
Ouça este conteúdo
A alma humana não suporta viver em contradição constante com a ideia do bem. Experimente fazer algo que você julga absolutamente mau. Você não vai se suportar. Por isso o pecador consciente começa a contar uma história para si mesmo. Monta um teatro íntimo, inventa uma justificativa que o faça parecer uma exceção à regra, ou uma vítima do sistema. O viciado em pornografia dirá: “Nasci em uma cultura promíscua. Se eu não fosse habituado desde cedo à devassidão, não estaria assistindo a estes vídeos!” A ideia é que, invariavelmente, quem pratica o mal sabendo que o faz, tenta conservar uma imagem positiva de si mesmo.
Os comunistas, por exemplo, para justificar o assassinato, precisam desumanizar o inimigo. É um truque antigo: retirar da vítima sua personalidade e substituí-la por um símbolo abstrato do mal. Assim, o “burguês” deixa de ser uma pessoa real, com suas virtudes e vícios particulares, e passa a ser apenas o “explorador”. A partir desse momento, qualquer atrocidade cometida contra ele já não parece um crime, mas um “ato de justiça” (não foi assim que a esquerda comemorou o assassinato de Charlie Kirk?).
O Estado capitalista, do qual o rico faz parte, é pintado como uma “ditadura burguesa”, cuja única função seria perpetuar a exploração do trabalhador. E se todo o sistema é uma violência estrutural, então a violência revolucionária seria uma “resposta legítima”. Percebem a lógica? Eles acusam a ordem vigente de ser uma ditadura para instaurar outra ditadura, mais cruel e totalitária, chamada “ditadura do proletariado”.
Mas não entenderemos a mentalidade da maioria dos revolucionários se olharmos apenas pelo prisma teórico. A mentalidade popular não se forma com tratados filosóficos, mas com músicas, novelas, filmes, influenciadores. A doutrinação que antes exigia estudo e disciplina (leitura de Marx, Engels, Gramsci, Lukács, Marcuse, Adorno, Horkheimer) hoje chega simplificada em batida de rap. Quer entender o imaginário revolucionário do brasileiro? Escute Racionais. Ali está tudo condensado: em Vida Loka Parte II, o bandido é elevado à condição de “Bom Ladrão”; em Mil Faces de Um Homem Leal, Marighella aparece como apóstolo de uma nova fé revolucionária.
Vamos começar por Vida Loka, onde Dimas é exaltado como modelo de homem. Mas quem foi Dimas? Durante a crucificação de Jesus, dois criminosos foram pregados ao Seu lado, um à direita, outro à esquerda. Dimas, o “Bom Ladrão”, é lembrado como o primeiro homem a entrar no Paraíso junto a Cristo. Mas note bem: ele não foi salvo por ser vítima da sociedade. Foi salvo porque confessou o próprio pecado. Ele reconheceu sua culpa e se voltou para Cristo.
Na tradição cristã, não há espaço para a autojustificação. Não há “culpa coletiva”, nem ideologia redentora. O mal não vem de fora: nasce do coração humano. Os dois ladrões representam duas posturas arquetípicas diante do pecado: o orgulho que se recusa a admitir a própria culpa (e, portanto, se fecha à graça), e a humildade que reconhece a própria miséria e se abre à conversão.
Mas o imaginário revolucionário inverte a simbologia. Dimas é uma “vítima do sistema”. Seus crimes deixam de ser fruto do pecado e passam a ser interpretados como reações legítimas contra a injustiça social. Cristo, por sua vez, deixa de ser o Redentor das almas e torna-se um libertador das massas. A salvação, que antes era um ato interior de arrependimento, transforma-se numa utopia coletiva, material e ideológica. Por isso, Dimas é exortado:
“A Dimas, o primeiro
Saúde, guerreiro!
Dimas, Dimas, Dimas”
Fica evidente, portanto, que boa parte do debate público entre direita e esquerda se resume a uma disputa simbólica: afinal, o bandido que justifica seus crimes é Dimas ou Barrabás? Na letra de Racionais, o marginal é elevado à condição de quem é salvo, enquanto o policial, representante do sistema, é associado aos algozes de Cristo: “Enquanto Zé Povinho / Apedrejava a cruz / E o canalha, fardado / Cuspiu em Jesus.” O simbolismo é claro: o criminoso torna-se mártir; a autoridade, vilão.
Em Mil Faces de Um Homem Leal, o “mártir, mito ou sonhador” escolhido é Marighella. Ele é alçado à condição de herói. E quem, afinal, foi Marighella? Um militante leninista, autor do Minimanual do Guerrilheiro Urbano, cujo propósito declarado era fomentar a luta armada, instaurar um regime comunista no Brasil e ensinar o uso do terrorismo e das emboscadas contra policiais. Em suas próprias palavras:
“O objetivo principal da emboscada é de capturar as armas e castigá-los [os policiais] com a morte. (…) O objetivo é de eliminar o inimigo e tomar suas armas. As emboscadas têm efeitos devastadores no inimigo, deixando-o nervoso, inseguro e cheio de temor.” Sobre o terrorismo, Marighella dizia: “Hoje, ser violento ou terrorista é uma qualidade que enobrece qualquer pessoa honrada, porque é um ato digno de um revolucionário engajado.”
Sem um trabalho de conscientização que vá além da “alta cultura”, sem um esforço de interpretar os símbolos correntes na nossa cultura, milhares de Barrabás continuarão sendo chamados de Dimas. Ou melhor: acreditando que são Dimas.




