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Física nuclear
Reemergindo com outro nome, pesquisa em energia nuclear baseada na “fusão a frio” chama a atenção de governos e ganha verbas.| Foto: Bigstock / Yurchanka

Depois de décadas de descrédito, neste ano foi renovada uma esperança de produção de grandes quantidades de energia a partir de pequenas porções de matéria e pouco investimento energético. Se durante dezenas de anos, experimentos ao redor do mundo não conseguiram evidenciar a eficácia da fusão nuclear para geração de energia, uma publicação feita por um pesquisador e colaboradores do Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT), em fevereiro, parece estar mudando essa maré. Os estudiosos propuseram mecanismos que aumentam as taxas de fusão nuclear em relação ao obtido até então, o que levou o Departamento de Energia dos EUA a mudar de postura e passar a oferecer verba para pesquisa em reações nucleares de baixa energia. O Conselho de Pesquisa da União Europeia também oferece verba.

A chamada fusão a frio é uma alternativa à fissão de elementos pesados, como o urânio, em usinas nucleares. Enquanto a fissão é a separação espontânea das partículas que formam o núcleo grande de um átomo, a fusão é a junção induzida de núcleos pequenos. Ambos os processos liberam energia, mas a fusão tem maior potencial. Com a crise energética desencadeada pela guerra na Ucrânia, além de um ceticismo quanto à eficácia das ditas energias limpas, o interesse em energia nuclear, tanto a tradicional baseada em fissão quanto a promissora, mas mais incerta baseada em fusão, chama a atenção dos governos. O Canadá, por exemplo, anunciou na última terça-feira (25) que investirá US$708 milhões (R$3,8 bilhões) em pequenos reatores modulares de fissão.

A abundante energia que recebemos do Sol, nossa estrela local, é produzida por um processo de fusão de núcleos de átomo de hidrogênio, que resulta em átomos de hélio. Outros elementos mais pesados, inclusive o carbono, que possibilita a vida, e o oxigênio, que moldou a vida na Terra e nos protege na atmosfera na forma de ozônio, são produzidos de forma similar em estrelas maiores. Por isso, o astrônomo Carl Sagan, em suas obras populares, disse que somos feitos da substância das estrelas.

Como núcleos de átomos têm a mesma carga elétrica positiva, eles naturalmente se repelem, como polos iguais de um ímã. Por isso, altíssimas temperaturas e pressão são necessárias para a fusão nuclear, e uma grande quantidade de energia é liberada quando ela acontece. Pareceria, assim, que só nas temperaturas mais que escaldantes do Sol esse processo poderia ser realizado. De fato, cientistas conseguem reproduzir essas altas temperaturas, mas o gasto de energia para obtê-las é muito alto, não compensado pela quantidade de energia liberada nas fusões quentes realizadas nos laboratórios.

Por décadas, esperanças de realizar a fusão “a frio” — que é um “frio” relativo, não algo literalmente próximo ou abaixo de 0°C — revelaram-se apressadas ou até potencialmente fraudulentas. Um dos acusados de fraude foi o empresário italiano Andrea Rossi, que não aceitou uma oferta de um milhão de dólares para provar que seu aparato funcionava. Com uma série de novos experimentos desde 2010, a desesperança está perdendo espaço.

Como é possível imitar o Sol no laboratório?

Como aprendemos na escola, os núcleos dos átomos são circundados por nuvens de elétrons, partículas com carga negativa menores e mais leves que os prótons do núcleo. As nuvens de elétrons de átomos diferentes se repelem, por serem ambas de carga negativa. Para aproximar um núcleo de outro, como um primeiro passo na fusão, os físicos usam técnicas como a substituição dos elétrons pelos múons, que são versões mais pesadas dos elétrons e, por isso, orbitam o núcleo mais de perto. O processo é chamado de fusão catalisada por múons, e foi proposto nos anos 1940, com testes nos anos 1950. Como aceleradores de partículas são necessários para o processo, o custo energético é mais alto que a produção.

Outro método de fusão é lançar núcleos de deutério, que é uma versão mais pesada do hidrogênio, sobre placas de um metal como o titânio. O deutério, além de um próton, tem um nêutron (partícula sem carga) no núcleo. Quando lançado, o deutério se acumula até certa massa crítica após a qual começa a fundir núcleos, liberando nêutrons. A tecnologia já existe e é usada em dispositivos com placas pequenas de metal de poucos milímetros. Seu propósito, na realidade, não é liberar energia, mas produzir nêutrons, que têm aplicações como tornar materiais mais fortes ou limpar alguma área com material radioativo. Somente cerca de um em um milhão de núcleos de deutério faz fusão nesse procedimento. O método é chamado de “fusão de estado sólido”.

Desse método evoluiu a proposta de dois eletroquímicos em 1989, Martin Fleischmann e Stanley Pons. Com dinheiro do próprio bolso, eles criaram um aparato em que aplicavam corrente elétrica em água feita de deutério contendo uma placa do metal paládio. O aparato teria liberado calor excedente, além de partículas que são sinais de reação nuclear, o que interpretaram como sinal de fusão a frio. Muitos cientistas tentaram reproduzir os resultados, sem sucesso — a última tentativa foi em 2019, financiada pelo Google e publicada na revista Nature. O Departamento de Energia dos Estados Unidos investigou a questão em 1989 e em 2004, concluindo que o aparato não era convincente como fonte de energia, negando verbas para o projeto.

Após o fracasso de Fleischmann e Pons, cientistas ficaram mais receosos de voltar a tentar fazer a fusão a frio funcionar. O filósofo Huw Price, perguntando se a fusão a frio é mesmo impossível ou se os físicos simplesmente querem evitar cair em descrédito falhando na área, batizou o fenômeno de “armadilha da reputação”.

Para evitar a armadilha, uma estratégia é mudar o vocabulário. Foi o que aconteceu com a pesquisa em uma área que os envolvidos preferem chamar de Reações Nucleares de Baixa Energia (LENR, na sigla em inglês). Fazendo algo em linhas gerais parecido com o aparato de Fleischmann e Pons, em 2010 Peter Hagelstein, do MIT, publicou, junto a colaboradores, um artigo em que descrevia que a utilização de um laser a certas frequências aumentava a produção energética por fusão. Mas o resultado também falhou na replicação.

Outro cientista da área de LENR que tentou fazer funcionar uma versão modificada do aparato foi Edmund Storms, em 2016. Após mais falhas na replicação, ele propôs que a reprodução dos experimentos é difícil por causa de “nano-rachaduras” no paládio. A proposta é heterodoxa, mas é verdade que aspectos do experimento são difíceis de medir, especialmente o calor liberado.

A maré de desesperança começou a mudar de fato em fevereiro deste ano, quando Florian Metzler, pesquisador do MIT, propôs junto a colaboradores mecanismos que aumentam as taxas de fusão nuclear no método do estado sólido. Os mecanismos, que são baseados em fenômenos como “ressonância” dos núcleos e propriedades do paládio, aumentariam a produção em 30 ordens de magnitude. Metzler e colegas defendem que a fusão do deutério precisa aumentar em 50 ordens de magnitude para ficar viável como tecnologia. Por causa de publicações como essa, o Departamento de Energia dos EUA mudou de postura e agora oferece verba para pesquisa em reações nucleares de baixa energia. O Conselho de Pesquisa da União Europeia também oferece verba.

Para a física teórica alemã Sabine Hossenfelder, os físicos que pensam que a fusão a frio é impossível estão superestimando os atuais conhecimentos sobre a física nuclear e a química. Quais partículas fundamentais existem no universo é ainda uma matéria de estudo empírico nos aceleradores de partículas, e é possível que a teoria mais aceita, o Modelo Padrão das partículas, esteja errada nos detalhes e não nos dê capacidade suficiente de prever o que acontece quando núcleos se fundem. Ela se mantém cética quanto à possibilidade de tornar viável a fusão a frio, pois não está claro que a produção de energia nos experimentos supera a energia investida, mas diz que “algo estranho está acontecendo nesses experimentos e merece mais estudos”.

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