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Parece o tema de um samba-enredo, mas é o título de uma tese acadêmica: “Pamüse: a força do sopro e da saliva entre os dessana wahri dihputiro porã no alto Rio Negro”.
O trabalho, defendido no início do mês na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), já é considerado “histórico” pela academia brasileira. Não pelo assunto, mas pelo formato.
Esta foi a primeira defesa de doutorado com banca composta totalmente por professores indígenas, apresentada em língua nativa e acompanhada de práticas cerimoniais tradicionais. Realizado numa área de convivência da universidade, o evento incluiu canto, dança, defumação, grafismos e até um mobiliário específico (todos se sentaram em bancos de madeira utilizados em rituais).
No auge do encontro, os participantes foram servidos com caiçuma, uma bebida fermentada pela saliva feminina e descrita na tese como uma “força concentradora essencial à cosmopolítica e à produção de conhecimento”.
Aliás, o próprio trabalho foi escrito na língua indígena dessana, com base em uma nova interpretação adotada pelo programa de pós-graduação. Segundo essa lógica, os projetos acadêmicos podem ser redigidos no idioma nativo dos estudantes indígenas, sem necessidade do uso do português — tratado como “língua estrangeira” para fins burocráticos.
Mas o doutorando Jaime Moura Fernandes, conhecido como Jaime Diakara, não tem dificuldade com o português. Ele é professor, ilustrador e escritor, com livros publicados no idioma e presença consolidada na academia e no meio editorial do Brasil. A escolha linguística, portanto, foi mais um gesto simbólico alinhado com a proposta da tese.
A "Uníndio" de Lula
O evento na Ufam não foi um episódio isolado. Ele dialoga diretamente com a proposta do governo de criar a primeira Universidade Federal Indígena do país (Unind), anunciada pelo presidente Lula no final de novembro e enviada ao Congresso.
Com sede em Brasília e funcionamento previsto para 2027, a Unind terá gestão majoritariamente indígena, processos seletivos próprios e oferta inicial de dez cursos — entre eles Promoção e Ensino de Línguas Indígenas, Agroecologia e Gestão Ambiental e Territorial.
O discurso oficial fala em “reparação histórica”, “derrubar a última fronteira da colonização” e combater a “violência cognitiva” imposta por processos educativos “eurocêntricos”.
Os críticos, porém, veem o projeto como uma estrutura universitária paralela, financiada pelo contribuinte justamente num momento em que as federais enfrentam restrições de orçamento.
A criação da Unind, no entanto, levanta outro questionamento ainda mais amplo, sobre a própria ideia de universidade como espaço de conhecimento científico.
É que a academia moderna se organizou em torno da chamada avaliação cega por pares, um conceito ao mesmo tempo simples e rigoroso: o trabalho é analisado pelo que diz, por como foi feito e pela solidez dos argumentos, não por quem o assina.
Esse modelo existe para evitar que preconceitos pessoais, convicções políticas ou preferências ideológicas influenciem o julgamento. Mas quando a identidade do avaliador passa a ser o critério de escolha da banca, esse princípio ainda se sustenta?
Obsessões medíocres
Para o filósofo, professor e escritor Luiz Felipe Pondé, essa discussão não é exatamente nova. “A universidade nunca foi o ambiente de paz e tranquilidade como normalmente se idealiza que ela tenha sido”, afirma Pondé, diretor do laboratório de política, comportamento e mídia da PUC-SP.
Segundo ele, desde sua origem na Europa medieval, a academia sempre foi marcada por disputas de poder, perseguições e jogos políticos. “Existe uma dose razoavelmente grande de utopia com relação ao passado da universidade”, diz.
Ele conta que durante a Guerra Fria, no nazismo e na União Soviética, as instituições acadêmicas estiveram longe de ser espaços neutros de busca pelo saber. “Nos EUA, também no período da Guerra Fria, você teve muitos cientistas ou intelectuais que já eram comunistas e muitos deles acabaram colaborando com o próprio regime soviético.”
Pondé, no entanto, identifica na obsessão identitária contemporânea “uma das novas patologias da universidade”. E reconhece que a situação piorou.
A academia, ele diz, “foi sendo cada vez mais engolida pela ideia de que você tem que fazer política em todo lugar, em todo espaço”.
Contra o "brancocentrismo"
O filósofo vê na teoria decolonial — que embasa a criação da Unind e novidades como a banca 100% indígena na Ufam —, uma das principais expressões dessa guinada woke.
“A teoria decolonial que está na moda tem o discurso de combater o conhecimento como epistemia [forma de saber] europeia, colonizadora, autoritária, eurocêntrica, brancocêntrica”, explica.
O problema, segundo ele, é a criação de novas hierarquias disfarçadas de luta contra o poder. “Se você pesquisa feminismo, você tem mais poder na hierarquia. Se você pesquisa transexualismo, você também tem maior poder”, afirma.
Para Pondé, a universidade virou “uma caixa de ressonância de certas obsessões medíocres” que estabelecem novos critérios de prestígio. “Normalmente, quem fala que está combatendo o poder quer ele mesmo tomar o poder e esmagar aqueles que eles consideram seus inimigos.”
"Todo militante é burro"
Sobre a criação de instituições voltadas para grupos específicos, como a Unind, Pondé reconhece a desigualdade brasileira, mas alerta para os riscos.
“Não adianta tapar o sol com a peneira. Você tem, sim, pessoas no Brasil que nunca vão chegar a lugar nenhum. Mas o problema no Brasil é que a escola pública de fato é um lixo na sua esmagadora maioria”, diz.
Segundo ele, a ideia de receber grupos vulneráveis e excluídos na universidade acaba favorecendo estratégias militantes e até mesmo eleitorais. Isso cria “a sensação de que você pode premiar pessoas que não são, na realidade, meritórias para substituí-las por categorias que são político-ideológicas”.
Sobre o futuro da universidade caso essa lógica se consolide, o filósofo é pessimista. “Se a gente pega o caso do identitarismo de hoje e imaginar que ele se manterá e terá poder, então é provável que a universidade vai virar um espaço de militância, como já está virando: burro, chato e repetitivo, em que você só vai poder trabalhar temas de gênero e raciais”.
A principal perda, para Pondé, será “a possibilidade da contradição que gera conhecimento” — porque, nas palavras dele, “todo militante é burro”.
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