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O presidente do Chile, Gabriel Boric, fala à imprensa durante o IV Gabinete Binacional Chile-Peru, no palácio presidencial de La Moneda, em Santiago (Chile), no dia 29 de novembro de 2022.
O presidente do Chile, Gabriel Boric, fala à imprensa durante o IV Gabinete Binacional Chile-Peru, no palácio presidencial de La Moneda, em Santiago (Chile), no dia 29 de novembro de 2022.| Foto: EFE / Elvis González

Alguns colunistas chilenos renomados costumam dizer que no coração da idiossincrasia chilena vive um venezuelano: Andrés Bello. Bello redigiu o Código Civil chileno e foi um homem apaixonado pela busca da ordem política, social e existencial. Não se trata de um imobilismo, mas de uma ordem agradecida pela herança, que tende a emergir das transformações ou rupturas como um norte que permite superá-las. O Chile é um país sísmico que constrói edifícios e política buscando estabilidade. Há alguma razão na opinião daqueles colunistas, e este primeiro ano de presidência de Gabriel Boric é um excelente exemplo.

Em outubro de 2019, o Chile experimentou uma dessas rupturas. A busca por ordem para superar o caos reinante nas ruas resultou no consenso político e social que concordou, por ampla maioria (78%), em redigir uma nova Constituição. Por outro lado, como a direita chilena havia sido incapaz de explicar e lidar com a febre que havia se apoderado do país, o lucro político foi capitalizado em maior medida pelo Frente Amplio (Frente Ampla), conglomerado de esquerda progressista radical inspirado no Podemos [Partido esquerdista da Espanha]. Isso se traduziu na candidatura presidencial de Gabriel Boric, um dos deputados frenteamplistas de mais reconhecida trajetória.

Durante o primeiro turno eleitoral, Boric se portou como o jovem revolucionário que foi no congresso. No entanto, os resultados das primeiras eleições não foram encorajadores para ele, nem indicavam uma convicção revolucionária avassaladora. Durante o segundo turno, ele se apresentou então como um homem mais calmo, maduro e aberto ao diálogo. Respeitoso das instituições, mas anelante de mudanças. O povo chileno quis acreditar nele — ou descartou o adversário — e lhe entregou seu voto majoritário.

A falida aposta na Constituição

Boric assumiu o comando do país em março de 2022, em pleno processo constitucional. Seu governo havia depositado suas esperanças no novo texto, que teria a cara do outubro revolucionário que o gestou. De fato, afirmou expressamente que as reformas do programa não poderiam ser impulsionadas sem a nova Constituição. Assim, o primeiro erro grave do presidente foi ligar seu governo a essa proposta de Constituição.

Aconteceu que a convenção eleita encarregada de escrevê-la, ainda embriagada com a adrenalina incendiária de 2019, redigiu um texto que tentava refundar o país desde seus alicerces políticos, jurídicos e econômicos. Diluía o Senado, colocava em sério risco a separação de poderes, decretava que o Chile era um país plurinacional devido à sua multiplicidade étnica, afetava a faculdade dos pais de serem os primeiros educadores e escolherem seu sistema educativo, consagrava o aborto livre como direito constitucional e tornava incerto o direito dos cidadãos sobre seus fundos de pensão. Além disso, a convenção enchia as sessões com performances que incluíam fantasias infantis, canções que modificavam o hino nacional ou corpos pintados.

Para muitas pessoas, em vez de resolver algum conflito, a nova Constituição viria instalar muitos problemas que até o momento o Chile havia conseguido evitar. As pesquisas indicavam o crescente descontentamento e decepção que as pessoas sentiam em relação ao trabalho dos convencionais constituintes, mas estes fizeram caso omisso das advertências. Para eles, as pesquisas estavam sendo manipuladas por grupos de poder. Eles estavam seguros de que as pessoas se identificariam plenamente com as propostas. Além disso, a novidade de uma Constituição feminista, indigenista e progressista contava com o beneplácito de organismos internacionais. O que poderia dar errado?

Tudo deu errado para os cálculos de uma esquerda progressista, demasiado ensimesmada e precipitada. No dia 4 de setembro de 2022, quando Boric estava havia sete meses na presidência, o mesmo povo chileno que havia aprovado por uma esmagadora maioria a ideia de redigir um novo texto constitucional rejeitou nas urnas a proposta com 62% dos votos, na votação com a participação mais alta na história do país.

A tese inicial do governo foi que esse resultado se devia a uma campanha de desinformação por parte da mídia, embora também tenha sido sugerido que, para eles, os chilenos não estavam suficientemente avançados para apreciar as bondades do projeto. Logicamente, esse sutil desprezo pelo povo introduziu uma nova fratura com ele. Mas, além de ofensiva, a explicação não era capaz de lidar com o assunto de fundo: o país, embora ansiando por mudanças importantes que resolvam problemas sociais, não estava disposto a se lançar ao vazio da refundação.

Em busca de ordem pública e estabilidade econômica

Sem o apoio da carta magna sob seu braço, Boric se viu obrigado a começar a governar em uma cadeira presidencial que, de repente, se tornou extremamente desconfortável. A rejeição à nova Constituição também rejeitou o programa de governo e suas condições de possibilidade, e consequentemente ele ficou sem programa. Para piorar, ele teve que começar a lidar com dois grandes problemas que ele mesmo ajudou a criar em seus dias como deputado com barba descuidada, cabelo semirraspado e tatuagem à mostra. Estamos falando da ordem pública e da estabilidade econômica, as novas preocupações centrais da população.

Outubro de 2019 trouxe graves manifestações de violência, incluindo a queima sincronizada de setenta estações de metrô, igrejas e estabelecimentos comerciais. Como esses atos criminosos se entrelaçavam com legítimos protestos sociais pacíficos, a narrativa de uma parte importante da esquerda considerou que ambas as coisas eram equivalentes, e que a violência era um meio necessário para visibilizar os protestos. As forças de ordem pública eram essencialmente repressoras do povo, defensoras das elites dominantes. O próprio Gabriel Boric, então deputado, enfrentou um grupo de militares na frente das câmeras. "Eles estão carregando armas de guerra!", gritou indignado. Para ele, como para seus colegas políticos, os agentes do Estado só tinham permissão para usar o diálogo, nunca as armas.

Mas a aprovação da violência teve um preço alto. Uma vez na presidência, Boric teve que lidar com o aumento no número e gravidade dos crimes. Já não se trata de protestos, mas de uma trama complexa que inclui terrorismo no sul do país, a presença de novos traficantes de drogas e imigração sem controle. Assim, as prioridades das pessoas se concentraram gradualmente nas demandas por segurança. Ciente disso, o presidente começou a responder à angústia dos cidadãos em seus discursos, mas foi considerado um traidor por suas bases políticas.

Eles exigiram, então, o cumprimento de uma antiga promessa de campanha, que agora se tornava politicamente muito delicada: a libertação de alguns presos durante as manifestações violentas de outubro de 2019. A polícia aconselhou contra: eles eram criminosos com pesadas fichas criminais. Apesar disso, Boric, pressionado, concordou e treze presos foram indultados. Segundo erro grave, que custou a confiança do país. Enquanto a polícia já lamenta vários policiais mortos pelas mãos dos criminosos, o presidente se apresenta nos funerais, abraça os familiares dos falecidos entre discursos de apoio e promete acabar com a criminalidade através de leis contra o crime organizado. Ele até admite que é necessária uma reflexão sobre aquele passado que hoje o atormenta, mas não passa credibilidade.

Por outro lado, o Chile enfrenta um cenário de inflação como não havia visto em décadas. Embora vários países do Ocidente também experimentem severas altas de preços, a situação chilena tem suas particularidades. Durante a pandemia, foram aprovados projetos de lei que permitiam que as pessoas retirassem seus fundos de pensão antecipadamente. A medida trouxe graves consequências previdenciárias e no mercado de capitais, e a rápida liquidez agravou a inflação. Tudo havia sido advertido pelos economistas. O então deputado Boric votou a favor da iniciativa, e agora não só deve dar conta daquele voto, mas também deter as tentativas de repetir a experiência.

Um novo Boric?

Diante disso, o governo se encontra na impossível situação de ter que "se aliar à direita" para responder às demandas atuais dos cidadãos, porque a ordem e a economia são as fortalezas da oposição. O controle da criminalidade e o equilíbrio fiscal, que não eram uma preocupação do deputado, tornam-se urgentes para o presidente. Em contraste, as reformas que o alinham com sua bancada de origem não possuem maioria parlamentar.

Tudo isso resulta em uma crise de imagem para Boric. Em um ano, passou de rockstar a um simples presidente com baixa aprovação, que em vez de aclamações e presentes recebe insultos. Não é de surpreender: ele próprio atrelou seu destino ao da nova Constituição e tem sido profundamente inconsistente em suas palavras e ações. Quem é Boric? Será o ex-deputado revolucionário? Ele realmente deu uma guinada sensata junto ao país e governará para levá-lo de volta à estabilidade? Ainda não temos certeza. Sabemos, no entanto, quem são os chilenos: o povo que constrói após terremotos, mas com materiais e designs próprios, adequados à sua terra, que garantam solidez. Se Boric aprender a ler a marca de Andrés Bello na idiossincrasia do povo que governa, terá mais chances de sucesso do que teve até agora.

©2023 ACEPRENSA. Publicado com permissão. Original em espanhol.
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