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A fé cristã não é subjetivista ou ilógica

A Adoração dos Pastores, pintura de Anton Raphael Mengs (c. 1764).
Detalhe de "Adoração dos Pastores", pintura de Anton Raphael Mengs (c. 1764). (Foto: Reprodução/National Gallery of Art)

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Certo dia, um cético me perguntou: qual é a diferença entre acreditar em Cristo e acreditar em fadas? Para ele, toda fé seria uma atitude subjetiva, ou melhor, subjetivista, sem ligação alguma com a objetividade do mundo. Mas reduções desse tipo nascem da falta de cultura filosófica. Não digo isso por pensar ingenuamente que todo filósofo seja cristão (de fato, muitos não o são, especialmente na era moderna); digo isso porque negar algo com honestidade intelectual exige compreender as categorias que se está rejeitando, e não recusar uma realidade tomando outra como referência. Em referência à fé cristã, ela não surge de uma fantasia individual nem de uma criação literária, como no caso das fadas, mas de um fato histórico: o nascimento de Jesus. Não acreditar n’Ele não é apenas distinguir imaginação e realidade, ou discordar de uma ideia, mas não acreditar em uma pessoa.

Primeiro, há os que não acreditam simplesmente porque não gostam. E, convenhamos, se alguém de quem você tem repulsa moral ou intelectual dissesse que é Deus, a reação mais natural seria chamá-lo de impostor. Foi exatamente assim que fariseus, saduceus e escribas acusaram Jesus: de enganar o povo de Israel e agir de forma ilícita. Reparem que não se trata de rejeitar uma ideia, como quando discordamos de Hegel ou Kant, mas de acusar uma pessoa real. 

Depois, há aqueles que admiram Jesus como figura histórica, reconhecem o impacto positivo que Ele trouxe à civilização, mas não creem n’Ele como Deus. Para esses, C. S. Lewis propôs um trilema interessante, segundo o qual é incoerente reduzir Jesus a um simples “mestre moral” ou “profeta iluminado”, já que Ele próprio afirmou ser Deus. Diante de uma declaração tão radical, não existe meio-termo: ou Ele era louco, ou um impostor, ou, de fato, aquilo que dizia ser. 

Mas como considerá-Lo louco, se Seus ensinamentos mostram bastante lucidez e coerência (compare-os às falas de um drogado ou de alguém em surto psicótico)? E como acusá-Lo de impostor, se os falsos messias buscavam poder terreno, enquanto Ele insistia que Seu Reino não era deste mundo? Assim, C. S. Lewis conclui, se essa figura histórica é de fato boa, deve ser quem afirmou ser.

Aliás, essa questão está longe de ser apenas retórica. Não se trata de alguém dizer: “Sou uma boa pessoa, afirmo ser Deus e meu discurso soa convincente!”. Os registros históricos trazem numerosos relatos de curas e sinais tidos como sobrenaturais. Pessoas vistas como possessas (que hoje seriam diagnosticadas com problemas psiquiátricos) encontraram em Jesus uma experiência de libertação messiânica, enquanto outras, mesmo saudáveis mentalmente, testemunharam outras formas de milagre. A aparente contradição entre essas experiências e a crucificação, que poderia parecer à primeira vista o fracasso do Mestre, é respondida pelas visões de Cristo Ressuscitado. Depois de várias aparições, tanto individuais quanto em pequenos grupos, uma nova comunidade nasce e se fortalece com a descida do Espírito Santo no dia de Pentecostes.

Eric Voegelin afirma que, a partir desse momento, a fé se consolida como “a substância das coisas esperadas e a prova das coisas não vistas” (Hb 11,1). Não se trata de um subjetivismo (“minha mente quer acreditar no que não vivi, mas parece bom”), mas de uma convicção enraizada: seja na experiência direta com Jesus (“a substância das coisas esperadas”), seja no testemunho da tradição (“a prova das coisas não vistas”, mas atestadas por quem viu). 

O núcleo da fé, portanto, não está em aderir a uma ideia abstrata, mas em confiar que o relato dos que conviveram com Ele é verdadeiro, justamente porque essas pessoas se mostram puras, sensatas e transformadas. Se Pedro, Tiago e João e tantos outros tiveram vidas tão extraordinárias e cujos discursos não lhes renderam dinheiro ou bens terrenos, que sentido teria mentirem? O mais surpreendente, porém, é que tais relatos não ficam presos a um passado remoto: em cada geração, novas pessoas são tocadas pelo Espírito Santo e, com seu testemunho pessoal, renovam e atualizam a essência da fé.

Assim, a jornada cristã ultrapassa o plano meramente subjetivo, pois envolve uma transformação real da personalidade e a integração em uma comunidade que transcende o ego, para depois, também historicamente, se articular em linguagem filosófica. Filósofos como São Justino Mártir, Clemente de Alexandria, Basílio Magno, Gregório de Nissa, Agostinho de Hipona, Máximo, o Confessor, Tomás de Aquino, Alberto Magno, Francisco Suárez, entre tantos outros, inclusive atuais, mostraram que a tradição cristã não se apoia em devaneios subjetivistas, mas em provas e argumentos racionais. Discordar desses argumentos é possível; reduzi-los, porém, à crença em fadas ou a um simples subjetivismo é desonesto. É preciso enfrentá-los com a razão; e também assumir o peso de negar o testemunho de homens tão extraordinários.

Em suma, a fé cristã é ao mesmo tempo histórica e filosófica. Ela se distingue radicalmente da atitude subjetiva de simplesmente aderir a uma crença qualquer. Colocá-la na mesma categoria da crença em fadas mostra não apenas falta de cultura filosófica, mas também, em certa medida, de honestidade intelectual.

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