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Na última semana de novembro, os passageiros que circularam pelo metrô de Nova York encontraram uma campanha publicitária aparentemente inofensiva, mas que poderia ter sido feita por Joseph Goebbels (1897–1945), o ministro da propaganda durante a Alemanha nazista.
Os anúncios espalhados pelas estações de metrô continham frases como “Tenha o seu melhor bebê”, "O QI é 50% genético" e “Esses bebês têm ótimos genes” apontando para uma página que em português seria traduzida por “escolha seu bebê ponto com”. Imagens de bebês sorrindo estampavam os vários anúncios em destaque em um dos locais mais movimentados do mundo.
O regime de Adolf Hitler não escondia o interesse em “melhorar a raça” do povo alemão. Com o fim da Segunda Guerra, de forma geral, a busca pela "melhoria" dos embriões foi deixada de lado, junto com a proposta eugênica da ditadura nazista alemã.
Mas, passados oitenta anos da queda de Hitler, a evolução dos testes genéticos, combinada com a tecnologia de reprodução in vitro, parece ter ressuscitado algumas tendências perigosas.
Teste para cor dos olhos, altura e QI
A empresa do anúncio é Nucleus Genomics, uma startup norte-americana voltada à análise genômica e ao uso de algoritmos preditivos aplicados à fertilização in vitro.
A lógica é relativamente simples: no processo de fertilização in vitro, são gerados múltiplos embriões (com frequência, o número chega a oito). A maioria não será implementada no útero.
Diante de múltiplas possibilidades, algumas empresas calcularam que podem lucrar com os gostos dos pais endinheirados. A proposta da Nucleus, que não está sozinha neste mercado, é realizar relatórios genéticos detalhados para municiar de informações os casais que realizam fertilização in vitro.
A lista de características mapeadas pelo teste genético da Nucleus inclui quase 2.200 itens. A maior parte deles é de doenças. Na página, em destaque, estão palavras como "doença de Alzheimer", "câncer de mama" e "artrite". Mas também é possível ver itens problemáticos como "altura", "cor dos olhos", "QI", "calvície" e "IMC", o índice que mede a obesidade.

Segundo o site da empresa, o procedimento começa com a produção de múltiplos embriões e segue para a coleta de algumas células de cada um deles, que passam por análises de sequenciamento. Essas análises incluem tanto exames tradicionais para doenças hereditárias monogênicas quanto modelos baseados em milhares de variantes genéticas ponderadas, conhecidas como “pontuações de risco poligênico”.
Essas pontuações indicam a chance que uma pessoa tem de desenvolver, no futuro, certas doenças complexas — como diabetes ou problemas no coração — e também de apresentar características influenciadas tanto pela genética quanto pelo ambiente.
A empresa afirma que, ao comparar embriões gerados por um mesmo casal, é possível apontar aquele com menor predisposição estatística a certos problemas de saúde. De acordo com os materiais de divulgação, o método ajudaria os pais a tomar decisões mais bem informadas sobre qual embrião implantar para a gestação e quais descartar.
Ainda assim, segundo pesquisadores entrevistados pela imprensa internacional, grande parte dos dados foram extraídos a partir de populações com ancestralidade predominantemente europeia, reduzindo a precisão para indivíduos de outros grupos. Eles também frisaram que algumas características como altura, massa corporal ou indicadores cognitivos sofrem forte influência ambiental e não podem ser previstas com grau elevado de confiabilidade.
A legislação de Nova York
Apesar de entidades médicas dos Estados Unidos ressaltarem que essas técnicas ainda são experimentais e recomendarem cautela, do ponto de vista legal a seleção genética de embriões é regulada por um conjunto de normas fragmentado. No país, não há uma lei federal que impeça a realização de testes genéticos pré-implantação para finalidades que não sejam estritamente médicas.
Em cada estado, a regulamentação depende principalmente de diretrizes de organizações profissionais, de padrões adotados por clínicas de reprodução assistida e, quando existem, de leis locais.
Em Nova York, procedimentos de fertilização in vitro e exames genéticos relacionados precisam seguir regras de biossegurança, direitos do paciente e consentimento informado, mas não há nenhuma proibição clara que impeça a comparação entre embriões usando scores poligênicos.
A falta de leis específicas faz com que o setor funcione sobretudo com base na autorregulação das clínicas e nas orientações de sociedades científicas. Documentos recentes do American College of Medical Genetics and Genomics orientam que profissionais deixem claras as limitações desses scores, ressaltando que eles não são capazes de determinar características complexas. O motivo é que a expressão genética, em alguns casos, pode não ocorrer, dependendo dos hábitos alimentares e estilo de vida do indivíduo em questão.
Relembre o que foi a eugenia nazista
A ideia de “melhorar” a população por critérios foi um dos pilares das políticas implementadas por Adolf Hitler na Alemanha. O regime defendia que existia uma “raça ariana” superior e que o Estado deveria fortalecê-la, ao mesmo tempo em que impedia a reprodução de quem era considerado “indesejado”.
Em 1933, o governo aprovou a Lei para a Prevenção de Descendência com Doenças Hereditárias, que autorizou a esterilização compulsória de pessoas com deficiência intelectual, transtornos psiquiátricos, epilepsia, cegueira e outras condições classificadas como hereditárias. Tribunais especiais decidiam, com base em relatórios médicos, quem poderia ou não ter filhos. Cerca de 400 mil pessoas foram esterilizadas durante o período nazista.
Ao mesmo tempo, casamentos entre judeus e alemães foram proibidos pelas Leis de Nuremberg. Programas como o Lebensborn incentivavam mulheres consideradas “arianas” a terem mais filhos, com apoio financeiro e benefícios sociais.
A política eugenista atingiu seu ponto mais extremo com o programa Aktion T4, iniciado em 1939. Sob autorização direta de Hitler, médicos passaram a selecionar pessoas com deficiência física e intelectual para serem assassinadas em instituições estatais. Milhares foram mortos por gás, injeções letais ou fome. Estima-se que 200 mil pessoas tenham sido vítimas dessa política, que continuou mesmo após ser oficialmente suspensa em 1941.
Propaganda e discriminação racial
A propaganda nazista buscava convencer a população de que essas medidas eram necessárias para o futuro da Alemanha. Filmes, cartazes e palestras apresentavam pessoas com deficiência como “peso para o Estado” e exaltavam famílias consideradas “racialmente saudáveis”. O envolvimento de médicos e cientistas deu aparência de legitimidade à violência praticada.
Após a guerra, os Julgamentos de Nuremberg revelaram a extensão dessas políticas e levaram à criação de normas éticas internacionais, como o Código de Nuremberg. O caso nazista tornou-se referência mundial sobre os perigos de usar argumentos biológicos para justificar discriminação, controle reprodutivo e violência estatal.
Por isso, a presença dos anúncios no metrô causou estranhamento entre pessoas familiarizadas com a história da eugenia. Embora os contextos sejam distintos (os programas eugenistas do início do século XX envolviam coerção estatal e violações sistemáticas de direitos humanos), a popularização de ferramentas que promovem escolhas baseadas em características genéticas pode reintroduzir práticas de exclusão de vidas consideradas menos valiosas.






