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Protesto contra passaporte vacinal
Manifestantes fazem protesto contra passaporte da Covid em Gijón, Espanha, janeiro de 2022.| Foto: EFE / Begoña Marco

Um novo artigo publicado na revista de bioética Journal of Medical Ethics concluiu que a exigência da dose de reforço contra Covid-19 nas universidades é “antiética”. Os nove autores, que são médicos e bioeticistas afiliados a 11 instituições em três países — Canadá, Estados Unidos e Reino Unido —, fizeram uma análise de custo-benefício da dose e concluíram que os danos superam os benefícios. Além disso, os autores pensam que a inoculação obrigatória para fazer matrícula, exigência atual em muitas universidades brasileiras, viola o princípio da reciprocidade e causa danos sociais amplos.

Para cada hospitalização impedida pela dose de reforço, concluíram, são gerados 18,5 eventos adversos das vacinas de mRNA. Esses eventos incluiriam até 4,6 inflamações do coração e seu revestimento em jovens do sexo masculino, que tipicamente levam a hospitalizações. Além dos eventos adversos, cada benefício de evitar uma hospitalização com a dose seria contrabalançado também por até 4.626 efeitos colaterais que interferem nas atividades cotidianas, como dores no corpo.

As vacinas obrigatórias “têm consequências sociais prejudiciais e estão erodindo a confiança em instituições científicas e governamentais”, dizem os autores. Em maio deste ano, eles informam que no mínimo 1.000 instituições de ensino superior nos EUA exigiram a vacinação contra Covid-19, e 300 exigiram a dose de reforço. A controvérsia está especialmente nas doses de reforço, a respeito das quais há uma “falta de evidências” de que reduzam de forma significativa a hospitalização entre adolescentes e jovens adultos saudáveis, além de “evidências crescentes que a infecção prévia generalizada confere proteção significativa contra a hospitalização devido à (re)infecção”. Ou seja, a imunidade natural poderia tornar essas doses supérfluas.

Dano líquido 

Os pesquisadores reconhecem que os riscos da Covid variam de acordo com idade, comorbidade e sexo. Sua análise tem foco em jovens adultos que constituem a maioria dos afetados pelas exigências e “passaportes vacinais” das universidades.

Eles lembram que a maioria dos países fora da América do Norte não implantaram obrigatoriedade das doses de reforço para universitários. Nos Estados Unidos, as principais agências governamentais que tratam do assunto são o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) e a FDA (Administração de Alimentos e Drogas). Em julho de 2021, ambas disseram que as doses de reforço não eram necessárias. Dois meses depois, um comitê de conselheiros da FDA decidiu, por 16 votos contra 2, que era contrário à dose de reforço para jovens saudáveis. Mas essa recomendação foi atropelada pela Casa Branca e pelo CDC, levando dois especialistas de longa data a abdicarem de seus cargos na FDA.

Há uma escassez, diz o estudo, de análises de custo-benefício que respeitem critérios mínimos de rigor. As disponíveis não têm dados de segurança suficientes e, dos dados usados pelo CDC, está faltando uma atualização que leve em conta a imunidade natural e o novo quadro estabelecido há um ano pela variante ômicron, menos letal que as anteriores. Às vezes, a imunidade natural é levada em conta só para ser excluída como um fator de confusão na análise da eficácia da dose de reforço, como foi feito pelo CDC em uma publicação de junho. Em suma, faltam dados sobre jovens, e — avisam os pesquisadores — sobre as crianças também.

O CDC tem sido negligente em produzir números salutares, como o “número necessário para causar danos” — uma medida epidemiológica que indica quantas pessoas precisam ser expostas a um risco até que uma seja prejudicada. Para adolescentes do sexo masculino, uma análise de Hong Kong calculou que este número é 2.563 para duas doses da vacina de mRNA. Com base nos riscos, o Reino Unido, Noruega, Taiwan e Hong Kong mudaram sua política para uma só dose para o grupo. Os Estados Unidos e o CDC continuaram insistindo em dose de reforço.

Os autores do estudo fizeram sua própria análise custo-benefício das vacinas de mRNA para jovens entre 12 e 17 anos e adultos entre 18 e 29 anos. Em suma, essas vacinas têm 18 vezes mais chances de causar um evento adverso sério (como miocardite) do que de evitar hospitalização no grupo. Nos rapazes entre 18 e 24 anos, a terceira dose da Pfizer tem quase quatro vezes mais chances de inflamar o coração e seu revestimento do que de evitar hospitalização. Em outra amostra com homens dos 18 aos 39 anos, são 4,6 mais chances.

Quanto às outras complicações menos sérias que a miocardite, mas que ainda afetam a vida cotidiana, a terceira dose de mRNA é 1.429 vezes mais propensa a causá-las que a evitar hospitalizações. Para pessoas que já tiveram Covid e se recuperaram, é ainda maior: 2.340 vezes.

O argumento ético 

O filósofo liberal John Stuart Mill argumenta, em seu clássico ensaio sobre a liberdade, que autoridades só podem impor coerção sobre um indivíduo em nome de prevenir danos em outros, jamais para obrigar o indivíduo a fazer algo “para seu próprio bem”. Mill pensa que outras coisas podem ser feitas, como tentar persuadi-lo, mas a coerção é imoral. O argumento é conhecido como princípio do dano. Traduzido para o contexto das vacinas, isso significaria que as inoculações obrigatórias estariam justificadas em nome de proteger a população parando a transmissão no indivíduo.

Em larga escala, porém, as vacinas contra Covid já mostraram não serem eficazes contra a infecção. Segundo o IHME (Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde da Universidade de Washington), a eficácia contra infecção pela ômicron é de 24% para a Coronavac, 36% para a AstraZeneca e para a Janssen, 44% para a Pfizer e para a Sputnik, e 48% para a Moderna. Contra doença severa, suas eficácias são todas próximas ou maiores que 60%, com exceção da Coronavac, com apenas 37%. Nesse caso, o “próprio bem” do indivíduo existe, mas a baixa eficácia contra infecção e transmissão sugere que o princípio do dano não deveria ser usado para justificar doses obrigatórias.

Um fator sempre ignorado pelo autoritarismo sanitário é, também, a eficácia da imunidade natural adquirida de infecção prévia. Em fevereiro deste ano, o CDC fez uma estimativa de que 64% dos adultos entre 18 e 49 anos apresentavam anticorpos adquiridos com a infecção. Cinco meses antes, eram 30%. Agora, deve ser uma maioria absoluta. Os pesquisadores dizem que “evidências mostram cada vez mais que a infecção prévia com [o vírus] SARS-CoV-2 fornece proteção clínica ao menos similar (e talvez mais duradoura) que as vacinas atuais”. Nos valiosos estudos do Catar, vacinação sozinha e infecção sozinha tiveram igual eficácia contra a doença grave: acima de 70%. Em uma amostra, a infecção prévia se mostrou melhor contra doença grave: 91% para imunidade natural contra 66% de duas doses e 83% de três doses.

Ainda assim, os passaportes vacinais das universidades ignoram a proteção da infecção prévia. Uma exceção foi a Dinamarca, cujo passaporte aceitava imunidade natural. Agora, o país decidiu que vacinar crianças contra Covid-19 não é uma política eficaz e não mais recomenda essa vacinação para a maioria das crianças. Similarmente, o Reino Unido hoje recomenda que as doses de reforço sejam só oferecidas, não impostas, aos grupos de risco.

Além disso, a proteção que é ganhada com uma dose de reforço decai rapidamente. A eficácia contra hospitalização cai a menos de 50% após três ou quatro meses. Contra a doença sintomática, decai após meras dez semanas. Em pessoas que tiveram infecção prévia, a proteção fica indistinguível da imunidade natural em poucos meses.

O primeiro autor da análise é Kevin Bardosh, afiliado à Faculdade de Saúde Pública da Universidade de Washington (EUA) e à Faculdade de Medicina da Universidade de Edimburgo (Reino Unido). A líder do estudo foi Beth Høeg, que atua na empresa de pesquisa de dados clínicos Acumen e no Hospital Memorial de Sierra Nevada, na Califórnia.

Os autores encerram o artigo expandindo seu argumento ético contra as doses de reforço obrigatórias nas universidades em cinco pontos: transparência, enfatizando a falta de análises como a deles para deixar o público tomar suas próprias decisões; o dano líquido em potencial esperado para cada indivíduo, que é o resumo da análise custo-benefício e deve dar munição para indivíduos se defenderem do autoritarismo sanitário; a falta de proporção no benefício público à saúde da obrigatoriedade; a falha de reciprocidade, pois os indivíduos prejudicados pela obrigatoriedade não estão sendo adequadamente compensados por isso, quando a responsabilidade é de quem os forçou; e danos sociais mais amplos que envolvem a perda de confiança na ciência e nas instituições, pois o autoritarismo foi aplicado em seu nome.

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