma questão existencial, pois um processo eleitoral em 2026 ainda mais viciado e manipulado que o de 2022 muito possivelmente lançará o País em um regime ditatorial multigeracional em alguma medida similar ao da Venezuela, já há 26 anos sob o chicote do socialismo bolivariano. Incumbe, portanto, às forças internas – sobretudo a maioria oposicionista nas duas Casas do Congresso e a população – estabelecer categoricamente a deturpação falaciosa empreendida pelo consórcio lulopetismo/STF visando a qualificar a deterioração das relações bilaterais com os EUA como uma consequência do “atentado à soberania” brasileira,  assim como pavimentar o caminho para a necessária alternância de poder que impedirá a consolidação de regime de exceção ora em avançada fase de implementação no Brasil. Tenho esperança de que, ao fim e ao cabo, a liberdade e a verdade triunfarão.

Marcos Degaut é doutor em Segurança Internacional, Pesquisador Sênior na University of Central Florida (EUA), ex-secretário especial adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e ex-secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa.

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