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O escândalo que gerou revisão nas regras para doação de órgãos nos EUA

Paciente recebe rim transplantado em Budapeste, na Hungria: caso nos EUA gerou debate sobre normas para doação de órgãos.
Paciente recebe rim transplantado em Budapeste, na Hungria: caso nos EUA gerou debate sobre normas para doação de órgãos. (Foto: EPA/BALAZS MOHAI HUNGARY)

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A disposição de milhões de pessoas em todo o mundo de doar seus órgãos após a morte é um imenso gesto de generosidade que, no entanto, não consegue suprir a escassez de órgãos para transplantes. Ocorre que nem sempre há tempo ou se reúnem todas as condições para recuperar em bom estado essas vísceras, uma vez falecida a pessoa por parada cardíaca ou morte cerebral.

A existência dessa necessidade, entretanto, não deve levar a ignorar os protocolos para determinar o momento da morte e, assim, intervir às pressas no futuro doador. Mas alguns já acalentam a ideia de fazer ajustes conceituais e legais para que pacientes em coma irreversível possam ser tratados como fonte imediata de órgãos.

Essa proposta foi levantada recentemente por três médicos do hospital nova-iorquino Northwell Health, em artigo no New York Times. Segundo eles, seria preciso “ampliar a definição de morte cerebral para incluir pacientes em coma irreversível com suporte vital. Com essa definição, tais pacientes estariam legalmente mortos”, afirmam, independentemente de que, após retirar o suporte vital e deixá-los falecer, uma máquina lhes restabelecesse o batimento cardíaco para que voltassem a ter fluxo sanguíneo e os órgãos permanecessem em bom estado.

Os autores fazem questão de esclarecer, aliás, que não foram eles que tiraram essa rara – e macabra – ideia da cartola. Como explicam, já no final dos anos 1960, quando o Comitê de Ética Médica de Harvard publicou um relatório definindo a morte cerebral como a perda irreversível da consciência e de todas as funções encefálicas (o que implicaria ausência de resposta a estímulos, falta de movimentos, de respiração, de reflexos e um eletroencefalograma plano), a própria comissão teria eliminado do rascunho uma referência à “grande necessidade de tecidos e órgãos de pessoas em coma irremediável para restaurar a saúde de quem ainda pode ser salvo”.

“Essa avaliação franca", dizem os signatários no Times, "foi eliminada do relatório final devido à objeção de um revisor. No entanto, é a que deveria orientar as políticas sobre morte e órgãos hoje em dia.”

Claro que, se a obtenção do órgão para transplante passar a ser vista como um incontestável “bem maior”, nenhum reparo ético impediria persegui-la, ainda que o possível doador em coma irreversível – mas não em morte encefálica – demonstre sinais de desconforto durante o procedimento de extração.

O caso Hoover

Onde prevalece o “quanto mais, melhor” e se declara, de forma equivocada e precipitada, a morte, podem ocorrer, de fato, cenas muito lamentáveis.

Em outubro de 2021, o norte-americano Anthony T. Hoover, de 33 anos, morador do Kentucky, foi levado de urgência ao hospital local após um colapso cardiovascular decorrente de uma overdose de drogas. Na unidade de terapia intensiva, foi declarado em morte cerebral – não apresentava atividade neurológica; não tinha reflexos e seus olhos fitavam o vazio. Quando a situação foi comunicada à família, esta autorizou a retirada do suporte vital, mas não foi a equipe médica que o fez, e sim membros da organização de transplantes Kentucky Organ Donor Affiliates (KODA), que informaram à irmã que o paciente constava no registro de doadores.

Segundo testemunhos, durante a preparação do corpo (barbeado e desinfetado com uma solução, como etapa prévia à cirurgia de extração), Hoover começou a reagir. E, quando lhe realizaram um cateterismo cardíaco, ordenado pela KODA para avaliar se o coração estava em condições de ser doado, o paciente começou a se contorcer de dor. Uma funcionária da KODA, a conservadora de órgãos Natasha Miller, afirmou ter visto lágrimas no rosto do “falecido”, e que a cirurgiã do hospital, encarregada de extrair os órgãos, “entrou, olhou para ele e disse: ‘Não, não vou fazer isso. Ele tem muitas funções’”. Miller recorda que outra integrante da organização ligou para seu chefe a fim de informá-lo do que estava acontecendo, mas a resposta dele, muito irritado, foi mandar que encontrasse outro médico para atestar a morte de Hoover – o que, felizmente, não ocorreu.

Hoje, embora com algumas sequelas, o homem vive, cuidado com dedicação por sua irmã, e frequentemente se pergunta, com profunda tristeza, por que queriam matá-lo.

O sistema espanhol, a salvo do modelo utilitarista

Que se aja de forma precipitada e se tente modificar os conceitos para considerar o paciente em coma irreversível como morto pode gerar preocupação entre os futuros doadores, pelo receio de serem mutilados ainda em vida.

Os protocolos na matéria devem observar uma série de passos invioláveis e uma rigorosa separação de funções entre a equipe médica e a organização responsável pela gestão dos transplantes, a fim de evitar interferências prejudiciais. Nesse ponto, o modelo espanhol, administrado pela Organização Nacional de Transplantes (ONT) e considerado um dos mais avançados do mundo (são realizadas cerca de 2.300 doações e quase 6.000 transplantes por ano), estabelece na norma que regula o tema (RD 1723/2012) uma delimitação necessária: os profissionais que diagnosticarem e certificarem a morte “deverão ser médicos com a qualificação adequada para essa finalidade, distintos daqueles que irão intervir na extração ou no transplante, e não estarão sujeitos às instruções destes últimos”.

Da mesma forma, a norma estabelece que só poderão ser obtidos os órgãos da pessoa falecida “mediante diagnóstico e certificação da morte realizados em conformidade com o disposto” no referido decreto. Isso implica, no diagnóstico de morte por critérios circulatórios e respiratórios, a constatação “de forma inequívoca” e durante não menos de cinco minutos, da ausência de circulação e de respiração espontânea.

No caso de outro diagnóstico – o de morte por critérios neurológicos (morte encefálica) –, deve-se verificar a existência de um coma de causa conhecida e irreversível, mas também é necessária “evidência clínica ou por neuroimagem de lesão destrutiva no sistema nervoso central compatível com a situação de morte encefálica”. (Na Espanha, 48% dos explantes se dão nesses casos e 52% após o cessar da função cardiorrespiratória.)

A questão, em síntese, é respeitar a “regra do doador cadáver” (RDD), que exige assegurar-se plenamente de que o doador está morto, o que evita que o processo de preparação para a extração dos órgãos ou a própria extração acabem sendo a causa do falecimento — como quase aconteceu com o Sr. Hoover e como ocorreria caso prosperasse a ideia dos médicos do Northwell Health em relação a pacientes em coma irreversível. Trata-se, aliás, de uma perspectiva atualmente defendida por muitos bioeticistas que, com enfoque marcadamente utilitarista, propõem formas hipotéticas de obtenção de órgãos que não colocam em primeiro plano o bem do doador, inserindo tais propostas em revistas de impacto na tentativa de que ganhem aceitação.

Mas isso não aconteceu. Como explica à Aceprensa o Dr. José M. Álvarez Avello, especialista em Anestesia e Reanimação da Clínica Universidade de Navarra, “a extração de órgãos de pacientes em coma profundo e irreversível, neste momento, não é aceita pela comunidade científica nem considerada por nenhum dos grandes países que possuem programas de transplante”.

“Tirem meu nome da lista!”

Nos Estados Unidos, o caso Hoover teve ao menos duas consequências. A primeira, que muitas pessoas se retiraram dos registros de doadores por não se sentirem seguras com o sistema. A segunda, que levou o Departamento de Saúde a ordenar uma investigação, a qual concluiu que a equipe da KODA não havia feito uma avaliação correta nem reconhecido funções neurológicas no paciente que inviabilizavam a operação.

Também constatou que os “procuradores de órgãos” não haviam colaborado com a equipe médica principal e, de certa forma, haviam assumido um papel que não lhes cabia. Quando a equipe do hospital insistiu que o paciente estava vivo e que, se prosseguissem, estariam praticando “uma eutanásia”, os representantes da KODA responderam que não seria nada disso.

A investigação governamental foi além e detectou irregularidades em outros casos administrados pela organização: de 351 situações examinadas, determinou-se que 103 apresentavam “características preocupantes”, como problemas na obtenção do consentimento das famílias para a doação, rigidez na tomada de decisões ao interagir com as equipes médicas e dificuldade em reconhecer funções neurológicas nos pacientes.

O problema, entretanto, ultrapassa os limites de Kentucky, razão pela qual a Casa Branca ordenou uma reforma do sistema de transplantes em nível nacional. Outra investigação, realizada pelo New York Times em vários estados, reuniu testemunhos sobre as pressões exercidas pelas organizações de procura de órgãos (OPO), que possuem contratos federais para coordenar transplantes e que, por isso, buscam ativamente doadores em fase de morte circulatória.

“Alguns (hospitais) permitem que as OPO influenciem nas decisões sobre o tratamento”, diz o jornal, ao qual 53 profissionais de saúde de 19 estados confessaram ter presenciado “ao menos um caso perturbador de doação após morte circulatória”. Os entrevistados afirmaram ter visto “coordenadores persuadindo médicos do hospital a administrar morfina, propofol e outros medicamentos para acelerar a morte de possíveis doadores”.

Enfim, uma delimitação de funções falha, uma aplicação caótica dos protocolos e uma inversão de prioridades que, em outros lugares, como a Espanha, é impensável… enquanto não se imponha um enfoque utilitarista. Assim, viva você em Cádiz, em Vitória, em Sabadell ou em qualquer ponto da geografia espanhola, ninguém o incomodará enquanto lhe restar o mínimo fio de vida.

Após a eutanásia, doação?

Na Espanha, uma nova modalidade de doação — a que ocorre após a morte da pessoa por um procedimento de eutanásia (PAM, “prestação de ajuda para morrer”) — foi integrada ao sistema que regula o explante e o transplante de órgãos. Para esses casos, a ONT conta com um protocolo de atuação, ao qual a Comissão Deontológica do Colégio Oficial de Médicos de Madrid apresentou várias objeções, entre elas a questão de se uma pessoa cuja saúde está gravemente comprometida estaria realmente em condições de se tornar doadora.

“Trata-se de pacientes que atravessam uma fase crônica ou terminal de sua enfermidade, o que implica uma considerável carga de problemas e sofrimento em seu entorno. Portanto, a pergunta subjacente é se este momento é apropriado para considerar a possibilidade de uma doação eutanásica”, alerta um dos membros da Comissão.

O protocolo da ONT, além disso, nega a possibilidade de objeção de consciência aos profissionais encarregados da extração de órgãos e da coordenação de transplantes nos casos de pessoas eutanasiadas, já que, segundo a organização, estes não estariam “diretamente implicados” na PAM. A esse respeito, a Comissão reivindica que “não se discrimine os profissionais de saúde que tomarem essa decisão e que continuem tendo a oportunidade de trabalhar e colaborar” em diferentes níveis do sistema nacional de transplantes.

© 2025 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol: Donación de órganos: “Te doy mi corazón (pero espera que me muera)”.

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