Em seus últimos meses de vida, a partir de novembro de 1926, o jovem padre mexicano Toribio Romo González foi um perseguido político em seu próprio país. Celebrava missas e fazia a catequese de crianças em diferentes localidades pequenas do interior. Contava com o favor dos locais para se esconder, se alimentar ou ter um lugar para dormir.
Ao menor sinal de aproximação das forças do governo, voltava a se deslocar. Em setembro de 1927, se transferiu para a comunidade rural de Agua Caliente, nos arredores da cidade de Tequila, cujo nome batizou a famosa bebida alcóolica.
Dentro de uma destilaria abandonada, ele e seu irmão mais novo, Román, seguiram sua vocação. Dormiam em uma casa emprestada por um morador local, onde também estava instalada a irmã dos dois, María. Em 23 de novembro de 1928, Toribio ordenou que o irmão fosse embora. Parecia pressentir o perigo.
No dia seguinte, uma sexta-feira, passou o dia registrando batismos e casamentos nos livros paroquiais e redigindo certificados para as famílias que haviam celebrado os sacramentos nos últimos dias.
“Continuou trabalhando noite adentro, ocasionalmente tirando cochilos ou fazendo breves pausas”, relata o padre James Murphy no livro Saints and Sinners in the Cristero War: Stories of Martyrdom from Mexico (“Santos e Pecadores na Guerra dos Cristeros: Histórias de Martírio no México”, sem edição no Brasil).
Às 4h da manhã, tentou rezar a missa, mas estava exausto e acabou por voltar ao dormir. “Cerca de uma hora depois, as tropas federais o encontraram em um sono tranquilo, com um braço cobrindo o rosto”, prossegue o autor. Um soldado moveu o braço para vê-lo de perto e gritou: ‘Este é o padre! Mate-o!’”.
Toribio acordou, sentou-se na cama e disse: “Eu sou o padre, mas não me mate”. Mal terminou a frase, foi alvejado por outro soldado. “Ele se levantou e cambaleou uma dúzia de passos para fora do prédio antes que um segundo tiro soasse, e ele caiu nos braços de sua horrorizada irmã”.
Ela teria gritado: “Cristo misericordioso, receba-o! Viva Cristo, o Cristo Rei!”. Submetida a dias de maus tratos e sem alimento, ainda assim María sobreviveria. Diria, para quem lamentava a morte do irmão: “Não precisam chorar. Padre Toribio está no céu”.
Assassinado aos 27 anos de idade, Toribio foi um dos cerca de 90 padres mortos durante o governo do líder mexicano Plutarco Elías Calles, que foi presidente entre 1924 e 1928 e se manteve no controle de fato do país até 1934.
O período está diretamente ligado aos acontecimentos que provocaram a Guerra dos Cristeros, que se estendeu por três anos, entre 1926 e 1929, e deixou um saldo de mais de 250 mil mortos, em um país que à época tinha pouco menos de 7 milhões de habitantes.
A revolta tinha uma grande motivação: garantir que os cristãos do país pudessem voltar a praticar sua fé livremente.
Caça aos religiosos
A relação entre Estado e Igreja vinha se mostrando tumultuada no México desde o século 19. Em 1857, uma nova constituição previa o fim do catolicismo como religião oficial e a criação, em todo o país, da figura da educação pública secular. A reação às mudanças levou à chamada Guerra da Reforma, que durou dois anos, a partir de 1858.
Os liberais, que contavam com o apoio dos Estados Unidos e haviam desenhado a nova carta de leis, saíram vitoriosos contra o grupo chamado de conservador, que recebeu apoio de diferentes países da Europa, em especial Espanha e França.
Mas o país estava tão dividido que muitas das medidas previstas na nova carta não foram levadas e termo – caso do poder do governo de vender propriedades pertencentes a entidades católicas. Enquanto isso, mesmo depois da derrota, grupos de católicos rebeldes seguiram por anos lutando contra o governo. Ficaram conhecidos como “religioneros”.
O país se manteve em convulsão, com alternâncias no poder e nas propostas de governo. A Revolução Mexicana, que se estendeu ao longo da década de 1910, colocou novamente em pé de guerra os principais atores que disputavam espaços no país. O mundo também vivia um cenário de profundas transformações, com a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Soviética. Neste contexto, o país passou a contar com uma nova Constituição em 1917.
O texto mantinha – e atualizava – uma série de restrições à atuação da igreja. Negava à instituição sua existência legal, o que levava automaticamente à nacionalização das propriedades católicas. Exigia que todo sacerdote fizesse um registro civil e impedia a existência de escolas cristãs. Ainda tornava ilegal qualquer celebração religiosa fora do ambiente das igrejas.
As lideranças católicas ficaram em alerta, mas ainda em observação. Afinal, desta vez o texto seria cumprido? A resposta demorou para ficar clara. Mas ela veio, e caiu com uma bomba, com a promulgação da Lei de Reforma do Código Penal, em 1926.
A chamada Lei Calles detalhava punições para quem descumprisse as penas previstas pela constituição. Usar vestes religiosas em públicas passou a ser punido com multa, tanto quanto carregar no corpo símbolos cristãos, como crucifixos no peito.
De acordo com Cristero War: A History from Beginning to End (“Guerra Cristero: Uma História do Começo ao Fim”, sem edição no Brasil), um livro que descreve de forma sucinta os antecedentes e os acontecimentos da guerra, foi então que a perseguição se tornou prática oficial, o presidente e governadores alinhados a ele passaram a fechar mosteiros, conventos e escolas católicas.
“Eles também confiscaram terras e outras propriedades da Igreja”, aponta a obra. “O texto também limitou o número de pessoas que poderiam servir como sacerdotes e deportou todos os padres estrangeiros (o que incluía quaisquer delegados de Roma). A Lei Calles também trouxe consigo algumas penalidades severas. O clero enfrentava pesadas multas se aparecesse em público uniformizado. Eles também enfrentariam prisão se criticassem o governo (ou essas leis)”.
E foi então que a comunidade cristã do país rapidamente organizou a reação, que se apresentaria em duas formas: resistência pacífica, com padres realizando missas campais e depois fugindo da polícia, com apoio das comunidades locais; e guerra de guerrilha armada, liderada por religiosos tanto quanto por civis inconformados.
Brigada Feminina Joana D'Arc
Em 3 de agosto de 1926, apenas quatro dias depois que a lei entrou em vigor, quatro centenas de católicos pegaram em armas, entraram no Santuário de Nossa Senhora de Guadalaraja e iniciaram uma ação de resistência. Só se renderam quando a munição acabou. A batalha deixou 18 mortos e mais de 40 feridos. A reação foi violenta: 240 soldados invadiram a igreja e iniciaram um massacre que vitimou civis cristãos e religiosos.
A revolta se espalhou. Uma versão da bandeira mexicana, carregando os lemas “Viva Cristo Rey” e “Nuestra Señora de Guadalupe”, se tornaram parte do estandarte das forças rebeldes – o hábito de gritar por “Cristo Rei” é que levou o grupo a ficar conhecido pela alcunha de “cristeros”.
Os rebeldes poderiam se mostrar uma presa fácil, e assim parecia, já que a maioria não tinha qualquer experiência militar. Mas a resistência se espalhou por boa parte do país, em grande parte porque os moradores locais conheciam melhor o terreno a ser defendido. Mas também graças ao apoio feminino.
Formada por mulheres católicas de diversos extratos sociais, desde esposas e filhas de membros do governo que compartilhavam informações sigilosas até camponesas dispostas a pegar em armas, a Brigada Feminina Joana D'Arc se mostrou valiosa no esforço de guerra.
O nome foi dado em homenagem à guerreira francesa que havia sido canonizada poucos anos antes, em 1920, e o agrupamento se organizou em divisões lideradas por diferentes generais femininas. Uma líder, em especial, se destacou.
“A mais conhecida era María Goyaz, filha de Francisco Goyaz, gerente de um jornal de Guadalajaro chamado El Cruzado. Rapidamente se tornou a comandante suprema de toda a organização. Usava dois pseudônimos, ‘Celia Gomez’ e ‘Celia Ortiz’”, descreve Murphy em sua obra.
“Sob a liderança de Goyaz, a Divisão Ocidental tornou-se a maior, com 18 brigadas, cada uma composta por 650 mulheres”. Algumas se especializaram em levar munição desviada do exército para onde quer que ela fosse necessária, prossegue o autor.
“Transportavam os fornecimentos de balas escondendo-as em caminhões que transportavam cimento, ou em sacos de carvão, ou em carroças cheias de milho. Se tudo mais falhasse, carregavam a munição sob os vestidos, vestindo camisas especialmente confeccionadas com bolsos grandes que podiam carregar até setecentos cartuchos, o que era o triplo da cota militar de cada soldado da época. Sobrecarregados com todo aquele chumbo sob as roupas, viajavam de trem de cidade em cidade. Aprenderam até a fabricar explosivos, explodir trens e manusear baterias e detonadores”.
Legado permanente
A perseguição aos cristãos se tornou um problema maior do que o governo parecia suportar, e a pressão vinda do exterior amplificou a demanda por uma solução pacífica. O governo americano, na figura do embaixador instalado no México Dwight Morrow, acabou se mostrando crucial para que um acordo fosse alcançado. A partir de outubro de 1927, teve início uma série de encontros de Morrow com o presidente mexicano, geralmente no café da manhã.
Calles estava para deixar o poder e ser substituído por Álvaro Obregón, que já havia governado o país. Mas Obregón foi assassinado pelo católico José de León Toral duas semanas após ser eleito, o que atrasou as negociações pela paz.
O acordo acabaria sendo firmado, em junho de 1929, graças aos esforços do diplomata e do apoio do padre John Burke. Mas as disposições da lei de 1926 seriam oficialmente abandonadas apenas 1934. O estrago estava feito. Havia 3 mil sacerdotes no México em 1926. Em 1934, eram apenas 334.
Por muitas décadas, o sacrifício dos cristãos mexicanos permaneceu uma história pouco conhecida, ainda que, entre o povo local, suas ações heroicas (e também violentas, em alguns casos) tenham se tornado lendárias. O padre Toribio Romo González, por exemplo, é considerado um protetor dos cidadãos que tentam entrar ilegalmente nos Estados Unidos. Em terras americanas, aliás, muitos religiosos exilados contaram com apoio para prosseguir suas missões.
Um primeiro relato sobre o incidente que alcançou impacto internacional foi o livro de ficção ‘O Poder e a Glória’, considerado uma das obras mais importantes do escritor e jornalista britânico Graham Greene. Foi lançado em 1940, dois anos depois de ele viajar ao México com o objetivo de observar de perto as marcas da perseguição aos cristãos no país.
Os personagens são criação do autor, mas as descrições dos locais e dos incidentes se mostram dos mais realistas, como se confere no trecho abaixo, traduzido pelo poeta Mario Quintana:
“O tenente estava deitado de costas, de olhos abertos, enquanto os besouros espoucavam contra o teto. Recordava o padre que os Camisas Vermelhas tinham fuzilado contra o muro do cemitério e que era outro homenzinho rechonchudo, de olhos salientes. Era monsenhor e pensava que este título o protegeria. O tenente assistira como espectador, pois o assunto não era de sua alçada. Em todo caso, tinham fuzilado cinco padres, dois ou três haviam fugido, o bispo estava a salvo na Cidade do México, e um só se havia conformado à ordem do governador, que impusera casamento a todos os padres”.
Em 2012, chegou aos cinemas a produção For Greater Glory: The True Story of Cristiada, que recupera os eventos da época e tem no elenco Andy García, Eva Longoria, Eduardo Verástegui e Peter O’Toole.
Além disso, a igreja católica reconhece o heroísmo dos cristeros e valoriza, principalmente, o papel daqueles que resistiram às perseguições, sem renegar a fé, mas também sem pegar em armas.
Em novembro de 1992, 25 mártires, incluindo 22 padres, foram beatificados pelo papa João Paulo II – todos foram canonizados oito anos depois. Aliás, ao longo das décadas de 1920 e 1930, o Papa Pio XI, que permaneceu no posto entre 1922 e 1939, publicou três encíclicas criticando a perseguição aos cristãos no México.
Outros mártires foram beatificados desde então, e alguns também declarado santos, como José Sánchez del Río, nascido em 1913 que lutou ao lado dos cristeros até ser preso, torturado e, finalmente, assassinado em 10 de fevereiro de 1928, sem ter tido a chance de completar 15 anos.
Como indica uma biografia publicada sobre ele em português, quando decidiu aderir à batalha, São Joselito teria dito: “Nunca foi tão fácil ganhar o céu!”.
Foi apenas com a Constituição de 1992 que as relações entre Estado e igreja foram relativamente normalizadas e o México voltou a manter relações diplomáticas com o estado do Vaticano. Mas a perseguição continua, agora pelas mãos do crime organizado.
Atualmente, o país norte-americano ocupa a 37ª posição na Lista Mundial da Perseguição, elaborada pela ONG Portas Abertas, focada em monitorar a perseguição mundial contra adeptos do cristianismo.
De toda forma, mesmo num ambiente desafiador, o legado dos cristeros permanece intacto, aponta James Murphy: “A brutalidade e a perseguição impostas ao povo do México apenas fortaleceram a fé do povo. Até hoje, os santuários dos mártires inspiram incontáveis milhares de peregrinos, e a Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe, na Cidade do México, é um dos santuários mais visitados do planeta”.
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