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História

Como a gigante farmacêutica Bayer colaborou com o nazismo

Uma foto de arquivo sem data mostra o alojamento feminino no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau em Oswiecim, na Polônia: o conglomerado do qual a Bayer fazia parte usou trabalhadores escravizados para construir uma fábrica química nas imediações do campo de concentração de Auschwitz para produzir uma borracha sintética importante na economia de guerra
Uma foto de arquivo sem data mostra o alojamento feminino no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau em Oswiecim, na Polônia: o conglomerado do qual a Bayer fazia parte usou trabalhadores escravizados para construir uma fábrica química nas imediações do campo de concentração de Auschwitz para produzir uma borracha sintética importante na economia de guerra (Foto: EFE)

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“Durante a Segunda Guerra Mundial, começando em 1941, a IG Farben construiu uma fábrica química nas imediações do campo de concentração de Auschwitz para produzir buna, uma borracha sintética que era uma parte importante da economia de guerra. Além de trabalhadores qualificados alemães, a empresa também usou milhares de prisioneiros do campo de concentração de Auschwitz para construir a fábrica. Eles foram acompanhados por prisioneiros de guerra e trabalhadores forçados de toda a Europa”.

Para acomodar os trabalhadores no que era o maior canteiro de obras do Terceiro Reich naquele momento, “a IG Farben começou a construir o próprio campo de concentração de Buna-Monowitz da empresa em 1942, em colaboração com o regime nazista. Um grande número de trabalhadores morreu devido às condições desumanas de vida e trabalho, ou foram mortos nas câmaras de gás de Auschwitz-Birkenau assim que não conseguiam mais trabalhar. A expectativa de vida dos presos era de menos de quatro meses, e mais de 25 mil pessoas perderam suas vidas somente no canteiro de obras”.

O texto acima consta do site oficial da empresa alemã Bayer. A IG Farben a que o conteúdo faz referência era um conglomerado formado em 1925 por seis indústrias químicas: Agfa, BASF, Bayer, Chemische Fabrik Griesheim-Elektron, Hoechst e Weiler-ter-Meer.

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, 23 gerentes de alto escalão do grupo seriam julgados nos tribunais de Nuremberg. A IG Farben seria desfeita durante a ocupação aliada e cada uma das corporações componentes voltou a atuar de forma independente.

Foto sem data do campo de concentração em Auschwitz-Monowitz, onde pelo menos 30.000 trabalhadores submetidos a trabalhos forçados foram mortos. Em Auschwitz, o conglomerado IG Farben produziu o gás Zyklon B, que foi usado nas câmaras de gás dos campos de concentração. (Foto: EPA)

Tribunal exclusivo

O envolvimento da IG Farben foi investigado e julgado por um tribunal próprio, que se estendeu de agosto de 1947 a maio de 1948. Dos acusados, 13 seriam condenados. Um deles era Fritz ter Meer, diretor das operações da IG Farben em Auschwitz. Condenado a sete anos, foi libertado em 1951 e rapidamente assumiu um cargo de alta liderança na Bayer.

“Químico e empresário, Fritz ter Meer foi presidente do conselho de administração e membro do conselho de várias outras empresas no período entre 1956 e 1964”, admite, atualmente, a companhia. Ele se aposentou em 1961 e faleceu em 1967, aos 83 anos.

A parceria da Bayer com o governo de Adolf Hitler não é, nem de longe, um caso isolado: dezenas de grandes empresas, especialmente dos setores industrial e automotivo, contribuíram com o governo local. No caso específico da companhia, por intermédio de uma subsidiária, a Degesch, ela também fabricou em larga escala o gás Zyklon B, utilizado nas câmaras de gás da vasta rede de campos de concentração nazistas.

E há indícios não comprovados de que tenha experimentado produtos químicos em cobaias coletadas entre os detentos. A acusação partiu de vítimas, especialmente Eva Mozes Kor, que foi detida em Auschwitz aos nove anos, ao lado da irmã gêmea, Miriam – que sofreria com o subdesenvolvimento dos rins até a morte, em 1994.

Em 1999, Eva, que faleceria em 2019, levou a Bayer à Justiça. O processo coletivo movido por ela acusava a empresa de injetar produtos químicos tóxicos em presos dos prisioneiros, de forma a causar doenças cuja cura poderia ser tentada utilizando medicamentos da companhia. O caso terminou em acordo, sem que a Bayer admitisse culpa.

Duas ex-prisioneiras (à direita) de um campo de concentração e apoiadores protestam antes do início da reunião de acionistas da IG Farben, a empresa que fabricava o gás mortal Zyklon-B usado nos campos de concentração nazistas, em Frankfurt, 23 de agosto de 2000. O cartaz afirma "Cães, vocês querem liquidar para sempre?" (Foto: EFE)

“Benefícios enormes”

O esforço de guerra dos nazistas fez bem para a IG Farben, segundo, mais uma vez, a própria Bayer. “O governo nacional-socialista vinha se preparando sistematicamente para a guerra desde 1936. Quando a Segunda Guerra Mundial finalmente estourou em 1939, os locais do consórcio operacional do Baixo Reno foram considerados vitais para o esforço de guerra e para a economia alemã. Os benefícios econômicos para a IG Farben foram enormes", afirma o site da empresa.

E continua: "A partir de 1940, o grupo fez uso crescente de trabalhadores forçados dos países ocupados da Europa para manter e expandir as capacidades de produção dentro do consórcio operacional do Baixo Reno. Esses trabalhadores representavam até um terço da força de trabalho”.

Foi um momento relevante para a empresa, criada em 1863 e que se mostrou decisiva para as origens e o desenvolvimento da cidade de Leverkusen, oficialmente fundada em 1930. O principal time local, o Bayer 04 Leverkusen, foi criado por funcionários da companhia e ainda hoje pertence à empresa.

A Bayer criou a aspirina, sintetizada pela primeira vez em 1897 por Felix Hoffmann. Também desenvolveu e, por algum tempo, comercializou largamente a heroína sintetizada a partir da morfina. Lançada no mercado com alarde em 1897, era comercializada como analgésico e sedativo para tosse e constipação. Seu alto poder viciante levou à descontinuidade da venda a partir de 1913.

Proteção da imagem

Antes disso, as companhias alemãs não ignoraram os debates sobre a culpa do setor. Muito ao contrário, depois da guerra, seus executivos assumiram a defesa de suas próprias reputações e das de suas empresas. Foi o caso da Bayer, relata o artigo "German Industry and the Third Reich" (“A Indústria Alemã e o Terceiro Reich”), de autoria do professor de história da Europa moderna na Universidade do Alabama Jonathan Wiesen.

Ele aponta: “Existe uma autobiografia escrita por Richard Willstätter, um químico judeu ganhador do Prêmio Nobel em 1915 que foi forçado a fugir da Alemanha em 1939. Willstätter, que escreveu seu livro enquanto estava exilado na Suíça, morreu em 1942. Em 1949, suas memórias foram publicadas postumamente, e executivos da corporação Bayer leram com consternação uma curta passagem na qual o cientista criticava Carl Duisberg, o falecido diretor da empresa (e fundador do conglomerado químico IG Farben), por fazer comentários antissemitas quando Willstätter renunciou à Universidade de Munique em 1924”.

A menção poderia ter passado sem grandes repercussões, diz o historiador, até que a Bayer começou a pressionar a editora do livro para retirar o trabalho de circulação. “Um diretor da Bayer em particular, o executivo aposentado e cientista da empresa Heinrich Hörlein, lançou uma campanha para manchar a reputação de Willstätter e promover as reputações de Carl Duisberg e da Bayer. O próprio Hörlein foi julgado e absolvido no julgamento da IG Farben em 1947, e a amargura provavelmente o levou a tomar medidas vigilantes em nome de sua empresa”.

Por um curto período em 1949, um debate eclodiu dentro da indústria química da Alemanha Ocidental sobre o antissemitismo e o passado nazista, prossegue o artigo.

“Em grande parte da discussão, as pessoas ignoraram os tristes eventos da vida de Willstätter, particularmente o antissemitismo que ele suportou nas décadas de 1920 e 1930, e, em vez disso, se concentraram em se ele havia feito algo muito errado ao criticar Carl Duisberg. No final, Bayer e Hörlein prevaleceram. Em edições futuras e em uma tradução em inglês das memórias, os editores removeram as passagens questionadas. Desde 1949, a curta, mas violenta campanha contra Willstätter foi quase totalmente esquecida”.

Nuremberg, data exata desconhecida; entre 27 de agosto de 1947 e 30 de julho de 1948. Georg von Schnitzler, membro da diretoria da IG Farben, durante o julgamento da empresa. Schnitzler e outros 12 réus no caso foram considerados culpados e sentenciados a penas entre um e oito anos de prisão.Nuremberg, data exata desconhecida; entre 27 de agosto de 1947 e 30 de julho de 1948. Georg von Schnitzler, membro da diretoria da IG Farben, durante o julgamento da empresa. Schnitzler e outros 12 réus no caso foram considerados culpados e sentenciados a penas entre um e oito anos de prisão. (Foto: EFE)

Mudança estratégica

A empresa passou a reconhecer sua participação nos crimes de guerra cometidos pelo nazismo apenas depois do final dos anos 1990, após a reunificação da Alemanha. Por que a mudança de rota?

“O fim da Guerra Fria reduziu o medo de que a disseminação de informações sobre o relacionamento da indústria alemã com o regime nazista iria de alguma forma minar a economia alemã”, responde Wiesen.

“E sem dúvida uma boa quantidade de cálculo político – até mesmo desespero motiva a maioria das empresas que auxiliam acadêmicos. ‘Franqueza’ é vista como uma boa jogada de relações públicas quando uma empresa é processada por ex-trabalhadores forçados e escravos”.

Em 2023, a Bayer fundou a Fundação Hans and Berthold Finkelstein. Funcionário da IG Fabren, protestante por escolha desde criança, Hans Finkelstein era judeu de nascença e foi forçado por autoridades nazistas a pedir demissão. Cometeu suicídio em 1938. Seu filho, Berthold, foi detido. E forçado a trabalhar como escravo na antiga companhia onde seu pai havia sido empregado.

“A Fundação Hans e Berthold Finkelstein fortalece a cultura da lembrança na Bayer e apoia projetos de pesquisa e lembrança sobre os crimes dos nacional-socialistas – em particular sobre o assunto do trabalho forçado nazista e I.G. Farben”, diz o site da organização, fundada 19 anos depois da morte de Berthold. “Ela também desenvolve programas para uma cultura corporativa e de gestão caracterizada pela responsabilidade histórica, pela ação democrática e promove projetos educacionais orientados ao diálogo para fortalecer a resiliência ao ódio e ao totalitarismo”.

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