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Futuro do trabalho: a inteligência artificial é sua ferramenta ou sua chefe?

No livro "Cointeligência", Ethan Mollick defende que a IA deve ser entendida menos como substituta e mais como parceira
No livro "Cointeligência", Ethan Mollick defende que a IA deve ser entendida menos como substituta e mais como parceira (Foto: Imagem criada utilizando ChatGPT/Gazeta do Povo)

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Se em revoluções tecnológicas anteriores as máquinas assumiram funções repetitivas e braçais, a inteligência artificial se aproxima agora de profissões criativas, intelectuais e de alto prestígio — de professores universitários a consultores de grandes empresas. Mas será que isso significa o fim de carreiras inteiras ou apenas uma redistribuição de tarefas?

Essa e outras questões são levantadas em “Cointeligência” (editora Intrínseca), livro do pesquisador americano, professor de gestão da tradicional escola de negócios Wharton, da Universidade Pensilvânia. Para ele, a IA deve ser entendida menos como substituta e mais como parceira — capaz de acelerar processos, ampliar horizontes e, ao mesmo tempo, exigir um olhar crítico para não nos tornarmos dependentes demais de suas respostas.

No trecho da obra que você lê a seguir, Mollick mostra como estudos recentes vêm medindo essa nova fronteira entre humanos e máquinas. Ou seja: quando a IA potencializa nosso desempenho e quando, ao contrário, pode nos levar a abrir mão do controle.

Uma das primeiras perguntas que as pessoas fazem quando começam a utilizar a IA de verdade é se isso vai afetar no trabalho. A resposta mais provável é que sim.

A questão é importante o suficiente para que pelo menos quatro equipes de pesquisa tenham tentado determinar em quantas profissões humanas as IAs também são capazes de atuar. Para isso, utilizaram um banco de dados bem detalhado das funções exigidas em 1.016 profissões.

A conclusão em todos os estudos foi a mesma: quase todas as nossas profissões estão presentes entre os recursos da IA.

Como já foi mencionado, o formato dessa revolução da IA no mercado de trabalho parece muito diferente de todas as revoluções de automação anteriores, que em geral tiveram início com os trabalhos mais repetitivos e perigosos. A partir de pesquisas realizadas pelos economistas Ed Felten, Manav Raj e Rob Seamans, concluiu-se que a IA tem mais pontos em comum com as profissões mais bem remuneradas, criativas e que exigem graus de instrução mais elevados.

Professores universitários compõem a maior parte dos 20 principais empregos que mais se equiparam à IA (o professor do curso de administração é o número 22 da lista). Contudo, a profissão com mais habilidades em comum é, na verdade, a de operador de telemarketing. Em breve, os operadores automáticos serão muito mais convincentes e menos robóticos.

Apenas 36 das 1.016 profissões não podiam contar com a atuação da IA. Esses poucos empregos incluíam dançarinos e atletas, além de operadores de bate-estacas, telhadistas e mecânicos de motocicletas (embora eu tenha conversado com um telhadista que planejava utilizar IA para ajudar no marketing e no atendimento ao cliente, portanto, talvez sejam 35 empregos).

Você deve ter percebido que esses são trabalhos bastante físicos, nos quais a capacidade de se mover no espaço é fundamental. Isso destaca o fato de que a IA, pelo menos por enquanto, não tem corpo.

A expansão da inteligência artificial está ocorrendo em um ritmo mais acelerado do que a evolução dos robôs, mas isso pode mudar em breve. Muitos pesquisadores estão tentando empregar os Grandes Modelos de Linguagem (LLMs) na resolução de problemas de robótica de longa data, e há indicativos iniciais de que isso pode funcionar, pois os LLMs facilitam a programação de robôs capazes de realmente aprender com o mundo ao redor.

Portanto, não importa a natureza de sua profissão: é provável que, em um futuro próximo, a IA tenha as mesmas habilidades dela.

Isso não significa que você será substituído. Para entender o motivo, precisamos analisar as profissões com mais cuidado, levando em consideração seus vários aspectos.

Automatizar tarefas rotineiras

Empregos são compostos por conjuntos de tarefas e se encaixam em sistemas maiores. Sem considerar os sistemas e as tarefas, não há como entender o impacto da IA neles.

Veja minha atuação como professor de um curso de administração. Sendo o 22º emprego com maior sobreposição dos 1.016, estou um pouco preocupado. No entanto, meu trabalho não é apenas uma entidade única e indivisível, ele inclui uma variedade de tarefas: ensinar, pesquisar, escrever, preencher relatórios anuais, fazer a manutenção do meu computador, escrever cartas de recomendação e muito mais.

O título de “professor” é só um rótulo; a rotina diária consiste nessa mistura de tarefas. A IA é capaz de assumir algumas dessas tarefas? A resposta é sim e, para ser franco, há tarefas que eu não me importaria de transferir para ela, como a burocracia administrativa.

Contudo, isso significa que minha profissão vai desaparecer? Na verdade, não.

O fato de nos livrarmos de algumas tarefas não significa que a profissão em si sumirá do mapa. As ferramentas elétricas não substituíram os carpinteiros, por exemplo, mas os tornaram mais eficientes; e as planilhas eletrônicas viabilizaram que contadores trabalhassem com mais velocidade, mas não extinguiram sua profissão.

A IA tem o potencial de automatizar tarefas rotineiras, liberando-nos para o trabalho que exige habilidades exclusivamente humanas, como criatividade e pensamento crítico — ou, quem sabe, o gerenciamento e a curadoria da produção criativa da IA.

A questão é que esse não é o fim da história. Os sistemas nos quais operamos também impactam a formatação de nossos empregos.

Como professor de um curso de administração, um sistema óbvio é a tenure, o estatuto das universidades que garante a estabilidade no emprego dos professores, fazendo com que eu não possa ser substituído tão facilmente assim, mesmo que meu trabalho seja terceirizado para a IA. No entanto, os muitos outros sistemas em uma universidade são mais sutis.

Digamos que uma IA possa palestrar melhor do que eu. Os alunos estariam dispostos a terceirizar seu aprendizado para a IA? A tecnologia disponível em sala de aula seria capaz de acomodar essa nova modalidade de ensino?

Os reitores se sentiriam à vontade para empregar a IA dessa forma? As revistas e os sites que ranqueiam as instituições de ensino nos puniriam por isso?

Meu trabalho está conectado a muitos outros trabalhos, clientes e outras partes interessadas. Mesmo que a IA automatizasse meu trabalho, os sistemas em que minha profissão opera são menos óbvios. Portanto, vamos contextualizar a IA e falar sobre o que ela pode fazer no campo das tarefas e sistemas.

Fronteira irregular

Uma coisa é analisar o impacto teórico da IA nas profissões, outra é testá-lo. Tenho trabalhado nisso com uma equipe de pesquisadores, incluindo os cientistas sociais de Harvard Fabrizio Dell’Acqua, Edward McFowland III e Karim Lakhani, bem como Hila Lifshitz-Assaf, da Warwick Business School, e Katherine Kellogg, do MIT.

Tivemos a ajuda do Boston Consulting Group (BCG), uma das principais organizações de consultoria de gestão do mundo, que conduziu o estudo, e de quase 800 consultores que participaram dos experimentos.

Os consultores foram divididos de maneira aleatória em dois grupos: um que teria de fazer o trabalho da forma tradicional e outro que teria de usar o GPT-4, a mesma versão básica do LLM a que todos em 169 países têm acesso. Em seguida, proporcionamos um pequeno treinamento em IA e os liberamos, com um cronômetro, para desempenhar dezoito tarefas projetadas pelo BCG para se parecerem com as atividades habituais dos consultores.

Havia tarefas criativas (“proponha pelo menos dez ideias para um novo calçado voltado a um mercado ou esporte pouco explorado”), tarefas analíticas (“segmente o mercado do setor de calçados com base nos usuários”), tarefas de redação e marketing (“elabore um release com um copy do seu produto”) e tarefas de persuasão (“escreva um memorando inspirador para os colaboradores com detalhes de por que seu produto supera o dos concorrentes”). Até consultamos diretores de empresas de calçados para garantir que o trabalho fosse realista.

O grupo que trabalhou com a IA teve um desempenho significativamente melhor do que os demais consultores. Medimos os resultados de todas as formas possíveis — observando a habilidade dos consultores, ou utilizando a IA para avaliar os resultados, em vez de avaliadores humanos —, mas o efeito persistiu em 118 análises.

Os consultores auxiliados pela IA foram mais rápidos, e seu trabalho foi considerado mais criativo, mais bem escrito e mais analítico do que o de seus colegas. Contudo, uma análise mais cuidadosa dos dados revelou algo mais impressionante e um tanto preocupante.

Embora se esperasse que os consultores utilizassem a IA para ajudá-los nas tarefas, pareceu que a tecnologia havia feito a maior parte do trabalho. A maioria dos participantes do experimento simplesmente colou as perguntas que lhe foram feitas, obtendo respostas muito boas.

O mesmo aconteceu em um experimento realizado pelos economistas Shakked Noy e Whitney Zhang do MIT: a maioria dos participantes nem se deu ao trabalho de editar a resposta criada pela IA. Esse é um problema que vejo muito nas pessoas que utilizam a IA pela primeira vez: simplesmente colam a pergunta exata que lhes foi feita e reproduzem a resposta que vier.

Há perigo em trabalhar com IAs: o de nos tornarmos redundantes, é lógico, assim como o perigo de confiarmos demais nelas para desempenhar o trabalho. E testemunhamos o perigo nós mesmos, porque o BCG elaborou mais uma tarefa, selecionada com todo o cuidado para garantir que a IA não chegasse a uma resposta correta — algo que estivesse fora da Fronteira Irregular [o limite entre tarefas que a IA executa melhor que humanos e aquelas onde ainda falha, definindo quando devemos confiar nela].

Não foi fácil, já que a IA é excelente em uma ampla gama de habilidades, mas identificamos uma tarefa que combinava uma questão estatística complexa a outra com dados falsos. Os consultores humanos acertaram o problema em 84% das vezes sem a ajuda da IA, mas os consultores que utilizaram a tecnologia se saíram pior, com uma taxa de apenas 60% a 70% de acerto. O que aconteceu?

“Dormir ao volante”

Em outro artigo, Fabrizio Dell’Acqua mostra por que confiar demais na IA pode ser um tiro pela culatra. Ele descobriu que recrutadores que utilizavam IA de alta qualidade tinham se tornado preguiçosos, descuidados e menos habilidosos no próprio julgamento. Haviam aberto mão de candidatos brilhantes e tomado decisões piores do que os recrutadores que não a utilizavam ou que empregavam uma IA de baixa qualidade.

Ele contratou 181 recrutadores profissionais, a quem deu uma tarefa complexa: avaliar 44 formulários de emprego com base na capacidade matemática dos candidatos. Os dados vieram de um teste internacional de habilidades para adultos, portanto, as pontuações em matemática não estavam óbvias nos currículos.

Os recrutadores receberam diferentes níveis de assistência de IA: alguns tinham suporte bom ou ruim dessa tecnologia, outros não tinham nenhum. Dell’Acqua mediu a precisão, a rapidez, o empenho e a confiança dos recrutadores.

Os que estavam amparados pela IA de alta qualidade se saíram pior do que os com um modelo de baixa qualidade. Dedicaram menos tempo e esforço a cada currículo e seguiram as recomendações da IA sem sequer buscar embasamento.

Também não melhoraram com o tempo. Em contrapartida, os recrutadores amparados por IA de qualidade inferior agiram de forma mais atenta, crítica e independente. Melhoraram a interação com a tecnologia e as próprias habilidades.

Dell’Acqua desenvolveu um modelo matemático para explicar a relação entre a qualidade da IA e o esforço humano. Quando a IA é muito boa, os humanos não têm motivo para trabalhar com afinco e prestar atenção, simplesmente deixam que ela assuma o controle, em vez de usá-la como uma ferramenta. Esse fenômeno, que Dell’Acqua chamou de “dormir ao volante”, pode prejudicar o aprendizado, o desenvolvimento de habilidades e a produtividade humana.

A partir desse estudo é explicado o que aconteceu em nossa pesquisa com os consultores do BCG. A IA poderosa tornou mais provável que os consultores “dormissem ao volante” e cometessem grandes erros em aspectos cruciais. Eles não entenderam o formato da Fronteira Irregular.

O futuro da compreensão de como a IA afeta o trabalho envolve entender como a interação humana com a IA muda dependendo de em que ponto as tarefas estão nessa fronteira e de como a fronteira mudará. Isso requer tempo e experiência, então é fundamental manter o princípio de convidar a IA para tudo, permitindo que aprendamos o formato da Fronteira Irregular e sua delimitação para o conjunto exclusivo de tarefas que compõem nossos trabalhos individuais.

Munidos desse conhecimento, precisamos prestar atenção às tarefas que atribuímos à IA e assim buscar tirar vantagem de seus pontos fortes e de nossos pontos fracos. Queremos ser mais eficientes, fazer um trabalho menos entediante e manter o ser humano no processo, mas também valorizar as qualidades da IA. Para fazer isso bem, precisamos de uma estrutura que divida nossas tarefas em categorias mais ou menos adequadas para a disrupção da IA.

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Conteúdo editado por: Omar Godoy

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